Jornal O Tempo: “Dupla função de motoristas gera transtorno e risco para os usuários”
João Renato Faria – O Tempo – 11/02/2016
O motorista da linha 2190 (Água Branca/Belo Horizonte) fez uma careta quando um passageiro entregou uma nota de R$ 50. “Não tem menor?”, perguntou, revirando a gaveta, que fica ao lado do volante, atrás de moedas para tentar trocar o dinheiro. Enquanto isso, uma fila de pessoas que tentavam embarcar se formava próximo ao ônibus parado no ponto, no centro da capital. Foram quase cinco minutos para que todos embarcassem no veículo.
A cena se repete várias vezes ao dia nos coletivos do transporte metropolitano de Belo Horizonte. Com a retirada gradual dos cobradores dos ônibus, os motoristas, cada vez mais, têm assumido também as funções de gerenciar a roleta e recolher o dinheiro dos passageiros. Para isso, segundo a categoria, recebem uma bonificação de 20% sobre o salário bruto – um acréscimo de cerca de R$ 350. Para as empresas, o valor é uma economia de R$ 570 por cobrador demitido, já que os agentes de bordo recebiam cerca de R$ 920 por mês.
Os motoristas, porém, garantem que o valor a mais, no fim do mês, é pouco para a dupla função e não compensa o trabalho e os transtornos gerados. “O dinheiro não vale a pena para os riscos que os motoristas têm que assumir”, diz José Márcio Ferreira, diretor de comunicação do Sindicato dos Trabalhadores do Transporte Rodoviário de BH e Região (STTR). Entre os perigos, estão os assaltos e a desatenção no trânsito provocados pelo controle da entrada dos passageiros.
Segundo o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), é proibido cobrar a passagem com o veículo em movimento, mas é raro encontrar quem siga a lei à risca. “Se eu não receber enquanto dirijo, acabo atrasando demais a viagem”, admite um motorista, que pediu para não ser identificado.
Cortes. No último ano, as demissões de cobradores de ônibus e o consequente acúmulo de função dos motoristas foram intensificadas pelas empresas e sentidas tanto pela categoria quanto pelos passageiros. De acordo com a secretaria de Estado de Transportes e Obras Públicas de Minas Gerais (Setop), em 2015 as empresas de transporte metropolitano cortaram 50% dos cobradores da frota de 2.946 veículos. A Setop, porém, não informou o número total de demissões.
Nas linhas que atendem apenas as cidades da região metropolitana da capital, a situação é ainda mais dramática. No último ano, cerca de 2.000 agentes de bordo foram demitidos em Contagem, conforme o Sindicato dos Trabalhadores em Transporte Rodoviários de Contagem e Esmeraldas (Sittracon). “Chegamos ao limite da nossa reação, mas é muito difícil combater as demissões”, contou Antônio Ferreira da Silva, presidente do órgão. Ele diz que sobraram cerca de 200 profissionais, que também devem ser demitidos em breve. Outras cidades da região metropolitana, como Betim e Igarapé, enfrentam problemas parecidos.
Enquanto isso, sobra insatisfação com a medida. “Nós recebemos um abono que é ridículo, não vale a pena o estresse”, diz um motorista do transporte intermunicipal, que também não quis se identificar. Demitido há oito meses, o cobrador Ramon Ferreira, 23, lamenta a perda do emprego e afirma que as empresas usam de estratégias para evitar as mobilizações dos funcionários. “Estão demitindo aos poucos, cada hora é uma turma, mas já foi quase todo mundo”, lamenta.
A população também reclama. “Tiraram o cobrador da minha linha 101B, há cerca de um mês. Acho que o risco aumentou, porque os motoristas ficam mais desatentos” (Stephany Oliveira, auxiliar de escritório). “O ônibus fica parado por muito tempo quando o motorista tem dificuldades em dar o troco, e sempre atraso” (Alaíde Antunes, autônoma). “Eu venho no ônibus morrendo de medo e fico preocupada, já que, quando dão o troco, eles não prestam atenção no trânsito” (Lúcia de Fátima, cozinheira).
Empresas não revelam número de demissões
Em nota, o Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros Metropolitano (Sintram) disse que evita demitir os cobradores e investe na capacitação para que eles se tornem motoristas, mas não revelou o número de demissões que já foram feitas.
Para o Sintram, o aumento do uso da bilhetagem eletrônica justifica a ausência dos cobradores. “O crescente número de usuários que utilizam o cartão como forma de pagamento possibilita a substituição dos cobradores em determinadas linhas”, diz a nota.
Projeto de lei. Segundo o jornal O Tempo está em tramitação na Câmara Federal, o projeto de lei 2163/2003, do deputado Vicentinho (PT/SP), que proíbe o trânsito de ônibus sem o cobrador no país.