Carlos Leite: “Se o século XIX foi dos impérios e o XX, das nações, esta é a era das cidades”
Valor Econômico – 17/06/2016
Se o século XIX foi dos impérios e o XX, das nações, esta é a era das cidades, afirma o arquiteto Carlos Leite, de 50 anos, doutor em urbanismo pela Universidade de São Paulo e com pós-doutorado pela Universidade Politécnica da Califórnia. Sujeitas a "adoecer", elas podem requerer uma "acupuntura localizada ou uma cirurgia geral", diz o urbanista, professor da Universidade Mackenzie e autor do livro "Cidades Sustentáveis, Cidades Inteligentes". A seguir, trechos da entrevista ao Valor.
Valor: O senhor diz que o século XXI é o século das cidades. Por quê?
Carlos Leite: O planeta está cada vez mais urbanizado. Projeções indicam que, até 2050, de cada três pessoas no planeta, duas viverão nas cidades. O século XIX foi o dos impérios, sendo o inglês o maior de todos. O século XX foi o das nações, sendo a maior de todas os Estados Unidos, e este é o século das cidades, que são muito potentes e poderosas. São Paulo, por exemplo, está muito mais conectada com algumas cidades do mundo do que com o próprio Brasil e do que o Brasil com o resto do mundo. Por isso há uma discussão mundial por cidades mais justas, equilibradas, funcionais e com mais qualidade de vida.
Valor: A vitalidade urbana é uma maneira de agregar valor econômico?
Leite: As cidades são organismos vivos. Às vezes, adoecem. O tratamento envolve uma acupuntura localizada ou uma cirurgia geral. Um trecho da cidade degradado é muito ruim, principalmente se estiver em uma região central, onde geralmente há boa infraestrutura urbana. Aquele trecho poderia estar mais bem ocupado, com mais pessoas morando ou trabalhando. Se houver uma intervenção urbanística ali, muito rapidamente será agregado valor para a sociedade, que vai ver uma região mais qualificada, e valor monetário, pois haverá uma valorização econômica dos imóveis.
Valor: Poderia dar um exemplo?
Leite: A região do High Line, em Nova York, é uma antiga área industrial que ficou meio esquecida durante muito tempo. Um viaduto onde passava uma linha de trem para abastecer as indústrias ficou inoperante e chegou a ser cogitada sua demolição. Após o projeto que transformou esse viaduto em parque linear, houve uma reação quase imediata com o lançamento de hotéis, residências, escritórios. A região, que antes era meio morta, passou a ser atrativa economicamente e hoje é a 11ª maior atração turística do planeta. Isso tudo foi resultado de uma pequena operação urbana, um tipo de parceria público-privada (PPP).
Valor: Como devem ser encaminhadas as PPPs na questão urbana?
Leite: É necessário fazer operações urbanas menores, mais focadas e ágeis para atrair a iniciativa privada. Aqui em São Paulo há o projeto de uma PPP do Governo do Estado e da Prefeitura para a construção de moradias populares no terreno da antiga rodoviária, no bairro da Luz. Modelos como esse são promissores, pois são mais simples, ágeis e, por consequência, mais atrativos ao mercado privado.
Valor: O Elevado Costa e Silva, o Minhocão, em São Paulo, seria exemplo de uma potencial High Line?
Leite: O Minhocão está em um embate entre ser transformado em parque linear ou ser demolido. É um pouco diferente de Nova York, pois ali não é uma área abandonada. Você vai ao elevado nos fins de semana e encontra de tudo, de teatro a festa junina. É bacana, tem a ver com o momento que a cidade vive hoje, quando as pessoas estão indo para as ruas e ocupando os espaços públicos. Isso é ativismo urbano. O fechamento da avenida Paulista aos domingos é outro exemplo. Em um primeiro momento, houve certa resistência das pessoas. Hoje, há 80% de aprovação da população. No caso do Minhocão, acredito que poderia se converter em um parque linear como o High Line. É uma medida rápida para resolver a questão, além dos estudos mostrarem que é caríssimo destruir o elevado.
Valor: Isso agregaria valor à região?
Leite: Em um momento em que o mercado imobiliário se volta para o centro, derrubar o Minhocão seria um sonho dos deuses para as construtoras. Mas acho que, mesmo sem demolir e elaborando um belo projeto, será agregado valor naquele entorno e aquilo tudo vai mudar de cara, como aconteceu com a região do High Line.
Valor: Como funciona o conceito de que as cidades devem ter densidade com diversidade de uso?
Leite: A tendência do urbanismo no mundo é buscar territórios mais compactos. O resultado é uma cidade mais eficiente, com menor demanda em infraestrutura. As cidades brasileiras são muito espalhadas e pouco densas. São Paulo tem uma densidade média de 78 habitantes por hectare. A densidade média razoável é de 250 habitantes por hectare. É o que nos encanta quando visitamos Barcelona, Londres ou Nova York. São lugares com muita densidade e uso diversificado com alguma miscigenação de renda dos moradores. No Brasil, precisamos parar de olhar densidade como sendo algo igual a verticalização, o que não é verdade. Barcelona tem uma densidade de 340 habitantes por hectare e nenhum prédio com mais de seis andares.
Valor: Como o senhor vê a polêmica envolvendo o aplicativo de transporte Uber nas grandes cidades?
Leite: O desafio da mobilidade urbana exige pacote de soluções. Isso inclui, claro, a melhoria dos sistemas multimodais de transporte público. Em uma cidade mais densa e compacta, a demanda por deslocamentos é menor. Além disso, há tendência de substituir o carro como um bem pelo carro como serviço. Nos Estados Unidos, os jovens não estão mais tirando carteira de habilitação. Preferem ter smartphone do que carro. Isso está chegando ao Brasil. Vamos ter menos carros e eles serão utilizados de maneira compartilhada das mais diversas formas.
Valor: Ao se deparar com tendências como o fechamento de vias para o lazer, podemos concluir que as pessoas sentem a necessidade de reocupar as suas cidades?
Leite: Sim, mas ainda é um fenômeno das grandes metrópoles. Nas cidades médias não é bem assim e há, inclusive, um movimento em sentido oposto. Por causa da violência urbana, que se espalha e infelizmente contamina o urbanismo, as pessoas em localidades menores estão se abrigando em condomínios fechados, usando carro para tudo. Logo, ainda é um fenômeno restrito dos grandes centros.