Humberto Saccomandi: “Guerra cambial amplia o conflito EUA-China”
Valor Econômico – 9/08/2019
Na era do cada um por si, os conflitos comerciais estão se expandindo, uma guerra cambial global começa a se desenrolar e cresce o risco de recessão. Esse processo é muito parecido com o que ocorreu nos anos 30 e que resultou na Segunda Guerra Mundial. E, com os líderes das duas superpotências presos à armadilha do homem-forte, não há trégua à vista.
O anúncio da mais recente sobretaxa, de 10%, dos EUA sobre US$ 300 bilhões em produtos da China, que entrará em vigor em 1º de setembro, surpreendeu e abalou os mercados. A medida deixou a China sem opções de resposta comercial. Pequim simplesmente não tem mais bens americanos para sobretaxar, para uma resposta na mesma medida. Em 2018, a China exportou US$ 539,7 bilhões em bens para os EUA e importou só US$ 120,1 bilhões. Num conflito comercial, o lado deficitário sempre tem vantagem, já que pode impor um dano maior ao outro lado. Por isso, Trump chegou a dizer que uma guerra comercial é fácil de ser vencida. Não é bem assim.
A China respondeu nesta semana sinalizando que pode usar o câmbio como arma. O governo chinês controla o câmbio. Para isso, diariamente divulga uma banda dentro da qual o yuan pode oscilar. Nesta semana, Pequim permitiu que o dólar chegasse a 7 yuans, pela primeira vez desde 2008. Desvalorizar a moeda minimiza o dano causado pelas tarifas americana e compensa parte do prejuízo de seus exportadores.
A desvalorização chinesa fez os mercados caírem pelo mundo. No dia seguinte, o yuan voltou a subir. Foi um recado. Pequim sinalizou que pode controlar sua moeda - com o respaldo de US$ 3 trilhões em reservas e de um sistema financeiro local em boa parte estatal - e causar assim muito dano aos EUA.
Quanto dano cada lado ainda vai infligir ao outro neste confronto é uma incógnita.
A guerra cambial é uma consequência natural, quase um prosseguimento, da guerra comercial. De um lado, há uma pressão normal de mercado contra o lado que sofre mais com as tarifas, neste caso a China. Os termos de troca pioram, a balança de conta corrente tende piorar, e é natural a pressão sobre a moeda. Por outro lado, há a tentação política de desvalorizar para mitigar o prejuízo aos exportadores, prática que banco central nenhum do mundo jamais vai admitir publicamente.
Mas uma guerra cambial traz riscos. Como disse o economista Michael Pettis em entrevista ao Valor nesta semana, desvalorizar significa transferir riqueza dos importadores para os exportadores. E quem são esses importadores? Ao final, são os consumidores e as empresas que não conseguem repassar o custo da desvalorização. Assim, desvalorizar reduz o poder de compra do consumidor, afeta empresas importadoras, diminui o consumo e pode pressionar a inflação. Pettis acredita que a China pode desvalorizar um pouco, mas que isso tem um limite. Enfraquecer o yuan pode ainda gerar uma corrida ao dólar, como ocorreu na China em 2015.
Além disso, à diferença da disputa tarifária entre EUA e China, a guerra cambial afeta diretamente todo o mundo. As tarifas americanas e chinesas atingem diretamente apenas produtos desses países. Já uma desvalorização do yuan torna os produtos chineses mais baratos em todo o mundo. Como os países reagem? Uma opção é desvalorizar suas próprias moedas , para se proteger. Essa espiral cambial está começando. Nesta semana, os bancos centrais de Tailândia, Índia e Nova Zelândia cortaram suas taxas de juros, o que costuma reduzir a cotação das moedas. Esse processo tende a continuar.
Trump quer que os EUA também desvalorizem o dólar. Isso, porém, é mais difícil. Recentemente o presidente atacou o Banco Central Europeu, que anunciou medidas que tendem a enfraquecer o euro. E chamou o Fed (o banco central americano) de incompetente nesta semana, acusando-o de manter a taxa de juros alta demais, o que atrai capital para os EUA e fortalece o dólar. Zona do euro, Japão, Suíça, Suécia e Dinamarca têm taxas de juros nominais negativas. Outros países, como o Reino Unido, têm a taxa nominal positiva, mas abaixo da inflação, o que deixa a taxa de juros real negativa.
O Fed poderá reduzir os juros nos próximos meses, mas ainda assim parece improvável que isso enfraqueça a moeda americana. Em momentos de crise e incerteza, o dólar é um porto seguro, e investidores pelo mundo buscam a moeda, que assim se valoriza. Há pouco que os EUA possam fazer no curto prazo contra o sucesso do dólar.
Desde que Trump começou a sua ofensiva comercial, no início do ano passado, o dólar se fortaleceu em relação a oito das dez moedas de seus principais parceiros comerciais (veja gráfico abaixo). A que mais perdeu valor foi o real brasileiro, com queda de 15,62% do fim de 2017 até anteontem. Só o franco suíço teve valorização significativa nesse período, por ser também uma moeda de reserva.
Essa guerra cambial vai se aprofundar, se não houver uma clara intervenção política.
Mas Trump e o presidente chinês, Xi Jinping, estão presos à imagem que criaram de si e de seus governos. Não podem ceder sem parecer fracos. E parecer fraco é arriscado demais. É a armadilha do homem-forte.
Em momentos anteriores de crise e incerteza, os BCs dos principais países atuaram de forma coordenada para tranquilizar os mercados. Há pouca margem para isso num processo de guerra cambial.
Humberto Saccomandi é editor de Internacional.