Eduardo Domingues - Termômetro na portaria, 'guarda-roupa da rua', mais ciclovias: a cidade pós-pandemia
Eduardo Domingues
O Globo
15/05/2020
Pessoas que usam máscaras protetoras andam de bicicleta em Wuhan, a cidade chinesa mais atingida pelo surto de doença por coronavírus, na província de Hubei, em 14 de maio de 2020. © Reuters / Aly Song
Conceituar cidade é tarefa difícil, por ser um fenômeno social atemporal, que assume características distintas em cada época e para cada comunidade. A partir da vasta e bela literatura existente sobre surgimento e transformações das cidades, destacam-se duas características comuns à maioria delas, em qualquer tempo e lugar: organização do excedente de produção e espaço comum (público) onde são vividas as questões de interesse da comunidade e as relações sociais. Neste período de pandemia e confinamentos, vemos que as atividades de produção e distribuição são organizadas e adaptadas, mal ou bem, às necessidades presentes. Pode-se dizer o mesmo dos espaços públicos? Como existe cidade sem contato social, sem vivência pública? Quais adaptações as cidades precisarão depois desta pandemia?
É prematuro pensar que, em breve, viveremos o período da pós-pandemia. O provável é que esta pandemia de Covid-19 não seja a última que enfrentaremos. O Relatório “Fronteiras 2016 sobre questões emergentes de preocupação ambiental”, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, apontou que cerca de 60% das doenças infecciosas em humanos são zoonoses e que, em média, a cada quatro meses surge uma nova infecção em humanos. A destruição do ambiente natural reduz os habitats de espécies isoladas e as colocam em contato com humanos, propiciando novos tipos de infecções. O aumento populacional de pessoas e de rebanhos animais confinados é outro fator que proporciona condições favoráveis à disseminação de novos vírus. Sem falar da globalização, da falta de saneamento e da precariedade das habitações, que tendem ampliar essa propagação. Falamos, portanto, em cidade da pandemia.
Lidar com doenças não é novidade para o planejamento urbano. Desde o fim da Idade Média, medidas sanitárias são aplicadas nas cidades para combater epidemias, com alargamento de ruas, abertura de espaços públicos, áreas verdes, sistemas de abastecimento de água e coleta de esgotamento sanitário. Na Modernidade, as cidades industriais criaram guetos, cortiços e periferias que desafiaram o urbanismo. Este urbanismo higienista, que trouxe melhora de índices de mortalidade, foi usado para exclusão dos pobres das áreas nobres em quase todas as suas experiências, como o “Bota-Abaixo” de Pereira Passos no Rio de Janeiro. A derrubada de cortiços e casarões velhos obrigou a população mais pobre a se deslocar para os morros e subúrbios, sem transporte, saneamento ou serviços de educação e saúde.
Não é difícil imaginar que o planejamento urbano e as tecnologias existentes possam adaptar as cidades para a vida e a produção com baixo risco de contágio. Avenidas exclusivas para veículos de transporte, ciclovias para percursos de média distância e ruas para pedestres apenas nos bairros. Edifícios empresariais com antessalas de esterilização e guarda-roupa para as “vestimentas de rua”, checagem de temperatura e scanners que visualizam os vírus — estes a serem produzidos em larga escala pela China. No plano individual, mudança de hábitos: andar a certa distância de outros indivíduos, a menos que se tenha autorização do Estado para constituir família e manter contato corporal em público. Substituição de abraços e apertos de mão por acenos; atividades de lazer como teatro, shows, banhos de mar, sempre à distância segura e com limitação de número de participantes.
A adaptação das cidades capitalistas às epidemias não é de todo inviável, mas sendo o próprio capitalismo uma das causas das epidemias, é ingênuo acreditar que essas cidades seriam usufruídas igualmente por todas as pessoas, e que países do capitalismo periférico teriam condições de implementar tais modelos em larga escala. Este modelo de cidade da pandemia aprofunda a concentração de renda, produção e consumo em massa e toda a degradação ambiental que lhe é inerente.
Hoje, as cidades são dos entregadores, dos caixas de supermercados, dos agentes de saúde e de segurança, de parte da população de baixa renda que não tem moradia adequada, bem como de parte das classes média e alta que, podendo ficar confinadas, se recusam a reconhecer a evidente calamidade do sistema de saúde. É uma nova máxima: “Cada um faz a sua parte desde que eu possa fazer o que eu quiser.”
Nem tão iguais assim
Em seu TedTalk de 2015, Bill Gates alertava para o risco de pandemias e para as áreas pobres e insalubres, nas quais as infecções por novos vírus poderiam se espalhar em velocidade aterrorizante. Infelizmente, sua preocupação não gerou um movimento mundial de distribuição de renda e melhoria das habitações. Se o capitalismo produz pobres, pensar o lugar deles nas cidades não é apenas humanitário, é essencial. Hoje, somos igualmente sujeitos na pandemia, mas desiguais no confinamento.
Assim, do confronto entre a realidade da pandemia e a história das cidades e do planejamento urbano, emergem duas questões. Somos responsáveis por ofertar condições mínimas de habitação, saneamento e serviços públicos para que todos, havendo ou não necessidade de confinamento, usufruam do direito à moradia social e ambientalmente digna? Buscaremos um modelo de cidades locais, humanas e sustentáveis, no ideal de um futuro em que possamos viver a pós-pandemia e, quem sabe, o pós-capitalismo?
Eduardo Domingues é doutor em Direito da Cidade, professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNIRIO e consultor jurídico do Ibam.