Bruno Carazza: "O futuro é sombrio"
Publicado no Valor Econômico, no dia 6 de abril de 2020 - Por Bruno Carazza*
Com a recomendação de jejum nacional sendo alçada a política pública de combate à covid-19, é bom lembrar que, de acordo com João, o fim dos tempos chegará sob a liderança da Peste. Na sequência, virão a Guerra, a Fome e, finalmente, a Morte.
Walther Scheidel, professor de história antiga na Universidade de Stanford, também tem seus quatro cavaleiros do Apocalipse. Dois são os mesmos elencados pelo “discípulo que Jesus amava”: as epidemias e a guerra. Completam o quarteto o colapso do Estado e as revoluções socialistas.
Em “The Great Leveller: Violence and the History of Inequality from the Stone Age to the Twenty-First Century” (que nas próximas semanas será lançado no Brasil pela editora Zahar sob o título “Violência e a História da Desigualdade”), Scheidel analisa os principais fatores que levaram não ao Armagedon, mas sim à redução esporádica da desigualdade ao longo da história da humanidade.
Com abundância de exemplos e dados, o autor argumenta que, nas sociedades eminentemente agrárias que predominavam até o início do século XX, as epidemias exterminavam grandes contingentes de pessoas. Em resposta à escassez de mão de obra, o mercado de trabalho se reequilibrava com o aumento dos rendimentos dos sobreviventes - e, assim, a distância entre ricos e pobres diminuía.
Outras formas traumáticas de reduzir a desigualdade foram as guerras, as revoluções e a falência do Estado. Ao romperem a estrutura social, esses eventos levavam a uma redistribuição de poder e riqueza entre os diferentes grupos, podendo ocasionar um momentâneo efeito “nivelador” das condições de vida entre seus habitantes.
Com os intensos processos de urbanização, industrialização e aprimoramento educacional da população mundial ao longo dos séculos XX e XXI, o professor de Stanford deposita suas esperanças na mudança de preferências do eleitorado como uma solução menos violenta para as graves crises que enfrentamos. Em entrevista recente à BBC, Scheidel acredita que se a covid-19 for realmente devastadora, a população poderá demandar mudanças políticas e econômicas na direção de um Estado de bem-estar social mais forte, principalmente em países como Estados Unidos e Brasil.
A nova pandemia está expondo as diversas fragilidades do modelo brasileiro de (sub)desenvolvimento. Nossa resiliência à crise está sendo afetada pela crônica falta de dinamismo de nossa economia e à irresponsabilidade fiscal dos últimos anos. E à medida que a doença avança, outras deficiências ficam morbidamente mais claras: o baixo grau de formalização do mercado de trabalho, a precariedade de nossa rede de proteção social, as diferenças entre os sistemas público e privado de saúde e as mazelas de nosso saneamento básico e das condições habitacionais.
Ao que tudo indica, infelizmente, ainda passaremos as próximas semanas em isolamento social, acompanhando apreensivos a contagem de mortos e a deterioração econômica, enquanto a covid-19 chega cada vez mais próximo de nossos lares e famílias. Ainda não sabemos quando e nem como devemos afrouxar o distanciamento social para permitir uma retomada segura das atividades cotidianas. Muito mais importante, contudo, é pensar que tipo de país construiremos depois do coronavírus.
A opção proposta pelo professor Scheibel passa pela construção de um novo pacto social, em que os imensos déficits gerados pelos pacotes de estímulo serão cobertos por impostos cobrados daqueles com maior capacidade contributiva. Também haveria um estímulo ao aprimoramento dos sistemas de assistência médica à população e de maior proteção aos trabalhadores mais vulneráveis, eventualmente com a implementação de um programa de renda básica universal. Dessa forma, o efeito nivelador da covid-19 seria alcançado com políticas públicas e econômicas mais progressistas.
No caso brasileiro, tenho sérias dúvidas se conseguiremos fazer uma limonada desse amargo limão que é a pandemia provocada pelo novo vírus. Ainda é cedo para afirmar, mas as medidas do governo para resgatar a economia podem ter efeito negativo sobre a desigualdade. Ao que tudo indica, a recessão será muito mais profunda e duradoura do que esperávamos, e auxílios emergenciais de R$ 600 ou frações de seguro-desemprego por três meses não serão capazes de neutralizar os severos impactos sobre a renda dos mais pobres e desamparados. Enquanto isso, aqueles que têm empregabilidade, economias e acesso ao crédito conseguirão superar os tempos ruins de forma muito mais suave.
Novas leis e decisões judiciais tomadas sob a pressão da emergência social também podem levar a ainda mais desigualdade. Nas últimas semanas centenas de novos projetos de lei foram apresentados no Congresso Nacional, boa parte deles pedindo proteção e tratamento especial para as mais variadas categorias. No Judiciário, medidas liminares suspendendo efeitos contratuais vêm sendo concedidas em todos os tribunais, influenciadas por uma perigosa lógica de curto prazo que tem efeitos bastante deletérios num horizonte mais largo.
Para piorar, a crise da covid-19 ainda teve a externalidade negativa de interditar o debate sobre reformas que poderiam contribuir para as condições de competitividade e até mesmo na distribuição de renda no Brasil. Com a recessão afetando principalmente o setor de serviços, será muito difícil retomar num curto intervalo de tempo a tramitação da reforma tributária, que previa um tratamento equânime na cobrança de impostos sobre o consumo. Com todas as energias concentradas nas medidas de saúde pública e econômicas, também serão adiadas as discussões sobre a reforma administrativa e os privilégios de certos segmentos do serviço público.
Quanto mais profunda a recessão, mais difícil será convencer os setores mais privilegiados da sociedade a aceitarem uma tributação mais progressiva; e quanto maior o crescimento da dívida, menos provável ampliarmos nossos programas sociais. Se nada for feito, no futuro a peste, a guerra, a fome e a morte continuarão a cavalgar nas costas da imensa desigualdade social brasileira.
*Bruno Carazza é professor do Ibmec, mestre em Economia e doutor em Direito. É servidor público federal (licenciado) da carreira de Políticas Públicas e Gestão Governamental