Humberto Saccomandi: “Instabilidade alemã traz amplos riscos"
Valor Econômico – 23/02/2018
Uma segunda eleição está ocorrendo na Alemanha. Pouco mais de 460 mil pessoas vão decidir o futuro imediato do país, da premiê Angela Merkel e possivelmente da União Europeia. Talvez até mais, já que a Alemanha lidera hoje a defesa a ordem internacional liberal.Na votação, que começou na terça-feira e vai até 2 de março, os filiados do Partido Social Democrata alemão (SPD, de centro-esquerda) vão decidir se o partido deve participar ou não de um novo governo junto com Merkel, que é do tradicional rival, a União Democrata Cristã (CDU, de centro-direita).
As eleições gerais de setembro resultaram no Parlamento mais dividido da história recente do país, devido em parte à ascensão do Alternativa para a Alemanha (AfD, de extrema-direita). A CDU ficou com a maior bancada, mas nenhum partido tem a maioria necessária para governar.
Merkel tentou formar uma coalizão com Verdes e liberais, mas as plataformas eram muito divergentes, e a negociação fracassou. Agora, a única coalizão possível é com o segundo maior partido, os social-democratas.
O SPD ajudou Merkel a governar a Alemanha em 8 dos últimos 12 anos. Mas isso teve um custo político alto. O partido vem tendo as suas piores votações da história. Na eleição de setembro, ficou com apenas 20,5% dos votos, metade dos 40,9% de 1998.
Para muitos na Alemanha e no SPD, isso é consequência direta do apoio a Merkel. A premiê é ironizada no país por ter um "abraço da morte". Quem se aproxima dela sai enfraquecido. Foi assim com os liberais no segundo mandato de Merkel. É como se bônus de seu governo ficasse com ela, e o ônus com os parceiros. No ano passado, o SPD, decidiu que não faria uma nova coalizão com a premiê. Disputou a eleição com essa proposta.
Mas a dificuldade de formação do novo governo reaproximou os dois lados. Merkel, para tentar obter o apoio do parceiro/rival, cedeu ao SPD os ministérios mais importantes: Finanças e Relações Exteriores. Cedeu ainda ao aceitar muitas propostas do SPD no documento oficial que formaliza os objetivos do novo governo. A premiê está sendo muito criticada no seu próprio partido por essas concessões.
Temendo, porém, os efeitos negativos de descumprir o que prometera na campanha eleitoral, a direção do SPD resolveu consultar a base do partido sobre uma nova coalizão com Merkel. É essa votação que está em andamento. O resultado sairá somente em 4 de março.
"Esse voto será é crucial, e parece ser uma disputa aberta. Há uma grande campanha dentro do SPD contra entrar novamente no governo com Merkel", disse Frederik Erixon, diretor do Ecipe, um centro de estudos de Bruxelas. "E o argumento é o mesmo desde a grande derrota eleitoral de setembro, quando todos os principais líderes do SPD diziam que o partido não podia entrar novamente num governo com Merkel, que tinha de ficar de fora e reinventar as suas propostas e o seu papel na política alemã."
Há hoje na Europa um intenso debate sobre o papel da esquerda. Por vários motivos, inclusive o apoio a políticas normalmente consideradas não de esquerda, os tradicionais partidos esquerdistas estão em crise. O Partido Socialista francês foi dizimado nas eleições do ano passado. O PSOE espanhol e o SPD alemão tiveram suas piores votações. A esquerda italiana rachou, e pesquisas indicam que será ejetada do governo nas eleições de março. Os partidos mais bem sucedidos atualmente são aqueles que retomaram um discurso mais de esquerda: a social-democracia sueca (que está no governo com um premiê vindo da central sindical), os socialistas portugueses (que ganharam as eleições com um discurso contra a austeridade) e, principalmente, o Partido Trabalhista britânico, liderado por Jeremy Corbyn, que por pouco não chegou ao poder em 2017. Ele promete desfazer uma série de recentes reformas liberalizantes, como do mercado de trabalho e as privatizações. A definição do SPD influenciará outros partidos europeus.
Se o SPD rejeitar a coalizão, Merkel possivelmente terá de convocar novas eleições. Nesse caso, é provável que ela não será mais candidata, o que encerraria um dos mais longos governos da história da Alemanha (só perde para Bismarck, Kohl e Adenauer). Nesta semana, Merkel já indicou uma provável sucessora, ao propor a governadora do pequeno Estado de Saarland, Annegret Kramp-Karrenbauer, para secretária-geral da CDU.
Voltar às urnas, porém, traz um risco grande aos dois maiores partidos. Duas pesquisas desta semana sugerem que a CDU cairia um pouco em relação à votação de setembro. Já o SPD poderia perder quase um quarto dos votos e ficar até atrás dos extremistas do AfD. Isso tornaria ainda mais difícil formar um governo estável e coerente. Essa instabilidade alemã foi a maior vitória do populismo em 2017.
"Esses dois partidos vivem grandes rebeliões internas, e é por isso que a direção do SPD não consegue dizer com nenhum grau de certeza se vai vencer a votação no partido. Merkel tem grandes problemas na CDU também. Ela perdeu um quarto dos eleitores em setembro. Há enorme demanda por mudanças nos dois partidos", diz Erixon.
Está em jogo, ainda, o destino das reformas na UE. Em setembro passado, o presidente francês, Emmanuel Macron, propôs uma ambiciosa agenda de reformas. Sugeriu, entre outras coisas, a criação de um orçamento e de um ministro das Finanças da zona do euro. Em dezembro, o então líder do SPD, Martin Schulz, propôs a federalização da UE, rumo a um Estados Unidos da Europa. Nos dois casos, a receita é enfrentar o populismo e o extremismo político com mais integração europeia, não menos.
Mas o espírito reformista, que foi estimulado pelo Brexit (a saída do Reino Unido da UE), está perdendo impulso. O impasse político na Alemanha custou tempo valioso, pois logo começa a campanha para as eleições para o Parlamento Europeu, em maio de 2019. Depois disso, virá a escolha da nova Comissão Europeia (o Executivo da UE).
"Provavelmente é tarde demais para novas propostas que levem a reformas importantes na UE nos próximos anos. Imagino que lá por 2020 veremos novamente novas ideias de colaboração", diz Erixon. Ele alerta que "a definição na Alemanha é de importância extraordinária. Se houver um governo fraco na Alemanha, isso vai dificultar as políticas da UE".
Pode dificultar, por exemplo, um acordo entre UE e Mercosul.
E pode dificultar também a defesa dos valores ocidentais, num mundo cada vez menos liberal e mais autoritário.
Humberto Saccomandi é jornalista.