Aldo Fornazieri: “Lula, Boulos, angústia e esperança”
Jornal GGN – 12/03/2018
O momento é de angústia porque estamos na véspera de ver um dos dois maiores líderes políticos da história do Brasil, somente ombreado por Getúlio Vargas, na iminência de ser preso. Lula foi condenado, provavelmente, pelo processo mais espantoso, kafkiano, absurdo, arbitrário que se tem conhecimento depois das atrocidades da Justiça Nazista e dos Processos de Moscou. Moro e os desembargadores do TRF4 condenaram Lula por um crime atribuído a ele por eles, os julgadores, pois o ex-presidente não é proprietário do triplex, ele não usufruiu do triplex, o triplex não é de um laranja de Lula, mas é atribuído a ele pela vontade arbitrária dos Freisler e dos Wishinski tupiniquins. Se eles fazem isso sob um suposto Estado Democrático de Direito, o que não fariam num Estado totalitário ou ditatorial.
O caráter doentio e demencial desse julgamento expressa a completa degradação do sistema institucional e constitucional brasileiro, pois o seu guardião último, o Judiciário, está corrompido em duplo sentido: 1) no sentido moral, pela quebra do legalismo; 2) no sentido pecuniário, pelos privilégios inescrupulosos e criminosos que se auto-atribui. Moro, os desembargadores do TRF4 e a presidente do STF, Carmen Lucia, são os principais fatores da depravação do Judiciário. Carmen Lucia, que apunhalou o fundamento republicano-democrático da Constituição para salvar Aécio Neves, agora substituiu o conselheiro noturno (Gilmar Mendes) de um presidente acusado de vários crimes, para tornar-se a sua conselheira diurnal. Ao mesmo tempo, viola os direitos constitucional de Lula, discriminando-o, ao não colocar em julgamento uma questão crucial do direito penal, que divide a Corte. Ela não só apequenou o STF, mas o traiu ao entregar ao Senado prerrogativas que eram dele. Se é bem verdade que os pobres nunca tiveram garantias jurídicas na nossa não-democracia, a exceção, com o golpe e com a depravação do Judiciário, chegou à esfera política, com tribunais de exceção, com juízes persecutórios e com um Supremo que viola a Constituição.
O momento é de angústia porque, se Lula for preso, ficará a mercê desse Judiciário corrompido. O PT pouco ou nada fez depois do dia 24 de janeiro para criar linhas de defesa políticas e sociais a Lula. Não mobilizou a sociedade civil, não criou uma rede de solidariedade ativa, limitando-se ao protesto declaratório. Assim, aqueles que disseram que o Brasil não iria tremer se Lula fosse condenado e preso parece que tinham razão.
O momento é de angústia porque vemos o povo pobre indefeso perante as arbitrariedades e violências crescentes cometidas por um governo falido que se socorre da força armada para mostrar que ainda existe. No Rio de Janeiro assiste-se vários tipos de agressão da força armada contra cidadãos pobres. Na Vila Kennedy viu-se uma covarde ação da prefeitura, apoiada pelas forças de intervenção de Temer, destruindo o ganha pão de centenas de trabalhadores, já sacrificados pela baixa renda e ausência de direitos. Lá estava o povo indefeso e solitário, chorando, porque não havia ninguém que o defendesse. La não estavam vereadores e deputados do PT, do PSol, do PC do B e de outros partidos de esquerda. As esquerdas querem os votos do povo, mas não estão junto do povo. Os parlamentares têm, não só o direito, mas o dever de acompanhar as operações militares nas favelas do Rio para coibir abusos.
Lula e Boulos e a esperança
Lula é do povo pobre e sempre esteve com o povo. Guilherme Boulos é da classe média, mas decidiu fazer-se povo e caminhar junto com o povo. Uma das singularidades que mais os distingue de muitos outros políticos e que os assemelha é a coragem, principalmente para enfrentar adversidades, sejam pessoais ou da luta social. Lula procura sobreviver em meio ao mais tormentoso momento de sua vida. Boulos começa uma jornada que poderá ser profícua se souber navegar em mares revoltos, que lhes apresentam vários desafios.
Há poucas semelhanças entre ambos e muitas diferenças na comparação dos caminhos percorridos por Lula e dos caminhos a percorrer por Boulos. Lula construiu sua liderança no movimento sindical, um movimento massivo e de dimensões nacionais e fundou um partido, uma força política própria, onde foi e é o líder inconteste. Boulos construiu sua liderança num movimento social de base mais restrita - os sem teto - e ingressou num partido já formado que não o comanda incontestavelmente e que não pode contar com sua plena fidelidade. Boulos terá que solucionar esse problema, pois somente os líderes que têm força própria - militar, social, popular, partidária ou congressual - têm chances maiores de triunfarem e de realizar programas reformadores.
Boulos jamais poderá esquecer-se da lição de Maquiavel que escreveu o seguinte, ao tratar desse tema: "... pois, querendo analisar esse assunto, veremos se esses inovadores dependem firmemente de si mesmos ou se dependem de outros; isto é, se para conduzir a sua obra eles precisam de orações ou se têm força. No primeiro caso, os inovadores sempre se dão mal e não conseguem nada; mas, quando dependem de si mesmos e podem forçar, raramente deixam de alcançar êxito".
De seguida, Maquiavel lembra que os profetas armados venceram e os desarmados fracassaram. Neste mister, Lula fez vários acertos e cometeu dois erros, quais sejam: 1) não usou de forma suficiente sua imensa força popular quando presidente para forçar um reformismo mais robusto; 2) se aliou a uma força mercenária - o PMDB - equipontente ou maior que a sua - o PT - e isto é um erro, pois, essa força, buscará o poder para si na primeira oportunidade que aparecer. No processo de construção da força própria, muitas vezes é necessário fazer alianças, mas forças aliadas devem ser menores a aquelas que o líder dispõe como forças fiéis suas.
Quando Lula foi candidato a presidente em 1989 já era um líder nacional e popular. Boulos ainda não o é e terá um árduo trabalho para alcançar este ponto e não poderá cometer erros. O surgimento de líderes como Lula são eventos de difícil ocorrência e dependem de uma série de singularidades históricas. Mas dependem também do seguinte: que a fortuna ofereça a ocasião, o momentum, e que haja alguém com virtù suficiente para percebê-lo a agir para se tornar o líder.
Os momentos críticos, como este que vive o Brasil, são propícios ao aparecimento de novos líderes. O campo progressista tem uma enorme carência de líderes nacionais efetivos ou potenciais. Excetuando Lula, dá para citar três: Ciro Gomes, Fernando Haddad e Boulos. Se Ciro precisa corrigir uma série de defeitos, em boa medida, Haddad tem os mesmos desafios de Boulos, pois o PT não lhe é uma força fiel e própria. Ao resistir a Haddad, em parte, o PT aposta também contra o seu próprio futuro. E se Haddad percebe que o momentum lhe é favorável, precisa entrar em campo e agir.
Em que pese o momento de angústia, há também esperança, num duplo sentido. No sentido de que Boulos possa renovar as esquerdas e construir sua liderança nacional e popular, inclusive, com o incentivo de Lula. E no sentido de que Lula decida resistir até o fim com a sua candidatura, levando ao impasse político se for o caso. Manter a candidatura até as últimas consequências significa confrontar a injustiça que o persegue, significa confrontar o golpe que minou os débeis fundamentos democráticos, significa manter a cabeça do povo erguida contra as elites predatórias que querem perpetuar o estatuto da pobreza e da desigualdade. Manter a candidatura até as últimas consequências é uma demanda da coragem e da dignidade política que o campo progressista precisa afirmar para fazer-se respeitado e temido. Este é o critério elementar da esperança de um futuro melhor.
Aldo Fornazieri é cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política (FESPSP)