José Carlos de Assis: “Dois projetos que liquidam com o setor público e perpetuam a depressão econômica”

23/08/2016 | Economia

Encontram-se no Congresso dois projetos - PLs 241 e 257/16 - com o objetivo comum de congelar os orçamentos primários da União, dos Estados e dos Municípios. É difícil imaginar como isso possa ter sido pensado por parte de autoridades eleitas ou de burocratas públicos que respondem, de alguma forma, pelo interesse público e o bem estar da sociedade brasileira. Entretanto, isso não só foi pensado, para espanto geral, como foi materializado na forma de projetos de lei que surpreendentemente estão merecendo a simpatia de parte do Congresso. 

É preciso dizer que esse surto de imaginação legislativa tem um precedente, embora indireto. No caso do congelamento do orçamento primário da União, o precedente externo é a atitude recorrente do Partido Republicano norte-americano, sob pressão de sua extrema direita, o Tea Party, de tentar congelar o teto da dívida pública – o que implica indiretamente congelar o próprio orçamento. Contudo, embora a imposição de teto tenha sido tentada várias vezes, nunca passou. O Congresso norte-amercano é conservador, mas não é suicida. 

É ilustrativo considerar a luta de interesses em torno do projeto republicano nos Estados Unidos para iluminar o que acontece aqui. Embora o congelamento da dívida afetaria toda a sociedade, na forma de cortes generalizados de serviços públicos da União financiados por déficit, o principal bloco de interesses afetado seriam os titulares da gigantesca dívida pública norte-americana. Uma vez congelado teto da dívida, o Estado simplesmente daria calote em parte da dívida que não pudesse ser financiada por emissão de novos títulos públicos. 

É que, diferentemente do Brasil, o orçamento da União nos EUA não criou a figura esdrúxula do orçamento primário, que não considera os custos financeiros da dívida pública, principalmente juros. Se, para limitar a dívida, fosse forçado legalmente a cortar o déficit público, inclusive a parte dos juros, o Governo teria, como observado, de dar o calote na dívida, cortando ao mesmo tempo inúmeras despesas públicas. Quando Wall Street percebeu o risco, forçou os republicanos, seus representantes tradicionais, a voltarem atrás. E o projeto não passou. 

No caso desse projeto brasileiro, seus formuladores aproveitaram a figura esdrúxula do orçamento primário para garantir que apenas os serviços públicos sejam afetados pela rigidez do teto, por inacreditáveis 20 anos. É um acinte que isso se faça nas barbas do Senado. Se fizermos um exercício de memória, vamos nos recordar de que a figura do orçamento primário aparece na contabilidade fiscal brasileira na época da primeira renegociação da dívida externa, nos anos 80, em plena crise inflacionária. O orçamento primário era a forma de gerar recursos reais, isto é, a diferença entre receitas e despesas correntes da União, para pagar o serviço da dívida pública, que se tornou, desde então, sagrado, tomando a forma de superávit primário permanente. 

Portanto, a proposta de estabelecimento de um congelamento de 20 anos para o orçamento social implica congelar todas as despesas correntes e de investimento da União, excetuando apenas as despesas financeiras com o serviço da dívida pública. Mais uma vez, tudo se faz pelo deus Mamon, o deus-dinheiro, conforme a expressão bíblica tantas vezes ciadas pelo papa Francisco. É como se não houvesse crescimento da população, aposentadoria de trabalhadores, melhor qualificação de serviços de saúde e de educação, investimento público em áreas prioritárias, enfim, como se não apenas o orçamento, mas a própria sociedade ficasse congelada. 

Mas ainda não tínhamos despertado do susto representado por esse projeto relativo à dívida pública e a Câmara dos Deputados, trabalhando freneticamente em tempos de golpe, decidiu aprovar o projeto PLC 257/16, neste caso trocando um pífio adiamento por dois anos no pagamento das parcelas das infames dívidas estaduais junto à União por um inacreditável dispositivo legal de congelamento em termos reais dos orçamentos públicos primários dos Estados. É a superposição de duas imposições monstruosas no regime fiscal do país, de cujas nefastas consequência escapam apenas os financistas, devotos do deus Mamon. 

É preciso que o Senado introduza um elemento de sanidade em todo esse processo pois do contrário o país vai sucumbir, não só à degradação de seus serviços públicos, mas a uma depressão indefinida. É que, desde Keynes, sabe-se que uma economia em recessão não sai da crise exceto pelo aumento do investimento público. Sim, senhores Senadores e Senadoras, sem aumento de investimento público é literalmente impossível recuperar a demanda, já que o setor privado em depressão não tem como gerar demanda para si mesmo. De fato, só o setor público pode investir, sobretudo em infraestrutura, sem esperar pelo aumento anterior da demanda. 

Investindo, de preferência deficitariamente, na infraestrutura e mesmo em gastos correntes, o Estado cria demanda para o setor privado; havendo demanda – e não uma fantasiosa “confiança” – o setor privado investe, cria emprego, cria mais demanda, num círculo virtuoso objetivo, não ideológico, que restitui as condições de crescimento da economia. Entretanto, os dois projetos em pauta destroem as possibilidades de o setor público investir, com isso mobilizando recursos financeiros que estão ociosos na sociedade. É uma crime contra a economia, um crime contra a sociedade. Esses projetos, se transformados em lei, liquidam o setor público e perpetuam a depressão em que nos encontramos. 

É importante deixar claro, por outro lado, que o suposto alívio das dívidas estaduais oferecido pelo Governo federal nesse projeto inominável não passa de um truque para garrotear os Estados em várias armadilhas, além do congelamento orçamentário. É importante que os governadores, e os senadores que representam os Estados tenham uma visão republicana desse processo. A dívida dos Estados foi paga na origem, já que o Governo federal apenas intermediou os recursos provindos dos cidadãos para pagar bancos credores, sem negociação. Não faz sentido que a dívida seja paga de novo pelos mesmos cidadãos. Assim, mudar indexadores da dívida, como se persegue judicialmente, não é suficiente. Essas dívidas devem ser dadas como quitadas, e o Governo federal deve ressarcir os Estados daquilo que lhes foi cobrado indevidamente. Nessa hipótese, teríamos um importante influxo de recursos na economia, através dos Estados, convertendo a depressão em crescimento econômico.

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