Fernando Abrucio: “Eleição de 2016 será mais o aumento da fragmentação partidária do que uma renovação clara”
Valor Econômico – 24/06/2016
Título original: Eleições locais serão decisivas
Após quase dois anos de crise política, as eleições municipais serão o primeiro grande teste para saber o que pensa o conjunto do eleitorado acerca do furacão que tomou conta do país. Não há melhor termômetro das preferências democráticas de uma nação do que o voto. Pesquisas de opinião e manifestações de rua são importantes, contudo, nunca poderão substituir as urnas, que possibilitam o debate e a participação de todos os cidadãos. Claro que estará em jogo, principalmente, os projetos para as cidades brasileiras, mas, desta vez, ao componente local será agregado uma lista de questões que dizem respeito ao futuro da democracia brasileira.
As eleições municipais serão, antes de mais nada, o primeiro teste para o núcleo do sistema partidário brasileiro, que desde de 1988 é formado pela trinca PMDB-PSDB-PT. O mais provável é que o Partido dos Trabalhadores seja o mais atingido, pois o antipetismo cresceu demais no país, especialmente nos Estados do Centro-Sul. Mesmo que o impeachment venha a ser derrubado no Senado, o PT tende a reduzir substancialmente de tamanho.
Os pemedebistas pelo Brasil afora tendem a ser menos identificados pelo seu partido, sendo mais lideranças regionais e locais do que membros orgânicos de uma agremiação partidária. Mas, desta vez, por ocuparem a Presidência da República, por causa da exposição do caso Eduardo Cunha - o político mais rejeitado do país - e por terem ainda outros políticos envolvidos na Operação Lava-Jato, é bem provável que o eleitor, não só o dos grandes centros, associe a legenda à visão negativa sobre a classe política. Vai ser difícil, por exemplo, apresentar-se como candidato do PMDB prometendo a renovação política.
É por essa razão que o PSDB também pode ser afetado. O mais provável é que seja menos afetado do que a dupla PT-PMDB. Porém, será difícil aparecer como o polo renovador por excelência. Seja porque alguns nomes, embora em menor número, foram envolvidos na Operação Lava-Jato como em outros escândalos recentes, seja porque o PSDB é, atualmente, governista no plano federal, é será difícil colher louros disso em outubro. No curto prazo, ser apoiador do Executivo federal não é a melhor coisa do mundo pois as crises econômica e social continuarão fortes ainda no segundo semestre.
Na verdade, existem pesquisas que mostram uma postura do eleitor completamente avessa à política tradicional. Talvez por essa razão que o governador Geraldo Alckmin tenha construído a candidatura de João Dória, um "outsider" em relação à política dos últimos anos. Isso foi feito, aliás, numa grande briga com a cúpula partidária local. Ninguém sabe se esse movimento dará certo, mas ele certamente representa uma resposta ao furacão político que tomou conta do país.
O interessante é notar que muitos construirão uma imagem de novidade, mudando inclusive de partido, mas já têm uma história no sistema político. O quanto isso será percebido pelo eleitor, só saberemos no final da campanha. De todo modo, um modelo de candidato está ganhando força: o que parece ser diferente de tudo que está aí - para lembrar um velho slogan do PT, quando era a maior novidade do sistema político. Obviamente que Romário e Russomano não são a mesma coisa, bem como os candidatos-policiais que se multiplicam pelo país não podem ser simplesmente comparados aos nomes lançados pela Rede ou pelo PSOL. Porém, eles se equiparam no propósito de mudar em 180 graus a política brasileira.
Construir-se como novidade, no entanto, talvez não seja suficiente para ganhar as eleições. É preciso encontrar o discurso que atraía o eleitor e pesquisas qualitativas mostram que eles querem, no âmbito local, três coisas: serviços públicos de qualidade, honestidade-sinceridade e capacidade de mostrar que têm poder de realização.
Tudo isso será essencial, mas não se deve esquecer a máxima da demografia eleitoral brasileira: a maioria dos eleitores do país é formada pelas classes C, D e E. Neste sentido, sem conquistar os mais pobres, as pessoas que moram na periferia no caso dos centros urbanos, ninguém se elege prefeito. O novo pode estar no nome, no estilo de fazer política e na forma das propostas. O que permanece como chave para ganhar pleitos majoritários é chegar à maioria de um país com muita pobreza e desigualdade. Este eleitorado é exatamente aquele que mais está sendo atingido pelas crise econômica e social. Como estarão estes estratos sociais em outubro? Provavelmente, com mais sede de políticas públicas num país - e em municípios - com menos recursos.
Mesmo com tantos políticos querendo se apresentar como novidade contra o "sistema carcomido" e com tanta gente na sociedade reclamando por renovação, não me parece que todos os passos para isso foram dados até o momento. Primeiro porque o debate sobre o impeachment e o imbróglio da Operação Lava-Jato estão ocupando demais a atenção da sociedade. Em segundo lugar, as estruturas partidárias, da grande maioria das legendas, não sofreram ainda modificações relevantes. Agremiações partidárias novas apareceram, mas não há nenhuma pesquisa que demonstre que em outubro elas estarão maduras para ter o papel que o PT teve na eleição de 1988. Sempre pode haver surpresas em eleições, mas talvez o que vejamos em 2016 será mais o aumento da fragmentação partidária do que uma renovação com um sentido claro.
De todo modo, uma coisa obrigará os políticos a serem, no mínimo, mais criativos: a mudança na regra de financiamento de campanha, juntamente com encurtamento de seu tempo de realização. A era do marketing político grandioso acabou e a maioria dos políticos está perdida. Levam vantagem os mais conhecidos, sobretudo os que têm nos meios de comunicação e, em menor grau, nas igrejas o seu palanque cotidiano. Mesmo assim, dado o grau de desconfiança do eleitor, eles terão de mostrar que são mais do que um produto. Falta de naturalidade e percepção de que o candidato não é honesto-sincero serão pontos estratégicos para derrubar candidaturas.
Além disso, a maioria terá de chegar mais perto do eleitor, numa campanha com bem menos recursos. Talvez isso leve a esforços mais coletivos, a uma melhor organização de grupos para apoiar seus candidatos ou partidos preferidos. O problema é que o tempo para organizar essa nova maneira de se fazer campanha será extremamente curto.
Há outro fenômeno mais geral que vai marcar a eleição de 2016: a discussão sobre o papel dos governos subnacionais, mormente os municípios, na provisão de serviços públicos. Em momentos de grande crise econômica e social, os poderes locais têm um enorme papel. Isso porque o desempregado, o cidadão cujo salário perde todo mês para a inflação, a família que perdeu o plano de saúde e/ou tirou os filhos da escola privada, as pessoas que não estão tendo mais dinheiro para pagar os aluguéis, a crescente população de moradores de rua e abandonados afins, todos estes, e vários outros grupos, vão bater à porta do Estado. Inegavelmente, vivemos um paradoxo: de um lado, é preciso reformular o aparelho estatal, aumentando sua eficiência e sua efetividade, mas, por outro, no curto prazo qualquer alteração, em termos de ajuste fiscal ou a implantação de novos formatos de gestão pública, não traz votos. A eleição municipal será marcada pelo fato de que a maioria dos eleitores querem mais políticas públicas, e já.
Essa situação fica mais agravada pelo quadro de quase falência da maioria das municipalidades, que se soma à bancarrota de grande parte dos Estados, o que gera maior pressão sobre os prefeitos. A Constituição de 1988 desenhou um modelo cujos serviços públicos são preferencialmente providos pelos entes descentralizados, com grande destaque aos municípios. Os governos municipais também têm um papel importante, como formuladores, em política urbana e na possível criação de novos modelos de gestão, principalmente nos casos dos médios e grandes municípios. Foi por essas vias que o poder local teve um lugar essencial no aumento de políticas sociais desde 1988. Em razão da grave fiscal do Estado brasileiro, será possível continuar nessa toada nos próximos anos? Quais seriam as soluções criativas para enfrentar essa nova realidade? Ou então seria possível usar o termômetro do "eleitor-municipal" para definir e dosar os rumos das reformas no plano federal? É importante pensar nesse último ponto, pois os congressistas votarão a partir de outubro tendo como um dos principais parâmetros de ação a voz das urnas nas eleições municipais.
E ainda há uma possibilidade, ainda pouco provável, das eleições municipais ocorrerem concomitantemente com um plebiscito sobre a realização de novas eleições presidenciais. Se Dilma voltar, ela tenderá a fazer isso, embora a engenharia para criar essa situação seja extremamente complexa.
De todo modo, eleições municipais poderão dar um retrato sobre o que o conjunto do eleitorado quer da política para além das crises que assolam Brasília. Qualquer renovação do sistema político não se esgotará, em hipótese alguma, em 2016, mas essa poderá ser a eleição que apontará primeiramente os rumos que poderão ser tomados em 2018, que depois de outubro já estará ali na esquina do calendário político.
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Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP.