Do que se fala quando se fala em imprimir dinheiro
Marcelo Roubicek
Nexo Jornal – 11/05/2020
Diante de crise causada pela pandemia do novo coronavírus, alguns economistas vêm defendendo a emissão de moeda pelo Banco Central. O ‘Nexo’ conversou com dois professores para entender o debate.
A pandemia do novo coronavírus abriu uma crise econômica de enormes proporções no Brasil e no mundo. Se as previsões de órgãos internacionais se concretizarem, 2020 poderá marcar a maior recessão mundial desde 1929, ano em que eclodiu a Grande Depressão.
Em meio às perspectivas ruins, as atenções se voltam para os governos como agentes que podem atenuar os efeitos negativos da crise. O aumento de gastos públicos e a adoção de políticas de renda para apoio da população mais vulnerável estão entre as demandas defendidas por muitos economistas em meio à pandemia e adotada por diversos países.
Em paralelo a isso, no Brasil e no mundo, outra ideia tem aparecido como alternativa para combater a crise econômica: imprimir dinheiro. No Brasil, a prática foi defendida por economistas como o ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles e a professora da Universidade Johns Hopkins, Monica de Bolle. O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a levantar a possibilidade, indo na contramão do que defendeu o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto.
Abaixo, o Nexo explica o que exatamente significa falar sobre “impressão de dinheiro” e por que essa ideia gera discordâncias entre economistas.
O que é imprimir dinheiro
“Imprimir dinheiro” parece ser algo simples – mas não é. Não se trata de rodar as máquinas da Casa da Moeda e colocar mais notas em circulação. Isso porque o controle de quanto dinheiro de fato circula na economia não cabe à Casa da Moeda, e sim ao Banco Central. Na prática, quando se fala em “imprimir dinheiro”, está se falando em emitir moeda.
O Banco Central é a autoridade monetária do país. Ele tem diversos instrumentos para tentar colocar mais dinheiro em circulação na economia. Ele pode, por exemplo, mudar regras para pôr mais dinheiro à disposição dos bancos comerciais, com a intenção de aumentar os empréstimos. Outra alternativa é baixar a taxa básica de juros, o que estimula que novos empréstimos sejam tomados e mais dinheiro circule na economia.
Quando o governo federal aumenta gastos, ele também está colocando dinheiro na economia. Esses recursos podem vir da arrecadação de impostos ou do endividamento do governo, com a emissão de títulos de dívida. Os títulos geralmente são negociados com o setor privado – essa costuma ser a origem dos recursos que o governo toma emprestado.
Quando economistas falam em imprimir dinheiro, em geral a ideia é financiar o Tesouro pelo Banco Central, ao invés de com recursos privados. Isso significa que o Banco Central irá comprar títulos do Tesouro, que é responsável por administrar os recursos financeiros do governo federal. Com isso, a autoridade monetária do país transfere “dinheiro novo” para o governo, recebendo papéis de dívida como contrapartida. Assim, o governo pode gastar esses recursos, colocando mais dinheiro em circulação e aquecendo a economia.
A questão inflacionária
A prática de “imprimir dinheiro” é polêmica entre economistas. Um dos argumentos contrários a essa prática é que ela pode levar a um aumento geral de preços.
O dinheiro é usado pelas pessoas para comprar mercadorias e serviços. Mesmo que o governo aumente a quantidade de dinheiro em circulação, os bens e serviços do país continuarão os mesmos. O que vai acontecer é que vai faltar riquezas e sobrar moeda. A consequência imediata disso é um aumento nos preços, ou seja, a inflação.
Por meio desse processo, o dobro de dinheiro em circulação vai acabar comprando a mesma quantidade de bens e serviços. O resultado será a desvalorização da moeda.
No passado, o Brasil já optou pela emissão de moeda como forma de financiar gastos públicos. O caso mais famoso de “impressão de dinheiro” é o da construção de Brasília, na década de 1950. A decisão do governo de Juscelino Kubitschek acabou sendo a semente de uma escalada inflacionária que só foi plenamente controlada nos anos 1990, com o Plano Real.
Na pandemia de 2020, muitos economistas rechaçam o risco inflacionário da emissão de moeda. Isso porque a paralisação parcial da economia é um fenômeno completamente novo, que diminui o ritmo da atividade econômica a níveis sem precedentes. Segundo esse argumento, por não se tratar de um contexto normal, o aumento da quantidade de moeda não vai elevar a demanda de uma forma convencional – e sim garantir o mínimo para sobrevivência das pessoas. A emissão de moeda não se traduziria em aumento generalizado dos preços, porque a velocidade de circulação de dinheiro na economia seguiria muito baixa. Mas essa opinião não é um consenso entre economistas.
A questão da taxa de juros
Outro problema apontado por alguns economistas é que emitir moeda pode levar a uma queda na taxa de juros. Isso porque com mais dinheiro circulando, mais dinheiro transitará nos bancos; isso criará um descompasso entre oferta e demanda de dinheiro no mercado interbancário, aquele onde bancos emprestam entre si a prazos curtíssimos. A taxa de juros usada nessas operações é a taxa Selic, que é a taxa básica de juros da economia. Por mais que o Banco Central defina uma meta para a taxa de juros, esse valor não é definitivo – a taxa efetiva depende da atuação do Banco Central no mercado de dinheiro, conforme explicado no vídeo abaixo.
Com mais dinheiro à disposição dos bancos, a tendência é que o preço desses empréstimos interbancários (os juros) caia – levando a uma queda na Selic efetiva. Isso incentiva bancos a direcionarem dinheiro para lugares onde a remuneração é maior que a oferecida pelos títulos públicos, que têm como retorno a Selic. Isso pode levar a um aumento no crédito para empresas e famílias, o que, por sua vez, pode gerar inflação.
Uma forte queda na taxa de juros pode significar o abandono do sistema de metas do Banco Central. A autoridade monetária normalmente define uma meta para taxa básica de juros e atua negociando títulos no mercado para garantir que essa meta seja cumprida. Com a emissão de moeda, o “mercado de dinheiro” sofre um choque que pode levar a um descolamento entre a taxa efetiva e a meta, sinalizando que o governo está abrindo mão dos mecanismos tradicionais de controle inflacionário. Isso porque os juros costumam ser o instrumento mais utilizado pelo governo para tentar controlar a inflação. Em um país com um grave histórico inflacionário, como o Brasil, esse movimento pode ser mal recebido pelos agentes do mercado.
Além disso, com a queda na taxa de juros, o diferencial de remuneração entre títulos públicos brasileiros e de outros países mais ricos cairia. Isso levaria a uma saída de moedas estrangeiras do país, uma vez que os investidores preferirão colocar seu dinheiro em países com menor risco e/ou maior remuneração. Assim, a queda da taxa de juros decorrente da emissão de moeda poderia elevar ainda mais o câmbio, que reflete o preço da moeda estrangeira. Isso, por sua vez, pode atingir o preço de produtos importados ou de bens que são produzidos com insumos comprados no exterior.
Duas análises sobre a emissão de moeda na crise
O Nexo conversou com dois economistas sobre a opção de “imprimir dinheiro” em meio à pandemia.
Joelson Sampaio, coordenador do curso de economia da FGV (Fundação Getulio Vargas) em São Paulo
Victor Leonardo de Araújo, professor de economia da UFF (Universidade Federal Fluminense
Como avalia a ideia de emitir moeda em meio à crise da pandemia?
JOELSON SAMPAIO Eu acho desnecessário no momento. Acho que o governo pode explorar mais o mercado de crédito via dívida. O governo ainda tem essa opção, e vale mais a pena explorar o financiamento via dívida [venda de títulos ao setor privado] do que via emissão de moeda.
Há essa possibilidade, e ela, a princípio, teria menos prejuízo para a economia do que a emissão de moeda. Hoje, ainda temos uma inflação muito baixa e uma atividade econômica muito lenta, mas a gente poderia perder um pouco esses efeitos se a gente partisse de cara para a emissão de moeda. Então, eu ainda exploraria bastante o financiamento via dívida.
Estamos com a taxa de juros muito baixa – acho que ainda há espaço para abaixar ainda mais, sou favorável a uma redução ainda maior da taxa de juros. Então daria para financiar a juros baixos e pagar a dívida depois. O Brasil pode manter essa linha de dívida e aí sim, [pensar em imprimir dinheiro] numa eventual necessidade de pensar num plano B. Não sou necessariamente contra [imprimir dinheiro], mas colocaria como plano B. Não pensaria nisso de imediato.
VICTOR LEONARDO DE ARAÚJO Sou a favor. Sou a favor de políticas agressivas do Estado neste momento, para permitir que a economia possa sair do buraco em que ela se encontra. É uma forma de enfrentar não só a pandemia como a crise econômica que está vindo junto. Se você entender que [imprimir dinheiro] é um instrumento que vai dar suporte a esse tipo de política, sim, sou a favor.
Faço uma ressalva sobre a forma como a questão vem sendo colocada. Acho que, na verdade, não existe um dilema entre aumentar o gasto e financiar com emissão de moeda ou com títulos de dívida. Acho que [deve haver] um mix entre essas duas coisas, a partir do momento em que você precisa regular o estoque de moeda da economia e também a taxa de juros. A emissão de títulos públicos vai ser feita para resgatar uma parte dessa base monetária para não perturbar a política da regulação da taxa de juros e da liquidez da economia.
Emitir moeda neste momento irá gerar inflação? Por quê?
JOELSON SAMPAIO Vai, provavelmente. A grande justificativa de quem defende [imprimir dinheiro] é que inflação está num nível muito baixo e a atividade econômica está num nível muito baixo. E que, portanto, haveria espaço para isso. Tudo isso é verdade. Mas acho que o sinal não seria positivo. Acho que ainda temos espaço para usar a dívida em vez da emissão.
VICTOR LEONARDO DE ARAÚJO Não, não vai gerar inflação. Fazendo um resgate do debate teórico, a ideia de que a moeda causa inflação pressupõe uma economia aquecida, operando nos limites da capacidade produtiva. E também pressupõe uma economia fechada, porque o excesso de demanda pode ser suprido por importações, dadas as condições das contas externas. Mas, mesmo nesse modelo que se identifica mais com a chamada ortodoxia econômica, a economia está muito distante do limite da capacidade. Então você não teria nenhum risco inflacionário.
Marcelo Roubicek é economista.