Humberto Saccomandi: “Voto britânico expõe a desunião europeia”
Valor Econômico - 24/06/2016
O plebiscito de ontem no Reino Unido foi apenas mais um de uma série de desafios à União Europeia que deverão continuar, e talvez se agravar, nos próximos anos. Se persistir, esse processo de desunião europeia irá acelerar a perda de importância relativa do continente, diante da mudança do eixo de poder no mundo do Atlântico para o Pacífico.
Durante décadas, até poucos anos atrás, a Comunidade Europeia, depois União Europeia, foi uma espécie de modelo para o mundo. Um grupo de países deixou de lado séculos de rivalidades e guerras sangrentas para avançar no mais ambicioso processo de integração supranacional. Eles cederam parte de sua soberania nacional para uma entidade federativa em troca de benefício comum. E mais: os mais ricos financiaram o desenvolvimento dos mais pobres, o que ajudou países como Itália, Espanha, Portugal, Irlanda, Grécia e, por último, os novos membros da UE no Leste Europeu.
Tudo isso foi inédito na história da humanidade. O Mercosul, por exemplo, foi criado claramente espelhando na UE, ainda que o projeto de integração por aqui tenha avançado pouco e mal.
Desde 2008, no entanto, uma série de choques mostrou a fragilidade de parte dos alicerces dessa integração europeia. Os três últimos passos mais ambiciosos se mostraram especialmente problemáticos. 1. A ampliação acelerada da UE para incluir a maior parte dos países do Leste Europeu gerou tensões econômicas, políticas e sociais no bloco e dificultou o processo de tomada de decisões; 2. A adoção do euro foi feita sem o arcabouço institucional necessário. Não se previu, por exemplo, o que fazer em caso de um país quebrar (como a Grécia) ou de o sistema financeiro precisar de socorro. Tudo isso parecia muito remoto; 3. O acordo de Schengen, que pôs fim às fronteiras internas na UE, também carecia de provisões necessárias para situações extremas, como um fluxo excepcional de imigrantes.
Sem a preparação adequada, a UE foi pega numa tempestade perfeita, causada por quatro choques simultâneos e que seguem se retroalimentando: 1. a crise econômico-financeira de 2008, que está dormente devido ao anabolizante dado pelo BCE, mas que está longe de resolvida; 2. a crise migratória; 3. a crise institucional, que expôs a dificuldade e as divergências sobre como reagir aos desafios econômicos e de imigração; 4. e, por fim, uma crise política: insatisfeitos com a reação da política tradicional às três crises citadas, os eleitores começaram a apoiar partidos nacionalistas e/ou populistas, muitos deles abertamente contra a UE ou o euro.
O plebiscito de ontem no Reino Unido foi uma concessão do primeiro-ministro britânico, David Cameron, à ala mais eurocética do seu Partido Conservador. Ele prometeu a votação para viabilizar a sua candidatura à reeleição em 2015.
A votação britânica causará um efeito dominó? Por ora, é improvável que outros países optem por deixar a UE. Só países grandes e de fora do euro podem se permitir isso, e nesse grupo há apenas o Reino Unido. Para países do euro, sair da moeda comum seria traumático. Países pequenos tem estrutura produtiva e comércio integrados e dependentes demais do mercado comunitário.
Mas mudanças políticas podem sim causar solavancos e recuos no projeto de integração, o que ameaçaria implodir a UE de dentro.
Um primeiro risco virá já das eleições deste domingo na Espanha. Como na eleição anterior, em dezembro, nenhum partido ou coligação deve obter a maioria para formar um governo estável. A novidade, desta vez, é que o Podemos, de esquerda e crítico à UE, deve superar o tradicional PSOE (centro-esquerda) e se tornar o segundo maior partido espanhol. O atual premiê, Mariano Rajoy (do Partido Popular, de centro-direita), hostilizado por todas as demais forças políticas, terá o desafio de sobreviver a uma segunda eleição inconclusiva. Esse impasse seguirá agravando as perspectivas de reformas econômicas na Espanha.
Em outubro, o premiê italiano, Matteo Renzi (PD, de centro-esquerda), colocará para plebiscito uma reforma política que, entre outras coisa, reduz muito as atribuições do Senado, tornando o país praticamente unicameral. A reforma é popular, mas é possível que os eleitores a rejeitam para derrubar Renzi e forçar eleições antecipadas. Nesse caso, a força política em ascensão na Itália é o Movimento 5 Estrelas, também anti-UE e antieuro.
No ano que vem, a França terá eleições presidenciais. O atual presidente, François Hollande, tentará a reeleição, mas ele é o líder mais impopular da história do país. Pesquisas hoje indicam que a favorita é Marine Le Pen, da Frente Nacional, partido anti-UE e antieuro. Marine já disse recentemente que apoia um referendo sobre a saída da França da UE, que, segundo ela, "está em processo de implosão".
A Holanda terá eleições para o Parlamento no ano que vem. O Partido da Liberdade, anti-imigração e anti-UE, está à frente, segundo pesquisas. O seu líder, Geert Wilders, também admite deixar a UE.
Em entrevista coletiva nesta semana, o poderoso ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, admitiu que "a Europa não está num bom estado." Sobre os riscos ao futuro da UE, ele alertou: "Nada é evidente e nada está tão certo que não possa ser ameaçado".
Diante dessa onda anti-UE e da iminência da votação no Reino Unido, muitos políticos europeus fizeram apelos por reformas no bloco.
Mas o consenso para aí. Para alguns, como o premiê grego, Alexis Tsipras, a solução é um aprofundamento do processo de integração europeia. Para outros, como o ministro das Finanças da Holanda, Jeroen Dijsselbloem, a UE deve dar uma pausa na integração. "Não vamos seguir ampliando a casa europeia enquanto ela está tão instável", afirmou ele neste semana.
Uma das megatendências deste começo de século é a mudança do eixo econômico e de poder no mundo da área do Atlântico (EUA e Europa), onde esteve nos últimos séculos, para a área do Pacífico (EUA e Ásia). A Europa não tem como evitar essa mudança, mas o estado atual de desunião no continente pode acelerar a perda de poder relativo do Velho Continente.