Fernando Abrucio: "Os efeitos da covid-19 sobre as cidades"
Fernando Abrucio
Valor Econômico, 03/7/2020
A pandemia trará um saldo negativo muito grande ao Brasil. Além do elevado número de mortes, os custos econômicos e sociais também serão altíssimos, e o país gastará pelo menos dois anos para se reconstruir, prazo que poderá ser maior se não adotar as medidas adequadas. </p> </div> <div class="wall protected-content"
O governo federal já está sentindo os efeitos em termos macroeconômicos e na percepção dominante de que seu desempenho foi ruim. Mesmos os governos estaduais, muito bem avaliados ao início, começam a perder popularidade. Mas o impacto maior será nas cidades, especialmente após as eleições municipais. Será o pior momento para ser prefeito em todo o período recente de redemocratização.
Apesar da maior parte dos holofotes da imprensa ter se concentrado nas ações da União e dos Estados ao longo da pandemia, os municípios já tiveram um lugar destacado até aqui, seja na regulamentação do isolamento social, seja na prestação de serviços públicos. Parte do sucesso ou do fracasso se deveu à forma como os governos locais lidaram com suas competências em relação à covid-19.
Vale realçar, no entanto, que as capacidades financeiras e de gestão das municipalidades é, na média, baixa no Brasil. De modo que os outros níveis de governo precisam ajudar e atuar conjuntamente com as cidades para melhorar os resultados das políticas públicas.
Claro que há ações locais que podem ser avaliadas em si. O rodízio do transporte coletivo na cidade de São Paulo e, principalmente, a flexibilização das medidas de isolamento social feita pela Prefeitura do Rio foram fracassos que não podem ser divididos com os outros entes federativos. A decisão do prefeito Marcelo Crivella de permitir a ida de torcidas aos estádios de futebol no dia 10 de julho é de uma irresponsabilidade sem igual na federação brasileira, mesmo que o presidente Bolsonaro tenha sido o maior incentivador para a volta dos jogos no Rio.
A pressão pela flexibilização do isolamento social, na verdade, teve muito a ver com a pressão de prefeitos sobre governadores. Não foi o único elemento neste processo, nem o principal, porque a maior causa de toda esse cenário caótico foi a falta de uma política federal efetiva de suporte às ações contra a pandemia.
De todo modo, prefeituras de vários lugares tentaram sair o mais cedo possível das restrições coletivas a atividades econômicas e sociais, inclusive brigando contra os dados científicos, tal qual ocorreu em alguns lugares do Estado de São Paulo. O problema é que se houver uma segunda onda da pandemia nestas municipalidades, o custo político de um “lockdown” ou algo parecido será bem alto.
Por enquanto, são mais conhecidas as medidas municipais de regulamentação do isolamento social, e pouco se conhece de como as políticas públicas locais têm afetado a vida dos cidadãos em meio à pandemia. Parte dos hospitais é estadual e, ainda bem, houve muita ação conjugada do município com o governo estadual, representando aqui uma vitória do federalismo cooperativo, que reduziu assim o número de mortes. No caso da assistência social, não se sabe como funcionaram os “Cras” e outras ações como, por exemplo, o trabalho com os moradores de rua.
O que se sabe, com base na literatura sobre governos locais no Brasil, é que as capacidades estatais são muito heterogêneas ao longo do território nacional, e isso pode explicar, em boa medida, as razões das maiores taxas de óbitos por mil habitantes e do caos no sistema de saúde em parcela dos municípios brasileiros. Ademais, nas regiões metropolitanas, as cidades mais pobres e/ou com maior desigualdade em suas periferias estão tendo enormes dificuldades de reduzir o impacto da covid-19. A lição que fica dessa tragédia é que o país precisa criar melhores instrumentos federativos para reduzir a desigualdade entre os níveis de governo e potencializar a cooperação intergovernamental.
Quando passar o pior momento da pandemia, as cidades terão de lidar com os escombros produzidos pela atual crise sanitária. Haverá, primeiramente, o problema de lidar com o luto das famílias dos mortos e com as sequelas (físicas e emocionais) dos que ficaram doentes. Já se sabe que o presidente Bolsonaro não fará nada em relação a isso, talvez porque o sentimento de empatia não se coaduna com a sua forma de pensar o mundo: como uma guerra permanente. Os prefeitos devem ter um papel essencial de reconstruir as comunidades locais.
Os governos municipais também terão de lidar com o difícil retorno às aulas. No Brasil, a grande maioria dos alunos do ensino fundamental 1 estuda em escolas municipais, bem como metade dos estudantes do fundamental 2, sem falar na educação infantil (4 a 5 anos) e nas creches, com provisão quase toda local.
São milhões de crianças e pré-adolescentes, em sua maioria mais pobres, que voltarão após meses de aulas virtuais, isso quando tiveram acesso a esse tipo de pedagogia educacional. Mesmo nas melhores experiências, houve perda não só de conteúdo, mas de sociabilidade, fundamental para o desenvolvimento infantil.
Reorganizar as redes de ensino constitui umas das prioridades dos prefeitos no pós-pandemia. São muitas as tarefas: será preciso fazer políticas de busca ativa para procurar alunos que evadirem da escola; criar ações de acolhimento socioemocional de crianças que podem ter perdido parentes e/ou cujos familiares podem ter ficado desempregados; e montar períodos de recuperação de aprendizagem, o que pode significar o aumento do tempo de aula, com acréscimo de professores ou de sua jornada.
Enfim, a escola vai receber uma carga social muito pesada de toda uma comunidade abalada por uma pandemia mal combatida pelo país - por conta sobretudo de Bolsonaro - e terá que fazer um trabalho que vai além da melhoria do Ideb do município. As prefeituras serão peça-chave neste árduo processo.
É provável que o impacto maior ocorra no desenvolvimento econômico local, com a quebradeira que está havendo em vários micro e pequenos negócios, além da redução das atividades das empresas grandes que estejam próximas dos municípios. A primeira consequência dessa tragédia econômica será o crescimento do desemprego, algo que desorganiza a vida das famílias e aumenta a demanda por serviços públicos e ajudas governamentais.
Além disso, jovens serão pressionados pelas famílias a buscar algum tipo de trabalho, o que tende a aumentar a evasão escolar. Poderão, ainda, ser fechados tipos de comércios, como restaurantes ou atividades de lazer, que tenham uma forte relação com a memória coletiva, tendo um efeito cultural negativo na autoimagem dos cidadãos daquela localidade. Por fim, o empobrecimento e a perda de horizontes têm o potencial de criar outros problemas sociais, como a elevação das taxas de criminalidade.
Nesse cenário tão desolador, não é possível esperar que cada município resolva sozinho tais problemas econômicos e sociais. Os governos locais não têm instrumentos financeiros ou mesmo de competência jurídica em políticas públicas para atuar em prol de uma reconstrução tão ampla do tecido social das cidades brasileiras. Cada prefeitura precisará da ajuda dos governos federal e estadual para enfrentar esses imensos desafios.
O tamanho do problema, sem dúvida alguma, é maior do que cada município pode resolver, todavia, há um espaço, mesmo que limitado, para políticas públicas locais. Mas é possível buscar parcerias para lidar com essa tragédia social. Isso significa buscar incentivar os empreendedores locais por meio de compras públicas, de ajudar os atores econômicos locais a formarem parcerias ou formas de associação para potencializar suas ações, de criar parceria com empresas, universidades ou com o Sebrae para montar cursos de capacitação para melhorar a qualidade do capital humano.
Além disso, podem ser expandidas as formas de cooperação intermunicipal. Quanto mais parcerias houver entre cidades, por meio de consórcios, haverá mais chances de buscar apoio dos governos estaduais, que também estarão com menos recursos, mas serão mais efetivos em seu processo de auxílio se o número de grupos apoiados for menor.
Quem for eleito no fim do ano enfrentará um desafio sem igual para a história recente dos governos locais. A responsabilidade será muito grande. Cabe lembrar que essa crise atingirá fortemente os cidadãos, uma vez que a maior parte dos serviços públicos é de provisão municipal. Em consequência, a sociedade terá menos paciência com o sistema político, com efeitos em cascata sobre a popularidade de todos os políticos. O dia seguinte disso levará a uma pressão maior para que o Congresso Nacional e o Executivo federal liberem mais recursos e apoios às municipalidades. Mesmo com todas as restrições fiscais, será difícil resistir a todo esse movimento.
O corolário da crise dos municípios será que o governo Bolsonaro terá de mudar seu comportamento adotado até agora junto à Federação. Ele optou por um modelo dualista de transferência de responsabilidades sem os devidos incentivos financeiros, bem como escolheu um modelo autocrático de pouco diálogo com os governos subnacionais. Esse federalismo bolsonarista não sobreviverá ao dia seguinte da eleição municipal.
Fernando Abrucio é jornalista e doutor em Ciência Política pela USP.