Aldo Fornazieri: “A crise e o surgimento de uma nova esquerda”

05/05/2016 | Cultura política

Jornal GGN – 02/05/2016

Um dos saldos positivos da presente luta em defesa da democracia, dos direitos e contra o golpe se expressa no surgimento de uma nova geração de militantes de esquerda e de ativistas das lutas sociais, populares e progressistas. Uma geração certamente mais realista e, consequentemente, mais cética. Necessariamente, uma geração mais radical do que essa que se conformou na ascensão declínio do PT.

Mais realista, mas cética e mais radical por uma série de razões. As lições da história dessa nova geração são amargas. A sua perspectiva de futuro e suas esperanças se inspiram menos na ideia de uma sociedade redentora da humanidade e mais numa luta vinculada às demandas sociais concretas, ao enfrentamento da hegemonia avassaladora do capital financeiro e das grandes corporações da economia globalizada e à necessidade de estabelecer confrontações ao aumento das desigualdades, aos danos ambientais à vida e ao planeta e de reduzir os males causados pelo capitalismo. Uma geração que terá que encontrar alternativas ao caráter volátil e brumoso da vida sem sentido das grandes cidades, do consumismo, do individualismo e da solidão.

Essa geração vê a democracia aprisionada pelos esquemas do grande capital, percebe a misancene do atual sistema político ocidental e se rebela contra a colonização cultural propagada pela grande mídia e pelo marketing da manipulação. Essa geração aprendeu com a experiência do PT que, no Brasil, há um claro limite para a política de conciliação com os conservadores e que as elites não são confiáveis, pois não vacilam em quebrar a ordem democracia e conspurcar o Estado de Direito quando os seus interesses estão em jogo. Essa geração compreendeu que quanto mais se concede às elites econômicas, mais elas querem e menos estão dispostas a conceder socialmente para que se crie uma sociedade mais justa e se garanta uma segurança social aos menos protegidos. Essa geração aprendeu que vale mais a pena estar nas ruas e nas periferias, organizando e mobilizando os movimentos sociais, do que ocupar uma secretaria numa prefeitura, num governo estadual ou um ministério no governo federal.

Essa geração compreendeu que mesmo sob um governo dito de esquerda, a reforma agrária não avança, os índios não têm as terras demarcadas, os jovens pobres e negros continuam vítimas de violência e de injustiça nas periferias e que os direitos das mulheres não são respeitados e garantidos. Percebeu que o Bolsa Família é ínfimo perto dos subsídios ao grande capital, que por meio de muitos programas sociais, a exemplo do Prouni, o Estado termina por financiar o capital. Realisticamente, essa geração percebeu que suas demandas sofrem a repressão policial, o gás de pimenta, as bombas de efeito moral, as balas de borracha. Percebeu que para se fazer ouvir precisa ocupar escolas, bloquear ruas, avenidas e rodovias e invadir terras, terrenos e prédios.

Essa geração percebeu o quanto é uma miragem ilusória a confraternização com vinhos franceses, uísques envelhecidos, ternos George Armani, lençóis de linho do Egisto, hotéis e restaurantes de luxo, carros blindados, dinheiro fácil do capital para financiar campanhas etc. Percebeu que quem entra nessa pode ser enxotado hoje pelas convivas de ontem e que o lucro não tem mesuras com a democracia, com o Estado de Direito, com as leis, com a honorabilidade dos cargos públicos, com a fidelidade dos acordos e com a decência da política. O grotesco do dia 17 de abril revelou a face verdadeira da elite e de muitos acadêmicos e intelectuais que se apresentam com o lustre do saber, dos juristas que sempre estiveram ao lado do confisco perpetrado pelos estamentos. Por esses e outros motivos, a nova geração de ativistas políticos e sociais é mais realista, mais cética e mais radical.

Em busca de um novo conteúdo e de uma nova forma

Esta nova geração de ativistas políticos e sociais sabe que o lugar que os indivíduos ocupam não sistema de produção não é condição suficiente para determinar seu engajamento em lutas determinadas e nem garantia de uma suposta portabilidade de um projeto social e político transcendente. Ela sabe que as pessoas se mobilizam a partir de lutas concretas como moradia, educação, transporte, saúde, trabalho, direitos variados e plurais. É a partir dessas lutas que será preciso fazer florescer um novo projeto político e novas formas de organização.

Com a pluralização das lutas e das demandas, com a complexificação social, com as formas monitórias de controle e de crítica ao sistema político e com a crise de legitimidade e de representação das democracias ocidentais as formas tradicionais de organização política e de representação social enfrentam uma crise brutal. É como se operassem de forma analógica em uma sociedade digital. A nova geração é digital: é menos papel e mais internet, menos jornal e mais rede social, menos TV e mais smartphone, menos partidos e burocracia e mais movimentos organizados horizontalmente.

Mas com o junho de 2013 no Brasil, com os Indignados de Madri e com os Occupy Wall Street, esses novos ativistas aprenderam também que é preciso combinar formas horizontais de participação com formas verticais de organização. Não há como conquistar direitos, enfrentar o conservadorismo sem força política organizada e atuante. A lição de Maquiavel de que a força é condição imprescindível de êxito, de poder e de empoderamento nunca pode ser esquecida ou abandonada.

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O PT não será mais o referencial hegemônico para esses novos movimentos e grupos de ativistas que se organizam e agem em torno de organizações diversas e plurais. Mas é preciso fazer um esforço para criar um movimento de convergência e de união desses movimentos e grupos de esquerda, socialistas, democráticos, republicanos e progressistas. Esses movimentos e grupos tendem a se unificar em questões gerais e a manter suas singularidades nos temas e demandas específicos.

As experiências das frentes Povo Sem Medo e Brasil Popular são importantes e precisam ser examinadas para ver como podem contribuir para essa convergência. Mas nem tudo o que surgiu está nessas frentes. Existem vários grupos de jovens, de mulheres, de intelectuais e de movimentos sociais específicos que não estão nessas frentes.

Será preciso examinar experiências como a do espanhol Podemos e da Frente Ampla do Uruguai para ver até que ponto elas podem contribuir para a aglutinação do novo ativismo político e social brasileiro. A experiência da Frente Ampla, que aglutina indivíduos, partidos e grupos políticos e movimentos sociais e organizações da sociedade civil poderá ser uma referência importante. Existem, claro, entraves da legislação partidária e eleitoral que bloqueiam a adoção de determinadas formas. Mas sempre é possível encontrar formas criativas e inovadoras para garantir a unidade na pluralidade. Esse conceito, “unidade na pluralidade”, terá que ter uma operacionalidade fundamental para que se construa algo novo e forte em termos de ativismo social e político.

Terá que se encontrar uma forma inovadora de organização que seja capaz de combinar MTST e MST com a CUT e a CTB, setores das igrejas evangélicas com setores de base da Igreja Católica e com as religiões Afro, os grupos e movimentos feministas com grupos e movimentos negros, o cultural com o político, o sindical com a militância LGBT, o ambiental com o Rap e com o Hip Hop, o PSol com o PC do B, partes do PT, Causa Operária e assim por diante. A Rede Sustentabilidade terá que definir em que campo ficará.

Essas forças terão que atuar na institucionalidade política sem abandonar a organização social, sem deixar as ruas, as periferias, as mobilizações e os enfrentamentos. O que importa é que aqui está a energia da mudança, do futuro e da esperança. Não há futuro no MBL e assemelhados, no Partido Novo, na Casa das Garças, nos golpistas do Congresso, no Judiciário estamental e patrimonialista, no PSDB que capitulou ao atraso conservador e ao golpismo do tipo Bolsonaro e Eduardo Cunha. Não há futuro num governo Temer, em torno do qual se articulam os maiores corruptos do país. Pensar que pode haver algum futuro em grupos conservadores que pregam mais desigualdades e preconceitos num país desigual  e excludente como o Brasil é pensar o contrassenso ou pregar a maldade.

É preciso perceber que uma nova democracia, mais igualitária, mais libertária e mais humanizadora, comporta novas formas de representação social e política. Reduzir a representação política à forma partido é uma maneira de estreitar a ideia de representação. Se os partidos não são formas mortas, não é mais possível pensar o futuro da democracia em termos de uma recuperação e ressignificação dos partidos. Estes continuarão ocupando um lugar importante na democracia, mas terá que ser um lugar compartilhado com outras formas de organização e representação.

Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo