Guilherme Boulos: “Uma frente para disputar as ruas”

12/09/2015 | Política

Por Guilherme Boulos

Le Monde Diplomatique – 31/07/2015

O sinal de alarme soou. Com o avanço das pautas conservadoras – nas instituições e nas ruas – e a crise do governo petista, unir forças tornou-se uma questão de sobrevivência para a esquerda brasileira. Daí as diversas iniciativas de “frentes de esquerda”.

Que num momento como este precisamos organizar uma frente, parece claro. O que não é tão evidente é qual seriam o caráter e os objetivos dela. E, ainda, se a resposta a esses temas possibilitam a formação de uma única frente ou não.

Esse é o debate que temos hoje e que precisa ser encarado sem receios. Definir para onde queremos ir passa por entender como chegamos até aqui e os impasses que estão colocados para as forças populares hoje no Brasil.

Esgotamento de uma estratégia

O Partido dos Trabalhadores caminha para completar treze anos no comando do governo federal. Durante os dois mandatos de Lula e os cinco anos de Dilma Rousseff vimos o apogeu e o esgotamento de uma estratégia política: o projeto de avanços sociais sem reformas estruturais.

É verdade que os governos petistas melhoraram as condições de vida dos mais pobres, seja por meio da facilitação do crédito para o consumo, seja pela geração de novos empregos e pelo aumento gradual do salário mínimo, seja ainda por meio de programas sociais como o Bolsa Família, o ProUni e o Minha Casa, Minha Vida (com todos os seus limites e contradições). E a esquerda erra se não for capaz de reconhecer isso, estabelecendo sinal de equivalência com o neoliberalismo tucano.

É igualmente verdade, porém, que esses governos mantiveram intocadas as estruturas arcaicas da sociedade brasileira. Não tocaram no tema distributivo, não ousaram mexer em privilégios e não pautaram nenhuma das reformas populares tão necessárias aos trabalhadores. Além disso, conservaram o modelo de governabilidade conservadora que tem sido eficaz em garantir que tudo fique como está desde o fim da ditadura militar.

A perspectiva de limitar-se às mudanças possíveis sem conflito nem mobilização circunscreveu o projeto petista a manejos no orçamento federal e ao uso dos bancos públicos para estimular a economia. Isso foi suficiente para gerar crescimento econômico enquanto a maré internacional estava favorável. Com o crescimento, aumentava-se a arrecadação, o que permitia a reprodução do modelo.

No entanto, a maré virou após 2008 e as condições para manter a estratégia foram sendo minadas ano a ano. A margem para conciliação de interesses foi se reduzindo na sociedade brasileira. Com o avanço da crise econômica, o véu do consenso rasgou-se e o conflito social reapareceu numa cena de polarização. A partir de junho de 2013, a política transbordou para as ruas e abriu-se o período de disputa pelas saídas estratégicas.

Ao final das eleições de 2014 ficou claro que as coisas não podiam mais permanecer iguais. As condições econômicas não permitiam mais o “ganha-ganha” e as condições políticas estavam bem mais deterioradas para o governo petista.

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A saída é pela esquerda

A direita brasileira foi rápida e eficiente em construir sua própria narrativa para a crise do petismo e apresentar suas saídas. O mantra – repetido sem limites pela grande mídia – foi desmoralizar o PT como partido da corrupção e associar a crise fiscal à ideia de que o governo “gastou demais” ou aos “roubos na Petrobras”. O discurso pegou.

A saída política oferecida foi um pacote de medidas e reformas regressivas e a fragilização do poder do Executivo. Essa agenda ganhou força com a eleição de Eduardo Cunha para a presidência da Câmara e as manifestações de 15 de março.

Entre os projetos que passaram a pautar a agenda nacional estão a ampliação da terceirização, uma contrarreforma política, a redução da maioridade penal e a revisão do modelo de partilha do pré-sal.

Nesse cenário, a posição do governo Dilma foi a pior possível. O governo não apenas deixou de estabelecer agendas progressivas, como também fortaleceu as regressivas, com a aplicação de (e insistência em) um ajuste fiscal antipopular.

Editou medidas provisórias que atacam o seguro-desemprego e as pensões, aumentou compulsivamente os juros e cortou investimentos nos principais programas sociais. Se tinha com isso a pretensão de garantir a governabilidade junto à banca e à direita, tudo indica que fracassou: a instabilidade política só cresce. O que o governo conseguiu com essa política foi reduzir sua popularidade a 10% e fortalecer as saídas à direita.

Que alternativas teria? Encampar uma agenda política de reformas populares, ajustando as contas por meio de tributação progressiva aos ricos e assumindo de fato temas cruciais, como a democratização das comunicações e uma reforma do sistema político. Criar uma pauta que mobilizasse setores populares.

A situação estava dada: ou se retrocedia ou se avançava, não havia muita margem para o meio-termo. Insistir em recompor um pacto quando não havia mais condições para isso, visando evitar o conflito, apenas repôs este último num terreno mais desfavorável.

Alguns devem estar pensando: “Está bem, mas e as relações de força? O governo não faz o que quer, mas o que as circunstâncias permitem”. É verdade, ninguém faz política nas condições que escolhe. Mas também ninguém é apenas refém das relações de força, podendo sempre intervir para alterá-las. O governo é uma ferramenta poderosa para incidir nas relações de força. Encarar relações desfavoráveis como um impeditivo para enfrentamentos só fortalece e consolida ainda mais essas relações. Se diante de um avanço da direita o governo só cede à direita, quem ele está fortalecendo?

Que há outras possibilidades, a história nos mostra. Em nossa América Latina, nos últimos tempos, vários governos enfrentaram condições desfavoráveis e responderam a elas apostando na mobilização popular e no enfrentamento político. Conseguiram avançar em reformas que pareciam impossíveis, criaram novas relações de força.

Aqui mesmo, em abril deste ano, vimos algo nessa direção. A aprovação do projeto da terceirização parecia assegurada até que mobilizações nas ruas e nas redes reverteram o quadro e devolveram o projeto para a gaveta no Senado.

As relações desfavoráveis devem ser enfrentadas, e não servir de argumento para mais recuos. Não foi essa a escolha do governo Dilma. Mas precisa ser a dos movimentos sociais e da esquerda brasileira, se não quisermos ser levados pelo governo ao abismo.

Desafios de uma frente

A esquerda brasileira precisa apresentar uma saída para a situação política que não seja mais do mesmo. Que não seja tentar recuperar uma estratégia e uma tática que já demonstraram sinais de esgotamento.

Ante o bloqueio de avanços sociais precisamos responder com um projeto de reformas populares que seja capaz de representar saídas claras para a crise.

Ante a impermeabilidade do sistema político à participação popular precisamos responder com a retomada de amplas mobilizações, fazendo das ruas palco principal de um projeto político de esquerda.

Esse deve ser o maior objetivo de uma frente hoje no Brasil: retomar a capacidade de mobilização social, impulsionando um novo ciclo de ascensão das lutas populares. É nas ruas que alteraremos as relações de força.

O caráter da frente que defendemos é essencialmente de mobilização, capaz de canalizar as insatisfações populares para um projeto de esquerda.

Isso implica garantir um equilíbrio difícil, mas necessário. De um lado, a frente precisa ser um bastião contra a ofensiva conservadora e as saídas regressivas para a crise. De outro, ser capaz de enfrentar as políticas antipopulares desse governo com igual decisão.

É possível que não consigamos enfrentar todos esses desafios numa única frente, dada a diferença de posições que ainda persistem na esquerda brasileira. Há aqueles que estão dispostos a enfrentar o golpismo e a ofensiva conservadora, mas não têm a mesma disposição para combater as políticas do governo. E há outros que, identificando de forma simplista a direita com o governo, flertam com a onda antipetista, acreditando ilusoriamente que podem tirar algum saldo à esquerda.

O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e vários outros movimentos e organizações da esquerda têm se empenhado desde o fim de 2014 em construir um espaço de frente que faça esse duplo enfrentamento, focando a construção de uma agenda de mobilizações nacionais. Essa frente foi importante para a construção de dias de luta, como o 15 de abril, o 29 de maio e o 15 de junho. Agora convocou a mobilização de 20 de agosto.

Esperamos que, mesmo nessa diversidade de frentes e posições, a esquerda brasileira tenha a capacidade de estar unida nas ruas para enfrentar os desafios da conjuntura.

*Guilherme Boulos é membro da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).