André Singer: “Os pobres puniram o lulismo pela crise econômica”
O cientista político acha que o eleitorado ficou revoltado com a recessão, a perda de empregos e a diminuição de renda no segundo mandato de Dilma Rousseff – e o voto no PSDB foi uma resposta
Entrevista à revista Época – 27/11/2016
Cientista político e professor da Universidade de São Paulo (USP), André Singer foi porta-voz do primeiro governo Lula. De volta à universidade, caracterizou o “lulismo” como um movimento de reformas lentas que ganhou a adesão dos eleitores mais pobres – tradicionalmente conservadores. Para Singer, tal associação poderia provocar um alinhamento político parecido com o que ocorreu nos Estados Unidos entre o Partido Democrata e setores populares a partir do New Deal, de Frankin Roosevelt. Com o impeachment de Dilma Rousseff e a derrota do PT nas últimas eleições municipais, essa ideia sofreu um abalo. Singer, que acaba de organizar o livro As contradições do lulismo (Boitempo, 288 páginas, R$ 52), diz, no entanto, que não se pode ainda decretar o seu fim.
ÉPOCA – Em seu primeiro livro sobre o que chama de “lulismo”, o senhor falava de um realinhamento eleitoral que poderia durar 30 anos. No entanto, o impeachment de Dilma Rousseff abreviou o ciclo lulista para 13 anos. O que deu errado?
André Singer – O realinhamento, por definição, tem de ser uma coisa de longo prazo. Ele não significa que um mesmo bloco vai ganhar sempre, mas que os principais grupos de eleitores ficam orientados na mesma direção ao longo de um período extenso – ainda que, nesse período, vários partidos se revezem no poder. Portanto, essa é uma projeção que só pode ser verificada ao longo do tempo estendido e olhando para as tendências mais profundas do eleitorado, e não apenas para uma ou outra eleição. O que eu previa é que os eleitores pobres – e, sobretudo, os mais pobres – se inclinariam na direção do lulismo durante um período longo. E que a classe média se inclinaria na direção do antilulismo também por um período longo. Esses são os elementos principais, que ainda não foram interrompidos. O que aconteceu em 2016 tem importância e pode indicar, sim, uma ruptura, mas só poderemos verificar isso em 2018. É um momento de crise do lulismo; colapso, talvez, mas não morte. Nas pesquisas, o ex-presidente Lula ainda mantém uma intenção de voto bastante alta.
ÉPOCA – É em 2018, a partir da candidatura ou não de Lula, que saberemos se o lulismo sobreviverá ou não?
Singer – O ano de 2018 não precisa, necessariamente, significar um fim. Pode haver um resultado eleitoral que mostre a presença das bases lulistas e, ainda assim, uma derrota. O que marcará o fim do realinhamento é se essas bases sociais mudarem a longo prazo. Digamos que os pobres e os muito pobres escolham outro candidato ou outro partido, em direção ao qual eles se orientem com uma perspectiva de longo prazo. Nesse caso, sim, haverá um novo alinhamento. Não quero diminuir a importância do que está acontecendo agora. Há um colapso do lulismo, mas ele pode se recuperar.
ÉPOCA – Como interpreta a vitória do PSDB em São Paulo? João Doria levou a prefeitura de São Paulo vencendo nas periferias, entre os pobres, e os tucanos e seus aliados ganharam no “cinturão vermelho”, as cidades industriais da região metropolitana onde o PT nasceu.
Singer – O resultado eleitoral das eleições municipais mostra que o eleitorado puniu o lulismo por causa da política econômica do segundo mandato de Dilma, cujo resultado s é recessão, perda de emprego e perda de renda. O eleitorado ficou muito revoltado com o que aconteceu a partir de 2015, devido à questão econômica, à qual também se somam as denúncias da Operação Lava Jato. Esse foi um voto ocasional, de resposta. Não quer dizer que a opção lulista está descartada. Há sinais de que esses mesmos eleitores reconhecem que o governo Lula foi bom e que houve melhoras significativas. Ou seja, dependendo do que ocorra no governo Temer, pode haver uma mudança de opinião.
ÉPOCA – Ciro Gomes quer ser candidato a presidente em 2018 pelo PDT. O que isso significa para o lulismo?
Singer – O lulismo é uma coisa; o PT, outra. Ciro visivelmente se candidata a herdeiro do lulismo. Caso haja uma situação em que Lula o apoie, ele pode perfeitamente encarnar a opção lulista. Ciro está desenhando sua atuação nesse sentido. Tanto por sua proximidade em relação a Lula, quanto pelo comportamento que ele teve em relação a Dilma e também pelo que ele vem falando e fazendo.
ÉPOCA – Como vê as prévias para a escolha de um candidato das esquerdas?
Singer – Eu apoio. O mais inteligente, diante da situação de recuo da esquerda, seria uma frente nos moldes da Frente Ampla do Uruguai onde cabe todo mundo e que tem a grande vantagem de que os diversos partidos não perdem sua identidade. Não sei se isso vai ser possível no Brasil por causa da grande personalização da política brasileira que dificulta a formação de coletivos. Mas o ideal é que todos estivessem juntos e aceitassem se submeter à decisão da maioria por meio de prévias.
ÉPOCA – O PT é capaz de ceder o protagonismo? O partido se acostumou a ser hegemônico na esquerda brasileira.
Singer – O PT pode ceder, porque é um partido pragmático, com o pé no chão. A ideia de hegemonia não é tanto a ideia de uma maioria. Mas sim de uma capacidade de direção. Com o colapso do lulismo, coloca-se o seguinte ponto de interrogação: a direção lulista continua válida? A esquerda está passando por um momento de avaliação dessa pergunta. Se a candidatura de Ciro Gomes for a principal do bloco de esquerda, você terá uma confirmação da direção lulista.
ÉPOCA – O que o senhor chama de direção lulista?
Singer – Um reformismo fraco, a ideia de um projeto político que vai fazer transformações lentas dentro da ordem. E, portanto, se conecta com as camadas populares por essa via. Nitidamente, Ciro seria a confirmação dessa linha, com mudanças laterais aqui e ali adequadas ao perfil dele.
ÉPOCA – O senhor já associou esse “reformismo fraco” à manutenção de uma política econômica ortodoxa no primeiro governo de Lula. Para o senhor, Dilma tentou um “reformismo forte” ao baixar a taxa dos juros, mas falhou ao não construir uma base política e social. Por que considera que essa foi a questão de fundo do colapso do lulismo e não uma mudança equivocada na política econômica?
Singer – Não acho que Dilma apostou num “reformismo forte”, mas, sim, que ela tentou acelerar o reformismo fraco. Há elementos econômicos, mas sugiro que há também elementos políticos nesse processo. Dilma apostou numa coalizão entre trabalhadores organizados e industriais que se dissolveu. Ela desenhou uma política econômica que visava retomar o crescimento do país e sustentar o projeto de redistribuição de renda por meio da reindustrialização do Brasil, apesar da crise econômica internacional. Item por item, Dilma atendeu às reivindicações dos empresários industriais: redução de juros, proteção do produto nacional etc. Não foi uma política desorganizada, mas, sim, uma política estruturada com essa visão. Mas, à medida que o programa foi se realizando, em vez de darem sustentação ao governo, que enfrentava o setor financeiro resistente à queda dos juros, os industriais ficaram contra! Isso produziu uma falta de base política e social para sustentar esse projeto. A partir de abril de 2013, o Banco Central começou a subir os juros, e esse projeto começou a ser dinamitado por dentro.
ÉPOCA – A decisão do BC de aumentar os juros não se deve ao fato de que a política do governo Dilma era insustentável, no que se refere ao controle da inflação?
Singer – Esse argumento justificou a volta do ciclo de juros altos, mas não havia uma explosão inflacionária. A decisão de aumentar os juros sofreu resistência dentro do próprio governo. O ex-ministro da Fazenda Guido Mantega foi a público dizer que não fazia sentido aumentar os juros. E, numa viagem à África, Dilma disse que não concordava com essa política anunciada pelo BC, o que produziu uma imensa confusão e ela foi obrigada a recuar. As tensões políticas me parecem evidentes.
ÉPOCA – Não falta à esquerda brasileira, como dizem alguns críticos, a incorporação de valores como combate à inflação e responsabilidade fiscal?
Singer – Concordo que é indefensável a ideia de que se pode gastar quanto quiser. No entanto, eu vejo uma grande divisão mundial entre aqueles que acham que o Estado, em situações de crise, precisa entrar com gastos para reativar a economia e aqueles que pensam que é preciso cortar gastos para reativar a economia. Essa grande divisão leva economistas laureados com o Nobel, como Paul Krugman, a afirmar que a ortodoxia que tomou conta do pensamento econômico tem se tornado instrumento de uma política de austeridade que está quebrando os países e causando um enorme custo social e tremendo aumento da desigualdade. Essa não é uma discussão técnica. É uma discussão política e eu estou do lado dos que acham que o Estado deve intervir.