José Luís Fiori: “Réquiem por uma utopia defunta”
E todos se perguntam como foi que o mundo deu uma cambalhota tão grande, para frente e para trás, em tão pouco tempo ? E o que passará agora com o mundo, depois das eleições presidenciais norte-americanas, de novembro de 2020?
José Luis Fiori
Jornal GGN – 20/07/2020
Tudo começou na madrugada do dia 10 de novembro de 1989, quando se abriram os portões que dividiam a cidade de Berlim. Depois, como se fosse um castelo de cartas, caíram os regimes comunistas da Europa Central, dissolveu-se o Pacto de Varsóvia, reunificou-se a Alemanha, e desintegrou-se a União Soviética. E o fim da Guerra Fria foi comemorado com se fosse a vitória definitiva da “democracia”, do “livre mercado”, e de uma nova “ordem ética internacional”, orientada pela tábua dos “direitos humanos”.
Trinta anos depois, entretanto, o panorama mundial mudou radicalmente. A velha “geopolítica das nações” voltou a ser a bússola do sistema mundial; o nacionalismo econômico voltou a ser praticado pelas grandes potências; e os grandes “objetivos humanitários” dos anos 90 foram relegados a um segundo plano da agenda internacional. Nesses 30 anos, o mundo assistiu à vertiginosa ascensão econômica da China, à reconstrução do poder militar da Rússia e ao declínio do poder global da União Europeia (UE).
Mas o mais surpreendente de tudo aconteceu no final deste período, quando os Estados Unidos se afastaram de seus antigos aliados europeus e voltaram-se contra os valores e as instituições da ordem “liberal e humanitária” que eles mesmos haviam criado, depois do fim da Guerra Fria. E todos se perguntam como foi que o mundo deu uma cambalhota tão grande, para frente e para trás, em tão pouco tempo ? E o que passará agora com o mundo, depois das eleições presidenciais norte-americanas, de novembro de 2020?
Já se falou muito do papel que teve a globalização econômica e seus efeitos perversos, no desencanto com a “ordem liberal” dos 90: porque provocou um aumento geométrico da desigualdade entre os países, as classes e os indivíduos; e porque ficou associada a uma sucessão de crises econômicas localizadas que culminaram na grande crise financeira de 2008, que contagiou a economia mundial – a partir dos Estados Unidos – pelas veias abertas pela desregulamentação dos mercados globalizados. Mas existe um outro lado deste processo de autodestruição que em geral é menos mencionado, porque envolve um aspecto essencial da forma em que foi exercida a liderança mundial dos Estados Unidos, durante esses 30 anos.
A Guerra Fria terminou sem nenhum tipo de “acordo de paz”, e depois da dissolução da União Soviética, as potências vitoriosas não definiram entre si uma nova “constituição” para o mundo. Antes mesmo que se pudesse colocar em pauta esse problema, a vitória arrasadora dos Estados Unidos na Guerra do Golfo acabou impondo a vontade americana como princípio ordenador do “novo mundo”. Por isso se pode dizer que o “bombardeio teledirigido” do Iraque, em 1991, cumpriu papel análogo ao do bombardeio atômico de Hiroshima e Nagasaki, em 1945: foi a hora em que se definiu – simultaneamente – uma nova “ética internacional” e um novo “poder soberano”, responsável – a partir daquele momento – pela arbitragem do “bem” e do “mal”, do “justo” e do “injusto” no sistema internacional. Com a grande diferença que, em 1991 – ao contrário de 1945 – não existia no sistema mundial nenhuma outra potência capaz de questionar os desígnios unilaterais dos EUA. Foram 42 dias de ataques aéreos contínuos, seguidos de uma invasão terrestre rápida e contundente, com poucas centenas de baixas americanas e cerca de 150 mil mortos iraquianos. A mesma forma de guerra “à distância”, que depois foi utilizada na Iugoslávia, em 1998, e também nas “intervenções humanitárias” da OTAN na Bósnia em 1995, e no Kosovo em 1999.
Muitos perceberam que a vitória americana na Guerra do Golfo havia consagrado uma nova “ordem ética” e um novo “poder soberano”, com capacidade de impor e arbitrar o novo sistema de valores em todo o mundo. Mas nem todos perceberam que esta nova ordem trazia consigo contradições e tendências próprias de um poder global quase absoluto, sem limites capazes de impedir seu desvio na direção da arbitrariedade, da arrogância e do fascismo[2], encobertas pela euforia da vitória e pela adesão entusiástica à nova ideologia da globalização liberal. Em particular durante a administração de Bill Clinton, que passou para a história como o período em que os Estados Unidos teriam utilizado seu poder econômico e força militar em defesa da democracia, da paz, da liberdade dos mercados e dos direitos humanos. Na prática, o governo de Bill Clinton seguiu os mesmos passos do governo de George Bush (pai), os dois igualmente convencidos de que o século XXI seria um “século americano”, e que o “mundo necessitava dos Estados Unidos”, como costumava repetir Magdeleine Albright, sua secretária de Estado. Tanto foi assim que, durante os oito anos de seus dois mandatos, a administração Clinton manteve um ativismo militar permanente ao lado de sua retórica “globalista” e “humanitarista”. Nesse período, segundo Andrew Bacevitch, “os Estados Unidos se envolveram em 48 ações militares, muito mais do que em toda a Guerra Fria”,[3] incluindo suas “intervenções humanitárias” na Somália em 1992-1993; na Macedônia em 1993; no Haiti em 1994; na Bósnia-Herzegovina em 1995; no Sudão em 1998; na Iugoslávia em 1999; no Kosovo em 1999; e no Timor Oriental, também em 1999. Como observou Chalmer Johnson, importante analista internacional norte-americano:
[…] entre 1989 e 2002 ocorreu uma revolução nas relações da América do Norte com o resto do mundo. No início desse período, a condução da política externa norte-americana era basicamente uma operação civil. Por volta de 2002, tudo isto mudou e os Estados Unidos já não tinham mais uma política externa; eles tinham um império militar. Durante o período de pouco mais do que uma década (anos 1990), nasceu um vasto complexo de interesses e projetos que eu chamo de “império” e que consiste em bases navais permanentes, guarnições, bases aéreas, postos de espionagem e enclaves estratégicos em todos os continentes do globo.[4]
Para não falar da ocupação americana quase instantânea dos territórios que haviam estado sob influência soviética até 1991 – começando por Letônia, Estônia e Lituânia, seguindo por Ucrânia e Bielorrússia, os Balcãs, o Cáucaso e chegando até a Ásia Central e o Paquistão. A mesma lógica expansiva e de ocupação que explica a rapidez com que os EUA levaram à frente seu projeto de ampliação da OTAN, mesmo contra o voto dos europeus, em alguns casos, construindo na década de 90 um verdadeiro “cordão sanitário” que separava a Alemanha da Rússia, e a Rússia da China, de tal maneira que no final dos anos 90, a nova “ordem pacífica, liberal, e humanitária” já havia permitido que os Estados Unidos construíssem uma verdadeira infraestrutura de dominação militar global.
Quando se lê desta forma a história, entende-se melhor como foi que o projeto de “hegemonia humanitária” dos anos 90 transformou-se tão rapidamente num projeto imperial explícito durante o governo de George W. Bush, em particular depois dos atentados de 11 de setembro de 2001. Porque na prática foram os “atentados” e a imediata declaração da “guerra universal ao terrorismo” que permitiram a George W. Bush colocar sobre a mesa de maneira direta e franca o projeto de construção do “século americano”. A nova doutrina estratégica americana se propunha a combater um “inimigo terrorista” que podia ser qualquer pessoa ou grupo, dentro ou fora dos Estados Unidos. Tratava-se de um inimigo universal e ubíquo, ou seja, quem quer que fosse considerado pelo governo americano como uma ameaça à sua segurança nacional, podendo ser atacado e destruído em qualquer lugar que estivesse, por cima do direito à soberania nacional dos povos. Por isso, quem aceitasse participar dessa guerra ao lado dos Estados Unidos aceitava também transferir-lhe uma soberania que o tornava automaticamente um poder global de tipo imperial, numa guerra que não teria limite e que seria cada vez mais extensa e permanente. Na verdade, a mensagem era uma só, e não estava destinada apenas aos grupos terroristas: os EUA estavam decididos a manter sua dianteira tecnológica e militar com relação a todas as demais potências do sistema, e não apenas com relação aos terroristas. Uma distância que desse aos americanos o poder de arbitrar isoladamente a hora e o lugar em que seus adversários reais, potenciais ou imaginários, devessem ser “contidos” através de ataques militares diretos. É desnecessário sublinhar, por óbvio, que nesse novo contexto as ideias de soberania e democracia, e de defesa dos direitos humanos, perderam relevância ou foram praticamente esquecidas, sendo utilizadas apenas de forma ocasional e oportunística para encobrir guerras e intervenções feitas em nome dos interesses estratégicos dos EUA e de seus aliados mais próximos.
Isto explica por que a resistência ao poder americano acabou renascendo de dentro do próprio núcleo das velhas grandes potências do sistema interestatal, e da Rússia, em particular, no campo militar. Um momento decisivo dessa história aconteceu na Geórgia, em 2008, quando o poder imperial dos EUA e da OTAN – que se propunha a incorporar a Georgia – encontrou seu primeiro limite depois do fim da Guerra Fria. A chamada “Guerra da Geórgia” foi muito rápida e talvez até passasse despercebida na história do século XXI, se não tivesse acontecido o inesperado: a intervenção das Forças Armadas da Rússia, que em poucas horas cercaram o território da Geórgia, numa demonstração contundente de que a Rússia havia decidido colocar um limite à expansão das tropas da OTAN para o Leste, vetando a incorporação da Geórgia como novo Estado-membro da organização. Foi exatamente naquele momento que a Rússia demonstrou, pela primeira vez, sua decisão e capacidade militar de opor-se ou de vetar o arbítrio unilateral dos EUA, dentro da nova ordem mundial do século XXI. Mais à frente, em 2015, a Rússia deu um novo passo nessa mesma direção, quando interveio na Guerra da Síria, sem consultas prévias e sem subordinação a nenhum outro comando que não fosse o de suas próprias Forças Armadas. Com sua intervenção militar na Síria, a Rússia já não estava se propondo apenas a vetar decisões e inciativas estratégicas dos EUA e da OTAN; impôs pelas armas seu direito de também arbitrar e intervir nos conflitos internacionais, mesmo que fosse contra os mesmos inimigos, e a partir dos mesmos valores defendidos por europeus e norte-americanos. E esta foi a grande novidade que mudou o rumo dos acontecimentos mundiais, ao questionar a “Pax americana”’ a partir dos mesmos princípios, e através dos mesmos métodos dos norte-americanos.
Do nosso ponto de vista, foi a surpresa e a gravidade desse “desafio” que levaram os Estados Unidos de Donald Trump a atacar com tamanha violência o seu próprio projeto “liberal, pacifista e humanitário” da década de 90,[5] abrindo mão do seu “messianismo moral” e trocando suas convicções liberais, e humanitárias, pela defesa pura e simples do seu próprio “interesse nacional”.
[2] “Se a Guerra do Golfo definiu o novo ‘princípio do limite’ dentro do sistema mundial, ela não resolveu uma outra questão fundamental: ela não esclareceu qual será o ‘limite deste princípio’. E neste caso, não está errado pensar que esta nova ‘Guerra Pérsica’ não conduza a humanidade a um novo patamar civilizatório com a universalização da ética cosmopolita criada pela Europa iluminista, senão que, pelo contrário, se transforme na antessala de uma nova era marcada pela força, o medo e o retrocesso político-ideológico dentro da própria coalizão que saiu vitoriosa desta guerra” (Fiori, J. L. A “Guerra Pérsica”: uma guerra ética. Cadernos de Conjuntura, n. 8. Rio de Janeiro: Instituto de Economia Industrial/UFRJ, 1991, p. 5).
[3] Bacevich, A. American Empire. Massachusetts: Harvard University Press, 2002, p. 143 (tradução nossa).
[4] Johnson, C. The Sorrows of Empire. New York: Metropolitan Books, 2004, p. 22-23 (tradução nossa).
[5] Fiori, J. L. Babel Syndrome and the New Security Doctrine of the United States. Journal of Humanitarian Affairs, v. 1, n. 1, p. 42-5, 2019.
José Luís Fiori é professor titular de economia política internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).