Angela Alonso: "Bolsonaro incentivou anticidadania a sair do armário"
Eleger um bárbaro pode ser acidente de percurso, já enaltecer suas barbaridades requer mais que complacência
Angela Alonso
Folha de São Paulo, 31/06/2020
Toda panela tem sua tampa. Daria para falar o mesmo de maneiras mais presunçosas, mas o dito popular resume bem a ideia, a da complementaridade. Funciona para panelas e sociedades.
Eleger um bárbaro pode ser acidente de percurso —até a sereníssima Alemanha de Merkel andou por essa cozinha—, já enaltecer suas barbaridades no exercício do governo requer mais que complacência. Exige a coincidência de princípios. A tampa autoritária apenas fecha panela de mesmo tipo, de modo que o par do antiestadista é o anticidadão.
Todas as atitudes, os gracejos e os impropérios presidenciais desde o início da crise sanitária primam pelo “salve-se quem puder”. Salve-se a si mesmo e aos seus. Essa síntese do particularismo bolsonarista se materializou num ato e numa inação.
De um lado, foi ao enterro de um paraquedista. Emocionou-se porque era o desaparecimento de um dos seus —Bolsonaro se gaba de pertencer à categoria dos que saltam das alturas. Mas nem lhe ocorreu homenagear os outros milhares de brasileiros mortos durante a pandemia que seu governo desassiste. É que sendo “outros”, não lhe dizem respeito: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”.
Esse presidente antiuniversalista incentivou a panela da anticidadania a sair definitivamente do armário. Já existia fora dele —evidência cabal é que compareceu às urnas para eleger esse mandatário—, mas agora se exibe lustrosa e orgulhosa, a torto, sobretudo à direita, escancarada.
Desse armário saíram os soldados do exército de Sara Winter. Mas a quarentena revelou que a farda verde-amarela dos extremistas é apenas um dos modelitos no cabideiro de anticidadãos. Ali se acumulam todos que se julgam superiores, diferenciados, incólumes às leis como aos vírus.
Assim como o antiestadista não governa para todos, mas somente para os seus, o anticidadão não se orienta por lei que a todos equipare. Seu lema é o da mulher, tão sem máscara quanto o marido, que retrucou, depois de advertência: ”Cidadão não, engenheiro civil, formado, melhor do que você”.
“Cidadão” equaliza, pensaram os revolucionários de 1789, que queriam derrubar hierarquias. Foi o que ofendeu o casal de desmascarados, desconfortáveis sob guarda-chuva igualitário. O anticidadão pensa a vida social como círculos concêntricos de relações pessoais cujo núcleo é seu umbigo. É um particularista.
A quarentena não pegou nesse grupo. O anticidadão não pega nada que soe a igualitarismo. Mesmo Covid, se pegar, cura com cloroquina, e sem transmitir a ninguém. Enxerga as restrições à circulação como coisa dos fracos, dos suscetíveis, dos outros.
Exemplo escarrado é o desembargador que ofendeu um guarda (aliás, educadíssimo), fingiu falar francês e rasgou a multa. Soube-se depois que são todos atos habituais de sua excelência. O magistrado é burlador de leis impenitente.
Na sua performance, cintilaram os vestígios de uma tradição, o bacharelismo. Nos começos da nação, a elite social ia buscar as luzes em Coimbra, depois nas faculdades de direito de São Paulo e Recife. Ali falava-se muito francês, fazia-se muita política e muito verso, embora se ministrasse pouca aula.
Hoje os bacharéis seguem chamados de “doutores”, mas a maioria há muito não escreve tese de doutoramento —ainda que tantos as fajutem nos currículos. O desembargador Siqueira pertence a essa estirpe, com seu francês agreste.
A carteirada malsucedida do magistrado induz pensar o ato como traço de classe alta, mas esse antiuniversalismo é mais difuso. A Folha registrou semana passada um pancadão em Sorocaba, um jogo de futebol em Marília, 14 festas só em Cuiabá, uma delas com tiros. Teve tiro também em Angra dos Reis.
O grupo Aglomerou (é o nome!) embarcava na epidemia das lives, enquanto festeiros da casa vizinha ostentavam armas. Entre um e outro alvo, a polícia houve por bem abordar os pagodeiros.
Haja autoridade para tanto anticidadão. O G1 contou 323 descumprimentos de medidas sanitárias apenas em Campinas. Para onde se olha, há churrascos, gente com máscara no queixo ou, sem ela, em eventos públicos que seriam mais cômodos em casa, caso de suruba numa lancha no lago Paranoá.
Uma desobediência civil transversal. Não se concentra na elite, atravessa os estratos sociais, irmanados pela liberdade, devidamente autorizada pelo capitão cloroquina a infectar o próximo. Os confinados já estão pelas tampas com essa panela.
Angela Alonso é professora de sociologia da USP e pesquisadora sênior do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.