Flávio Aguiar: “O melhor carnaval do mundo, ou o Brasil é outra coisa”
Parodiando e invertendo Castro Alves: "Existe um povo que a bandeira empresta, Pra descobrir tanta criação e alegria…"
O que o "Classe Médião" quer é devolver o Povão às senzalas e à escravidão do trabalho precário
Rede Brasil Atual – 14/02/2018
Li, consternado, as observações de quem lamenta que o povo brasileiro se compraza com “a catarse” do desfile da escola Paraíso Tuiuti, com seu vampirão, e que um povo que assim se comporte jamais fará qualquer Revolução, sequer a Francesa. Respeito a opinião, mas discordo em gênero, número, grau, corpo e alma.
Além de se basear numa compreensão equivocada do que seja “catarse” a observação pula por cima do fato de que o Brasil é outra coisa. Não é a França tardia (como queriam os positivistas), não é a Rússia de 1917 nem o da revolução burguesa postergada (como queriam os comunistas), a China dos anos 40 (como queriam os maoistas), a Cuba de 59 (como queriam os foquistas) etc. O Brasil é o Brasil, e a gente, que fica escrevendo e pensando sobre ele, tem de entender isto, e pensa-lo a partir do que ele é, e não a partir do que a gente quer pensar que ele deveria ser. Sérgio Buarque fez isto. Raimundo Faoro, Antonio Candido, Celso Furtado…
Uma das faces do complexo de vira-lata que assola a intelectualidade brasileira é a ideia de que as outras línguas são muito mais complexas do que o português do Brasil, e por isto são “melhores” e são um sinal de como outros povos são “melhores” do que nós, embora quem pense assim talvez goste de usar a expressão “de que o nosso”, sem se misturar com ele. Em outras línguas há palavras e conceitos que não conseguimos traduzir.
Pois bem, no Brasil há uma palavra que não dá pra traduzir em outra língua: “Povão”. Como traduzir? “Das grosse Volk”? "The big People”? “Le grand peuple”? “El pueblón”? “Il grande popolo”? Não faz o menor sentido. Mas a gente sabe que no Brasil existe esta coisa chamada “o Povão”, este que inventa e se compraz com o vampirão da Tuituti, com a ala das carteiras do trabalho, com a alegoria da manipulação dos coxinhas pelas mídias reacionárias.
O que quer o Povão no Brasil? É óbvio: quer votar. Porque este é o jeito, por ora, do Povão. Porque para o Povão este é o jeito de reconduzir Lula ao Palácio do Planalto. Pode ser que não dê. Pode ser que seja uma ilusão. Mas este – está mais do que óbvio – é o jeito do Povão, hoje, no Brasil. Contra o Classe Medião, a parcela da classe média que teima em querer devolver o Povão ao lugar de onde nunca deveria ter saído: a Senzala. Para continuar a ser identificar, ilusoriamente, com a Casa Grande, onde a elite gosta de ir a Miami fazer compras e de se imaginar em Davos – aliás, nome de rua num dos bairros chiques de Campos do Jordão, o “Nova Suíça".
Pode ser que depois o Povão queira outra coisa. Mas uma coisa é certa: o Povão não é burro, ao contrário do que se pensa, à esquerda e à direita. Não vai dar murro em ponta de faca. Derrubar Temer nas ruas? Para quê? Para entronizar Rodrigo Maia? Que forças organizadas podem prometer um outro destino? Nas esquerdas reina grande balbúrdia, esta é a verdade. Lula unifica, mas de forma precária, pelas injunções legais, ou ilegais, melhor dizendo, que se tramam nos bastidores dos tribunais e debaixo das togas. O resto ainda é incógnita: Ciro? Manuela? Boulos? Wagner? Haddad? À direita, um deserto, exceto a certeza de Bolsonaro fascista e a incerteza de Marina vai com os outros.
Tem razão o Povão em hesitar, desconfiado, no Brasil: nisto que não cabe nos manuais já sabidos e decorados. Não cabe nos manuais da Revolução Francesa, da Norte-Americana, da Inglesa, da Russa, da Mexicana, da Cubana, da Chinesa, da Vietnamita, da Etc. Nem mesmo no manual do FMI o Brasil cabe. O Brasil é outra coisa.
Mas é uma coisa cheia de criatividade. Não vai fazer, esperemos, a Revolução Francesa, com sua guilhotina, nem a Cubana, com seu paredón, e olhem só no que deu a Russa e no que deu a Chinesa. Esperemos que nosso caminho seja outro.
O nosso, por mais incerto e não sabido que seja. Terra incógnita. Mas cheia de Povão, uma coisa que não existe em outras línguas nem plagas.
E sem euforias: isto não significa que sejamos melhores do que outros povos. Mas também não significa que sejamos piores nem inferiores. E este carnaval de 2018 foi o melhor do mundo e dos últimos tempos.
Flávio Wolf de Aguiar é jornalista, tradutor e professor.