Aldo Fornazieri: “Declaração de guerra contra Trump”
Jornal GGN – 30/01/2017
Em apenas uma semana na presidência dos Estados Unidos, Donald Trump promoveu uma devastação inimaginável e colocou o mundo sob a égide do descontrole e do temor. Aqueles que acreditavam que o Trump candidato era um e que o Trump presidente seria outro se enganaram. O que se vê é que, nas ações do presidente, não há nenhum sistema de mediações, típico da governança democrática. Há uma ação direta, manifestação de uma vontade de ilimitação, algo típico de um poder elevado à potência do descontrole. As tiranias mais perversas e os ditadores totalitários eram expressões dessa vontade absoluta de poder.
A mentalidade governante de Trump foi erguida sobre os escombros a que foram reduzidas as democracias ocidentais pelo liberalismo radical. Essas democracias se tornaram sinônimo de um capitalismo anárquico pós-moderno. Venderam a ideia da máxima liberdade individual e da maximização do individualismo como o sumo da liberdade e do prazer. Mas essa ideia é um véu que acoberta e esconde o poder ilimitado do capital financeiro e das grandes o corporações transnacionais. Aqui também o sistema de mediação democrática já havia sido erodido, havia entrado em colapso. Esse sistema de injustiça e de desigualdade mantinha e mantém uma aparência de mediação, uma aparência de que as instituições permeiam os interesses da diversidade social.
É a partir dessa aparência enganosa e do colapso real da democracia que se viabiliza esta nova vontade governante, expressa pelo grande e pequenos Trumps, geralmente provindos do setor empresarial privado. Quando esses políticos de novo tipo percebem que os freios efetivos da democracia e da república já não funcionam, se lançam na busca do poder e, ao empalmá-lo, o governam como se estivessem governando os seus próprios empreendimentos privados. Para eles, pouco interessam as leis, os códigos sociais, os direitos estabelecidos, os símbolos de uma cidade ou de uma nação. Querem dispor do poder e de seus instrumentos ao seu bel prazer. Vejam quantos tirantes surgem nas prefeituras, nos estados, nos países pelo mundo a fora.
O estilhaçamento das democracias
O resumo de tudo isto é que, aquilo que se manifesta como autoritarismo sistêmico e institucional nas democracias ocidentais, particularmente na Europa, agora, Trump quer exercê-lo de forma direta, imediata, unipessoal. Esse autoritarismo, seja na sua forma institucional ou na sua forma unipessoal, expressa e dissemina valores anticívicos e anti-civilizatórios, valores anti-humanistas. Nacionalismos, xenofobias, racismos, machismos, sexismos, radicalização religiosa são condutos desse autoritarismo e de violências crescentes. Validar e ampliar as desigualdades, buscar desenfreadamente a realização de desejos narcísicos, suplantar ou eliminar o outros porque é simplesmente o outro, constitui e alimenta essa corrida enlouquecida para a morte em um mundo em desatino, com uma humanidade desnorteada de valores.
Os valores que fundaram o pacto civilizatório da Carta dos Direitos do Homem após o horror da II Guerra, que viabilizaram a construção do Estado do Bem Estar Social, que sustentaram a perspectiva de um mundo solidário e pacífico se estilhaçaram pela força anti-comunitária, anti-política e anti-Estado que o neoliberalismo sacramentou em toda a parte. O mundo que surgiu a partir dos anos de 1980 sufocou a própria democracia liberal, asfixiando-a, retirando-lhe quaisquer valores de que fosse portadora. A vitória das forças do capitalismo perverso e pervertido foi tão devastadora que transformou as forças progressistas e de esquerda em escudeiras da democracia, do Estado de Direito e do constitucionalismo.
As alternativas do mal
A democracia liberal havia criado um conjunto de crenças e um sistema político, tecnológico, militar e institucional para sustentá-lo. Tratava-se da fé na razão, na ciência, na propriedade privada, nas liberdades individuais, na competição e na solução tecnológica. Tudo isto foi involucrado pelo valor e pelas necessidades do mercado. O mercado definiu o jogo das emoções, das afetividades, dos desejos e das necessidades. Quanto mais o mercado definia as regras desse jogo, mais a humanidade se esvaziava de humanismo e de civilização. O conhecimento, a ciência, a razão e tecnologia não servem a humanidade e seus valores constitutivos, mas servem o mercado.
Neste momento em que o mercado põe em movimento uma nova revolução tecnológica, que devastará parcelas enormes do emprego e as formas de trabalho tal como as conhecemos até agora, começa a se estabelecer uma luta encarniçada por salvaguardas de poderes, posições e interesses que decorrem deste processo transformador. Duas forças principais e igualmente perversas disputam estes espaços de controle e poder. A força do neoliberalismo que quer o mercado agindo diretamente com os indivíduos desorganizados na sua anarquia pós-moderna e as forças da xenofobia e do protecionismo, que acreditam que, com o fechamento de relações, espaços, fronteiras etc., podem construir as centralidades de poder que dominarão o jogo do futuro.
Imensas forças de controle serão necessárias. Afinal de contas, serão massas incalculáveis de desempregados, a desigualdade, que já é insuportável, tenderá a ser ainda maior. As sociedades estarão envelhecidas e com necessidades de recursos sociais. Não existem forças capazes de fazer um novo pacto. Neste cenário, guerras, que poderão assumir formas ainda desconhecidas, são uma possibilidade que ganha cada vez mais força.
Donald Trump decidiu antecipar essa guerra. Vê os imigrantes como forças anômalas, que precisam ser estancadas e controladas. Vê as políticas ambientais como limitadoras de recursos e espaços de poder necessários para sustentar controles. Em uma semana declarou guerra à Constituição, aos imigrantes, aos muçulmanos, à mídia, aos democratas, aos republicanos, ao México, aos latino-americanos, aos chineses, aos tratados comerciais e ao mundo. Na campanha já havia declarado várias outras guerras. Mas aquilo que era verborrágico e desrespeitoso, agora se tornou agressivamente violento e real.
O que resta de mundo civilizado e as pessoas de bom senso e sensatez não podem titubear: é preciso declarar guerra imediata a Trump e às forças que o sustentam. Ele é perigoso e precisa ser contido. A contenção de Trump não será suficiente para salvar o mundo. Mas sem a contenção de Trump o mundo parece caminhar para um desastre de grandes proporções.
Aldo Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e Política.