Carlos Drumond: “Pré-sal: filé a preço de acém e o Brasil na contramão do mundo”

10/10/2019 | Política

Políticos disputam as sobras e o governo não diz que poderia obter muito mais do excedente da cessão onerosa

Publicado em Carta Capital no dia 6 de outubro de 2019 | Por Carlos Drummond*

Na quarta-feira 2, a decisão do rateio do leilão do excedente da cessão onerosa do pré-sal, marcado para 6 de novembro, e a votação da reforma da Previdência, aprovada na Câmara e em tramitação no Senado, embolaram-se com parlamentares e governadores a condicionar seu apoio à reforma a uma maior participação de estados e municípios na divisão dos recursos do petróleo. A briga opunha aqueles que defendem a entrega de 20% para municípios e 10% para estados aos partidários da destinação de 15% para os primeiros e 15% para os segundos.

O governo divulgou que espera arrecadar 106,5 bilhões de reais, valor correspondente apenas ao bônus de assinatura, que Paulo Guedes pretende destinar integralmente ao pagamento dos juros da dívida pública. Estados e municípios esperam receber, cada um, 10,94 bilhões de reais.

Ao que tudo indica, parlamentares e governadores aceitaram a briga pelas sobras em vez de adentrar o salão do banquete. Segundo cálculos da Associação dos Engenheiros da Petrobras feitos a partir do edital do leilão, a participação governamental no rateio chegaria a 653,17 bilhões de reais. Isso, por baixo, pois poderia atingir 987,96 bilhões se a União contratasse diretamente a Petrobras como prestadora de serviços para a produção dos excedentes, alerta a entidade. No cálculo da participação governamental de 653,17 bilhões de reais, a Aepet considerou bônus de assinatura (106,56 bilhões), royalties (250,87 bilhões), excedente em óleo da União (191,49 bilhões), Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (104,24 bilhões).

A divulgação pelo governo apenas do valor do bônus de 106,5 bilhões e a informação dominante na mídia de que estados e municípios esperam receber 21,88 bilhões de reais deveriam ser examinadas com cautela e senso crítico por parlamentares e chefes de executivos estaduais e municipais. “Não se pode despertar o interesse dos governadores e prefeitos nos royalties e no excedente em óleo. O governo federal quer dar uma merreca apenas do bônus. Como o bônus é deduzido do Imposto de Renda da pessoa jurídica, o valor não é 10,94 bilhões para todos os municípios, mas 4,42 bilhões. Todos os estados também vão receber líquidos apenas 4,42 bilhões. Os estados e municípios poderiam receber, entretanto, cerca de 300 bilhões de uma receita líquida de 1,11 trilhão. Mas a visão dos governadores e prefeitos é muita curta”, dispara Paulo César Ribeiro Lima, que trabalhou na Petrobras, é Ph.D. em Engenharia Mecânica pela Cranfield University, ex-consultor legislativo do Senado e consultor legislativo aposentado da Câmara dos Deputados.

“Em razão dos baixos excedentes em óleo para a União e da baixa arrecadação do Imposto de Renda e da contribuição social, a rodada dos excedentes da cessão onerosa pode causar um prejuízo à União, estados e municípios, a valor presente, de 343,65 bilhões de reais”, alerta a Aepet. A baixa arrecadação decorre das deduções permitidas pela Lei nº 13.586, de 2017.

O melhor para o País, sublinha o presidente da entidade, Felipe Coutinho, seria a contratação direta da Petrobras, sob o regime de partilha de produção, com elevados excedentes em petróleo para a União. “A produção dos excedentes da cessão onerosa por outras empresas petrolíferas, que não a Petrobras, pode reduzir muito a participação governamental na renda petrolífera, mesmo que haja o pagamento de bônus de assinatura de cerca de 100 bilhões de reais. Para, aproximadamente, 15 bilhões de barris de excedentes, o valor presente líquido da renda petroleira em disputa é muito superior ao que se pretende arrecadar com o bônus de assinatura.” O leilão do excedente da cessão onerosa depende de aprovação por parte do Tribunal de Contas da União.

Mais uma vez, no caso do leilão do excedente, o Brasil estará na contramão do resto do mundo. “A participação governamental de 653,17 bilhões de reais corresponde a 59% da receita líquida total, muito menor que a parcela do governo de países produtores e exportadores de petróleo. Na Noruega, essa participação é de 76%. Na Arábia Saudita, de 100%, em razão do monopólio estatal de uma empresa pública”, compara Lima.

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GUEDES QUER FICAR COM 100 BI PARA OS JURADOS DA DÍVIDA, SÓ NÃO COMBINOU COM OS POLÍTICOS. ESTRELLA VÊ NO LEILÃO DOS EXCEDENTES DA CESSÃO ONEROSA O FIM DE UM PROJETO DE PAÍS E TALVEZ DA PETROBRAS TAMBÉM

Em 2010, quando foi definido o modelo regulatório de exploração e produção no pré-sal e áreas estratégicas, estabeleceu-se que a União poderia ceder onerosamente (mediante remuneração) à Petrobras, sem a necessidade de licitação, o exercício das atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural em áreas não concedidas, limitado ao volume máximo de 5 bilhões de barris de óleo equivalente. Ao mesmo tempo, a companhia faria um aumento de capital para elevar sua capacidade de financiamento de investimentos, em especial no pré-sal. O manancial das áreas não concedidas revelou-se, no entanto, três vezes superior àquela estimativa e totaliza 15 bilhões de barris, segundo avaliação da Agência Nacional do Petróleo baseada em dados da Petrobras.

O problema, conclui-se, não é o leilão do excedente da cessão onerosa, que foi um mecanismo legítimo para capitalizar a Petrobras, mas a baixa participação governamental. Nos termos em que está definido, o leilão “não é bom negócio para a União nem para a Petrobras. Esses excedentes estão localizados na região mais promissora da província petrolífera e poderiam gerar uma extraordinária renda para a União e todos os estados e municípios brasileiros, caso explorados em parceria entre o Estado brasileiro e a Petrobras”, alerta a Aepet.

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Às perdas para a estatal decorrentes da sua pequena participação na liquidação do excedente da cessão onerosa inclui-se  a redução da sua produção própria com a entrada de sócios nos campos licitados. A definição de pagamento por parte das empresas ingressantes de uma compensação pelos investimentos feitos pela companhia e pelo mais que provável declínio da sua curva de produção não suprirá a entrega permanente dos mananciais de petróleo e gás para concorrentes estrangeiras como Shell e BP (Reino Unido), ExxonMobil e Chevron (EUA), Total (França), Wintershall Dea (Alemanha),CNOOC e CNODC (China), Equinor (Noruega), QPI (Catar), Petrogal (Portugal), Ecopetrol (Colômbia) e Petronas (Malásia), habilitadas a participar do leilão ao lado da Petrobras, a única brasileira.

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A ocupação do pré-sal por estrangeiras aumentará ainda mais a perda de soberania nacional sobre esses recursos, acelerada após o impeachment. A Petrobras, no início majoritária no pré-sal, hoje tem a menor parte. “Considerando os cinco leilões e a cessão onerosa, a Petrobras tem 41%, enquanto as empresas estrangeiras, privadas e estatais, têm acesso a 59% do total de um volume estimado em 27,21 bilhões de barris de petróleo equivalente”, contabiliza Coutinho.

Vários leilões, como o de Carcará, em 2017, foram marcados por polêmicas. Para o geólogo Luciano Seixas Chagas, “não foi por inocência ou falta de aviso que se deixou de ampliar a produção de gás da Petrobras em ao menos 35 milhões de metros cúbicos por dia, que será proveniente de Carcará, ou em 70 milhões, se incluirmos Carcará Norte, praticamente doados à Equinor e depois à Exxon”. Os diretores que se abstiveram de exercer o direito da Petrobras sabiam dos estragos que causariam, acusa Chagas.

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O leilão dos excedentes da cessão onerosa envolve os filões mais ricos do petróleo brasileiro e marca o fim de uma possibilidade de desenvolvimento, analisa o geólogo Guilherme Estrella, chefe de uma das equipes que descobriram as reservas em 2006: “O pré-sal despertou a preocupação de países e empresas que se sentiram ameaçados pelo surgimento de novo protagonista no palco geopolítico e se mobilizaram para modificar radicalmente a trajetória do Brasil como nação soberana. Afastaram a presidente da República e imediatamente investiram contra o ponto central do marco regulatório, extinguindo a obrigatoriedade de a Petrobras ser a operadora única das atividades de exploração e produção”.

Estrella prossegue: “Todo o poder de aplicação de uma política desenvolvimentista integral que o governo brasileiro exercia através da Petrobras foi simplesmente extinto e todo benefício que o pré-sal pudesse gerar para a indústria brasileira foi repassado para as empresas estrangeiras e seus fornecedores. Não bastasse, minimizou-se a obrigatoriedade do conteúdo nacional e concedeu-se às estrangeiras uma imensa isenção tributária de importação para elevar ainda mais a atratividade das operações”.

A participação do governo, estimada em 653 bilhões, poderia passar de 1 trilhão de reais

Entretanto, prossegue o engenheiro, “a Petrobras permanecia como a operadora única das atividades de produção de cerca de 12 bilhões a 15 bilhões de barris nas áreas da chamada ‘cessão onerosa’, com volumes de reservas que excediam o volume original contratado. Produzir estas áreas é questão de sustentabilidade para a Petrobras a médio e longo prazo e a anulação dos contratos traz ameaças ao futuro da companhia”.

*Carlos Drummond é Editor da revista CartaCapital