Francisco Carlos Teixeira da Silva: “Trump: O Ano Zero do Desconhecido”
O discurso de Donald Trump ontem, 20 de janeiro de 2017, foi decepcionante como peça literária. Tratou-se de um amarrado de clichês.
Francisco Carlos Teixeira da Silva
Carta Maior – 30/01/2017
O Discurso Inaugural de um presidente, em especial dos Estados Unidos, é uma peça literária e política – de Abraham Lincoln até Obama, passando pelo famoso discurso de John Kennedy (1961) e a ameaçadora fala de Ronald Reagan (1981) tais falas serviram de bússolas políticas. Contudo, o discurso de Donald Trump ontem, 20 de janeiro de 2017, foi decepcionante como peça literária. Tratou-se de um amarrado de clichês, cujo único ponto marcante residiu na promessa de “tomar o poder usurpado por Washington (uma entidade fantasmática criada na ideologia da ultradireita americana e composta por uma conspiração internacional-burocrática antiamericana) e devolvê-lo ao povo” - algo plenamente copiado de uma fala de “O Cavaleiro das Trevas Ressurge”, de 2002, da franquia “Batman”... e assim mesmo fala do vilão “Bane”! De qualquer forma, adequado no “Mundo de pós-verdade” de Trump para descrever uma Washington/Gotham City... Mas, se literariamente não será citado por nenhum garoto americano em sala de aula (esperemos que não!), como Lincoln ou Kennedy, do ponto de vista político, é bastante preocupante.
Politicamente Trump combina alguns dos mais profundos (pre)conceitos (e sentimentos) políticos norte-americanos. Tais, quando agitados conjuntamente, abraçados com a bandeira norte-americana, transformam-se naquilo que Robert Paxton, para outro fenômeno, já denominou de “paixões mobilizadoras”. Talvez este seja o melhor conceito, no momento, para explicar o “fenômeno Trump”: paixões mobilizadores. No rescaldo da crise econômica mundial de 2008, no rastro da destruição de empregos e de modos de vida, Trump promete – de forma teatral, passional ao limite do caricato -, sem qualquer pudor, restabelecer um passado mítico, uma utopia benevolente plena de bem-estar e felicidade. Nesse reino da bem-aventurança, contudo, não há lugar para todos. Daí, os pilares das “paixões mobilizadoras”: a exclusividade dos americanos “genuínos”; a defesa da América e de suas fronteiras; a exclusão de tudo e todos que seja/sejam não (ou anti) americano/s. Surgem, então, retomando Peter Gay, seus “inimigos convenientes”, o “outro absoluto” – o imigrante, o mexicano e por extensão, o latino, mestiço, estuprador, ladrão de empregos, “dealer”, e degenerador da Nação. Contra este “outro” se deve empoderar a policia, levantar muros, expulsar do meio do povo, mobilizar e denunciar, mantendo a Nação em guarda. Os bons migrantes são aqueles que ele mesmo acolheu em sua casa – ou no seu leito: europeus, louros, dolicocéfalos de olhos azuis... que fornecem filhos fortes e brancos para América.
Assim, isolacionismo (em politica externa); protecionismo (em comércio exterior) e nacionalismo (em ações de defesa) tornaram-se um mantra que todos podem entender.
O Isolacionismo – uma corrente política antiga, defendida e mantida desde a época dos “Pais Fundadores” – em outro contexto histórico - da Nação Americana. Só foi, verdadeiramente, quebrada com a Guerra Hispano-Americana de 1898, quando os Estados Unidos iniciam sua fenomenal marcha imperialista. Estava, aparentemente enterrada enquanto política, por Franklin Roosevelt, com a Segunda Guerra Mundial e a criação da ONU e descartada de vez por seu sucessor Harry Truman e a criação da OTAN em 1949. O que Trump propõe, agora, é revogar o intervencionismo messiânico imperialista norte-americano: politica imperial de 1898 até as intervenções no Afeganistão, Iraque e Líbia nos nossos dias e substituí-las pelo “exemplo brilhante do poder dos Estados Unidos”, como declarou no discurso de posse no 20 de janeiro.
Lembremo-nos que após as guerras de George Bush, Obama esteve, oficial ou não oficialmente, todos os anos do seu governo “em guerra”. O custo financeiro e humano foi tremendo.
Então esse “Neoisolacionismo” seria a Paz? Dificilmente. O que Trump falou foi um “basta com a carnificina” dos americanos. Mas, prometeu duas coisas que representam claramente guerra: de um lado, que a Coréia do Norte não terá jamais mísseis intercontinentais com capacidade nuclear e, por outro, que “erradicará da face do planeta o terrorismo radical islâmico”. Como fazê-lo? Com certeza Trump não falou em enviar tropas e prometeu que não morreriam mais americanos para garantir fronteiras e governos de outros países. Eis o desconhecido...
Em matéria de econômica e de comércio exterior, mesmo antes de tomar posse, Trump começou a administrar... via o twiter. Ameaçou, com sucesso, empresas do porte da Ford, Chrysler, GM e outras, não americanas, como BMW e Nissan. A Ford e MG, quase imediatamente, e antes da posse, mudaram sem titubeio, seus planos – no mais oportunistas e espoliadores, de usar mão de obra barata e leis tolerantes com a poluição de países pobres, para maximizar lucros, em especial na transferência de parcelas pesadas de suas montadoras para o México. Já anunciaram novos projetos de plantas industriais para cidades do velho “Rust Belt” americano, como Detroit ou Pittsburgh. Num curto tempo, isso poderá resultar, de fato, em novos empregos e Trump poderá aparecer nas tvs inaugurando novas plantas industriais em áreas antes desindustrializadas do coração da América. Contudo, em algum tempo, tais plantas optarão por processos de “racionalização” e “robotização” do trabalho, expulsando do chão de fábrica o velho trabalho fordista do sonho dos eleitores operários, brancos, e radicalizados de Trump.
A maioria de tais empresas, americanas, não terão grandes prejuízos. Ao contrário, serão recompensadas por imensos cortes de impostos e pelos afrouxamento da legislação ambiental, da legislação trabalhista e a retomada massiva de combustíveis fósseis. No final do sonho, o desconhecido será, sem dúvida, o impacto de tudo isso sobre as classes trabalhadores que votaram em Trump...
No plano internacional, a política intervencionista, dirigista e protecionista de Trump provocará ondas de choque pelo mundo, mudando a face da Globalização. Primeiro entre os países “amigos”. As consequências para países como o México serão tão amplas que beiram a catástrofe. As elites mexicanas apostaram, na contramão dos governos ditos “de esquerda” da América do Sul, que recusaram a ALCA, desde 1994, numa profunda integração com os Estados Unidos. Malgrado a eterna questão da imigração, o México abriu seu mercado, privatizou o petróleo, aceitou as empresas “maquiladoras”, mesmo sem transferência de tecnologia, e beneficiou-se da geração de milhares de empregos (mesmo que menos remunerados que seus similares americanos), tudo na expectativa de uma simbiose crescente com a América. O “fenômeno Trump” foi algo inesperado, perturbado e o país, já imerso numa quase guerra civil contra o trafico, vê-se, no momento, perante o risco de total isolamento e disrupção social.
Três outras aliados “especiais” dos Estados Unidos estão atônitos e aguardam com ansiedade os primeiros atos de Trump: Alemanha, Japão e Coréia do Sul. Os três países, pilares do poder e da cooperação norte-americana, desde 1945, floresceram sob o “guarda-chuva protetor” da América. Já na campanha eleitoral, e depois de eleito, em entrevistas, e no discurso de posse, Trump referiu, ora de forma direta, ora indiretamente, a Alemanha e ao Japão como países que “que se aproveitaram” dos Estados Unidos e dos seus gastos com defesa. E da Coréia e do Japão afirmou que seria melhor que tivessem sua própria força nuclear! Para coroar toda “desordem” estratégica fez críticas, e ameaças, diretas às empresas alemães e japonesas, que estabelecidas em países pobres, explorando mão de obra miserável, exportam produtos baratos para os Estados Unidos destruindo empregos americanos.
Tanto em Tóquio como em Berlim ouve-se um silêncio aterrador.
Da OTAN, esta rede que os Estados Unidos montaram para manter e garantir seu domínio sobre o Atlântico Norte em 1949, Trump simplesmente declarou considerá-la no momento “inútil” – posto ser cara, por demais cara – em especial por ser voltada para a defesa dos países europeus frente à Rússia. Ora, nem os países europeus gastam o mínimo estabelecido nos estatutos da organização em defesa – 2% do PIB – e nem ele considera a Rússia a maior ameaça atual. Para Trump, como disse no discurso de posse, a maior ameaça “é o terrorismo radical islâmico”, e nesse campo a OTAN é inútil, ou quase isso...
Assim, esboça-se aqui uma “virada” estratégica de monta, expressa numa frase enigmática, contudo eloquente: “... vamos combater o terrorismo com nossos aliados e com novas alianças”. Eis, aí, o rascunho de uma proposta para o combate ao Terror? Seria, então, o caso de deixar a OTAN em segundo plano, dar menos ênfase aos fascistas de Kiev e aos reacionários de Varsóvia e aproximar-se de Recep Erdogan em Ankara e de Putin em Moscou? “As novas alianças” que Obama esnobou, permitindo o crescimento e empoderamento do Califado islâmico, independente da dedicação de Ankara ou Moscou aos Direitos Humanos – de qualquer forma Kiev não é nenhum exemplo! – seriam a chave para combater o “terrorismo radical islâmico”?
Mais uma vez em face ao desconhecido...
Por fim, para completar a “virada estratégica”, resta a China Popular. E, desde agora, é bom acrescentar ao nome do país “China” o adjetivo “Popular”, posto que a política de uma “Uma só China”, inaugurada por Kissinger-Nixon (visita de Richard Nixon a China foi em 1972), parece posta em questão. No grande jogo estratégico mundial, Henry Kissinger entendera – e os políticos americanos aceitaram como pedra angular de sua politica externa de forma bipartidária – que o triangulo EUA China Popular Rússia deveria ser jogado com delicadeza e cuidado, tendo em vista acuar a Rússia na Europa, facilitar a defesa do Japão e da Coréia e contar com Beijing para conter a Coréia do Norte, além de ter nos chineses um excelente parceiro econômico. Ora, já com Obama percebeu-se que tal política continha em si o germe de tornar a China uma potência hegemônica na Ásia-Pacífico e daí ameaçar os Estados Unidos.
Como conter o crescimento chinês? Obama tentou mudar o eixo do interesse vital americano do Mediterrâneo-Oriente Médio para Ásia-Pacífico. Desengajar-se da Líbia, da Síria, do Iraque e do Afeganistão. Mas, não funcionou. O Califado islâmico ergueu-se neste vazio; Israel de Netaniahu bloqueou qualquer solução de “Dois Estados Seguros em suas fronteiras”. E, acima de tudo, a Rússia ergueu-se num amplo esforço de tornar-se, com sucesso, numa incontornável potência supra-regional em aliança com a China Popular. Surgia um novo bloco de poder euroasiático.
A Administração Obama ficou presa entre o Projeto da “Área Pivô Ásia-Pacífico” e os imensos riscos emergentes do novo bloco de poder euroasiático – pesadelo dos estrategistas ocidentais desde MacKinder até Brezezinzky, passando por N. Spykman e Raymond Aron.
Trump busca cortar o “nó górdio” estratégico rompendo o “bloco euroasiático”, como Nixon trouxe a China como elemento de vulnerabilização da antiga União Soviética, por duas vias: de uma lado, uma luta total contra o terrorismo, com uma aliança firme com Israel, Turquia e Rússia, a qual a Europa terá que aceitar, por total ausência de opção; de outro, o isolamento da China Popular, via guerra tarifaria e ofensiva econômica, obrigando os países voltados, hoje, para a China, a fazer escolhas dolorosas, como na recusa da Parceria Transpacífica.
Da mesma forma, conforme, anunciou a defesa dos Estados Unidos estará ancorada num vasto programa de renovação do arsenal nuclear – conforme a Administração Ronald Reagan o fez, em 1981, e que teria sido o catalisador da derrocada da União Soviética - inaugurando uma nova corrida armamentista nuclear. Espera-se que Rússia e China Popular não tenham condições de acompanhar tal esforço. A renovação do poder nuclear e uma nova estratégia de uso e de dissuasão nuclear deverá substituir a multiplicidade de intervenções militares convencionais americanas pelo mundo, dando folego ao Estados Unidos para manter-se como a potência mundial dominante.
Os resultados são desconhecidos.