Daniel Aarão Reis: "O dia depois"
Enquanto pesquisadores tentam encontrar vacina, bancos e investidores já têm a sua, graças à intervenção de bancos centrais
Daniel Aarão Reis
O Globo - 16/05/2020
Como será o dia depois da pandemia?
Há opiniões positivas: Michel Maffesoli, sociólogo, fala do reencantamento do mundo. Artistas anunciam dias melhores. Mais preocupação com a saúde, a ecologia, a organização das cidades. E também reconhecimento do papel do Estado na regulação dos mercados e, sobretudo, na organização dos serviços públicos essenciais — saúde, educação e segurança, em contraste com a degradação progressiva, evidenciada no combate ao maldito vírus, mesmo em sociedades opulentas, como os EUA. Pesquisa realizada na França aponta para a expectativa de um mundo mais solidário, sóbrio, democrático, preocupado com o meio ambiente.
São perspectivas construtivas, animadoras, viáveis. Em tese. Se forem enfrentadas e neutralizadas outras tendências, ameaçadoras.
Uma delas é o assustador crescimento da concentração da renda e das desigualdades sociais. Como demonstrou Thomas Piketty, um processo de décadas. Aprofundado com a crise de 2008. Ganha velocidade no curso da pandemia atual e, se as coisas continuarem assim, a situação pode piorar. Stéphane Lauer, em recente artigo, apontou para uma economia em crise face a sólidos mercados financeiros. Milhões de desempregados, dezenas de milhares de mortos, parentes, amigos e entes queridos angustiados e enlutados, empresas em dificuldades, à beira da falência. Entretanto, as bolsas de valores vão bem, obrigado. O índice Dow Jones está 25% superior ao que era há alguns anos. Os lucros das grandes empresas suscitam euforia. A especulação com títulos e moedas corre livre e sem freios.
É razoável? Não, não é razoável.
Enquanto pesquisadores tentam encontrar uma vacina, os bancos e os investidores já têm a sua, graças à intervenção dos principais bancos centrais. A receita formulada para combater a crise de 2008 é adotada mais uma vez. Produzirá os mesmos resultados: os ricos ficarão mais ricos. Os poderosos, mais fortes. Thomas Philippon, da New York University, registrou que apenas cinco empresas — Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft — detinham, em 2019, 20% da riqueza acumulada pelas maiores 500 empresas norte-americanas. São elas as que mais crescem no curso da pandemia.
Ao mesmo tempo, multiplicam-se as ameaças às liberdades e à democracia. Na China e em outros países, aperfeiçoam-se softwares, disseminam-se câmeras para monitorar cidadãos através do reconhecimento facial. Adverte Noah Harari: “tecnologias imaturas e perigosas estão sendo utilizadas”. Os governos ampliam poderes “especiais” de controlar, investigar, perseguir, multar e pôr na cadeia. Operadoras telefônicas informam sobre a circulação e compartilham dados de geolocalização. Cidadãos são estimulados a delatar comportamentos “impróprios”. Houve lugares em que se cogitou autorizar a polícia a entrar em domicílios privados, sem autorização judicial, para saber se os residentes estariam contaminados. Aconteceu na idílica Dinamarca, mas a “medida” não chegou a ser autorizada.
Nestes horizontes sombrios, contudo, há luzes piscando.
Na Holanda, 170 intelectuais assinaram um manifesto propondo caminhos a serem considerados no futuro imediato: questionar a economia obcecada com o crescimento do PIB, selecionar o que deve ou não crescer, segundo as necessidades das pessoas; redistribuir a riqueza; transformar a agricultura, valorizando a biodiversidade e a produção local; reduzir o consumo e as viagens; congelar as dívidas de trabalhadores, pequenos empresários e países mais pobres. O italiano Franco Berardi, o Bifo, propõe meditar sobre uma sociedade livre da compulsão da acumulação e do crescimento econômico: “precisamos de comida, afeto e prazer, ternura, solidariedade e frugalidade”. Revalorizar o útil, o valor de uso em contraposição à abstração do valor de troca imposto pela dinâmica de um sistema capitalista predador.
Para depois da pandemia, à espera das que virão, Bifo e os holandeses sugerem sendas. Não será fácil tomá-las. Se tomadas, porém, mais do que salvar vidas, poderão tornar a vida melhor.
Daniel Aarão Reis é historiador.