José Prata: "A população tem razão: o nível de profissionalização da política no Brasil é uma aberração"

01/07/2015 | Cultura política

José Prata Araújo

Facebook – Maio de 2015

São propostas muito polêmicas, mas como diz Fernando Brito, do blog Tijolaço, “a política, sem polêmica, é a arma das elites”. Trato de cinco pontos basicamente: a) dos enormes privilégios salariais, previdenciários e outros dos parlamentares no Brasil; b) do gigantismo dos mandatos parlamentares e do raquitismo das estruturas dos partidos políticos; c) da monumental capacidade de cooptação política e ideológica de uma estrutura política, que tem, estimamos, mais de 1 milhão de cargos públicos colocados à disposição dos partidos; d) da remuneração “cheia” dos vereadores, inclusive de pequenos e médios municípios, implantada pela ditadura militar; e) das emendas individuais e do Orçamento Impositivo, que desvirtua o papel do Poder Legislativo. 

Não se trata de um documento maniqueísta. Sempre estive vinculado no PT a um campo político muito crítico a alguns aspectos do modelo político atual, como na questão dos privilégios legislativos. Mas nunca cheguei a realizar uma crítica global a este modelo de profissionalização da política brasileira. Neste sentido, trata-se de um documento crítico, mas também autocrítico. A minha “ficha caiu”, como dizemos, em relação à profundidade da crise que enfrentamos. Tenho observado, atentamente, a crítica feita pela sociedade a este modelo político, nos depoimentos publicados e nas mídias sociais, e minha ida para as ruas, nas campanhas eleitorais e em outros momentos, tem me deixado angustiado com o repúdio da população à política e, especialmente, ao PT. Recentemente, estive em uma atividade em Nova Contagem, região popular de minha cidade, e um idoso disse para a deputada petista Marília Campos: “Você é um exemplo em mil de políticos(as) que podem vir às ruas sem ser hostilizado(a)”. Se o nosso principal líder, o ex-presidente Lula, afirma, em depoimento público, que o “PT se tornou um partido igual aos outros”, é porque a nossa crise de identidade é muito grave. Precisamos reagir. Este é o sentido deste documento.   

POR QUE A REFORMA POLÍTICA DO PT NÃO EMPOLGA A POPULAÇÃO? 

O PT encontra grandes dificuldades em popularizar suas propostas para a reforma política. No nosso entendimento uma reforma para empolgar a população deveria contemplar dois grandes eixos: a) mudar as campanhas eleitorais com o fim do financiamento privado de campanha e com o fortalecimento dos partidos (seja através da lista fechada, proposta do PT; ou eleição proporcional em dois turnos nas propostas da CNBB, OAB e outras entidades, onde o eleitor vota no primeiro turno no partido e, no segundo turno, ele vota no nome do partido de sua escolha); b) mudar a forma de governar baseada em uma amplíssima profissionalização da política brasileira, especialmente com a distribuição de centenas de milhares de cargos, na União, nos Estados e nos municípios, para os partidos coligados. Ou seja, é preciso desprivatizar as campanhas eleitorais, mas desprivatizar também a gestão pública. 

Precisamos reconhecer: o nível de profissionalização da política brasileira é uma aberração política, se comparada aos patamares internacionais, com veremos neste artigo. O PT não pode insistir na implantação de sua reforma política por dentro e sem ruptura com certas estruturas do sistema político atual, que a população rejeita nos seus aspectos centrais. 

O PT “precisa sacudir a poeira e dar a volta por cima”. Pelo menos, precisa tentar isso seriamente. Antes das manifestações de 2013, o PT contava com 29% de simpatizantes na sociedade, o que correspondia a aproximadamente 42 milhões de brasileiros e brasileiras. Este percentual caiu agora para apenas 12%, o que dá 17 milhões, uma perda em dois anos de 25 milhões de simpatizantes. Estamos ficando cada vez mais próximo do PSDB e PMDB, que contam, respectivamente, com 5% e 4% de simpatizantes na sociedade. Estamos perdendo para o PSDB nos votos de legenda. Na última eleição para a Câmara dos Deputados, o PT teve 1,750 milhão votos de legenda, ou 21% do total, contra 1,920 milhão do PSDB, ou 23,8% dos votos válidos. Verdade que não são os outros partidos que estão crescendo o prestígio na sociedade, é o PT que está desabando. Não será surpresa se, em breve, o pequeno diferencial que separa o PT dos demais partidos desaparecer e o nosso partido ficar como os demais partidos, com baixíssimo prestígio social. 

Não temos saídas fáceis pela frente. Vamos continuar em processo rápido de definhamento político e ideológico se conformarmos com propostas saudosistas, rotineiras e sem impacto popular. Muitos dirão que as propostas que faço neste documento não são factíveis. Se fôssemos escravos das propostas factíveis não teríamos sequer criado o PT, que parecia inicialmente um projeto de difícil viabilização, e seríamos hoje apenas a corrente de esquerda do PMDB. O que me incomoda profundamente é o seguinte: ou resgatamos nossa identidade histórica como partido de esquerda (não significa defender a versão saudosista de “volta às origens”) ou, de forma regressiva, vamos nos incorporar ao centrão liderado pelo PMDB, do qual nos separamos organicamente há 33 anos. 

Claro que as propostas que coloco a seguir são de difícil aplicação. Estamos em governos importantes, como é o caso do governo federal, onde a governabilidade depende muito da manutenção desta profissionalização da política brasileira. Mas os partidos de centro e de direita, aliados ou de oposição, estão se mexendo “diante das críticas das ruas”. Por exemplo: os partidos de oposição reagiram à concessão de passagens aéreas para as mulheres dos deputados federais e o PT acabou indo à reboque. Em Minas Gerais, não conseguimos fechar posição contra o recebimento de auxílio moradia por deputados que moram em residência própria e para secretários licenciados, deixando setores da oposição capitalizarem a recusa de tais privilégios. O PMDB está fazendo crítica “ao aparelhamento do Estado brasileiro” e está propondo uma radical redução dos ministérios de 39 para 20 e dos cargos de nomeação política. O PT precisa se antecipar a esta ofensiva da direita e do Centrão com propostas mais radicais e efetivas de desprofissionalização e de combate dos privilégios da política no Brasil. Sem isso, seremos empurrados para uma posição vexatória: o partido mais acomodado à profissionalização da política no Brasil. Claro que mudar radicalmente os rumos de construção do PT  não é uma tarefa fácil: estamos fortemente inseridos neste modelo e temos enormes dificuldades de desembarcar dele. 

LULA DISSE QUE “PT DEIXOU DE SER UM PARTIDO DE BASES E SE TORNOU UM PARTIDO DE GABINETES”. POR QUE?  

O ex-presidente Lula fez um diagnóstico cáustico, no aniversário de nosso partido em Belo Horizonte, afirmando que o PT “se tornou um partido igual aos outros”. Disse ele: “O resultado eleitoral nos obriga também a uma reflexão sincera sobre as dificuldades do PT para manter sua sintonia histórica com os anseios da sociedade brasileira. Não é possível ignorar esse desgaste. Não é verdade que o PT tenha se transformado num partido pior do que os outros, mais fisiológico ou mais sujeito aos desvios. O verdadeiro problema do PT é que ele se tornou um partido igual aos outros. Deixou de ser um partido das bases para se tornar um partido de gabinetes. A estrutura à disposição de um deputado é maior do que a de um diretório estadual do partido. A estrutura dos cargos de governo, também. Ao longo do tempo, isso alterou a vida interna do partido. Há muito mais preocupação em vencer eleições, em manter e reproduzir mandatos, do que em vitalizar o partido”. 

Lula concluiu: “As direções, tanto as regionais quanto a nacional, ficaram prisioneiras dessa lógica. Tornaram-se burocráticas, pouco representativas da nossa base social, ou então apresentam uma representação meramente artificial de setores sociais. Militantes e dirigentes tornam-se profissionais da política e dos governos. Falando francamente: muitos de nós estão mais preocupados em manter – e se manter – nessas estruturas de poder do que em fazer a militância partidária que estava na origem do PT. Essa é a origem de vícios como a militância paga, a disputa por cargos em gabinetes, o investimento de grandes recursos em campanhas eleitorais, enfim: vícios que nós sempre criticamos na política tradicional”. 

Mas Lula não apontou alternativas em seu discurso, que não poderia ser outra senão o indicativo de luta pelo combate à profissionalização excessiva da política em nosso país, com o PT se preparando para desembarcar deste modelo com atitudes práticas e de grande valor simbólico. 

Lula afirma que a situação vivida pelo PT “não é um fenômeno inédito, pois isto aconteceu historicamente com grandes partidos populares ao redor do mundo”.  O Brasil tem particularidade em relação aos outros países: enquanto países da Europa, por exemplo, contam com algumas poucas centenas de servidores indicados pelos partidos; no Brasil são centenas de milhares de servidores vinculados aos cargos de livre nomeação ou aos falsos cargos temporários, que são na verdade cargos permanentes sem concurso público. Os privilégios salariais, previdenciários, e outros são também um diferencial do Brasil em relação aos outros países. 

Não existe ideologia que resista ao poder de cooptação deste monumental aparato político montado no Brasil. Ou desembarcamos desta profissionalização aberrante da política brasileira ou o PT vai se consolidar como um partido igual aos outros. 

SALÁRIO DO DEPUTADO NO BRASIL É 16,8 VEZES O SALÁRIO MÉDIO DA POPULAÇÃO; NOS EUA, PÁTRIA DO LIBERALISMO, A RELAÇÃO É DE APENAS 3,3 VEZES

Matéria publicada no jornal O Tempo, de 01/03/2015, indica os seguintes salários anuais dos parlamentares, em reais, pelo mundo afora: Japão (752 mil); Estados Unidos (496 mil); Austrália (480 mil); Brasil (438 mil); Itália (438 mil); Noruega (346 mil); Alemanha (315 mil); Reino Unido (295 mil); Argentina (230 mil); França (211 mil); Suiça (204 mil); México (178 mil); Uruguai (165 mil); Espanha (126 mil). Além da remuneração, os parlamentares contam no Brasil com auxílio-moradia, mesmo os que moram em casa própria; aposentadoria por legislação especial; diárias; passagens aéreas; e outras verbas extras.  

Em todos estes países, a remuneração dos deputados está na faixa de duas a quatro vezes a remuneração média dos trabalhadores. Vejamos a comparação dos Estados Unidos com o Brasil: lá os trabalhadores têm renda média anual de R$ 151 mil contra remuneração 3,3 vezes maior dos parlamentares de R$ 496 mil. No Brasil, a renda média anual dos trabalhadores é de R$ 26 mil contra remuneração 16,8 vezes maior dos parlamentares de R$ 438 mil. A esquerda, em especial o PT, que tem na igualdade social seu principal valor político e moral, não pode ficar indiferente a esta situação. A matriz do liberalismo no mundo é muito mais igualitária do que o Brasil. Por isso, é necessário que se rediscuta e se coloque limites para a remuneração dos parlamentares no Brasil.

Vale ressaltar que o PT exige de todos os seus candidatos a assinatura de uma Carta Compromisso com orientação clara: “Combater rigorosamente qualquer privilégio ou regalia em termos de vencimentos normais e extraordinários, jetons, verbas especiais pessoais, subvenções sociais, concessão de bolsas de estudo e outros auxílios, convocações extraordinárias ou sessões extraordinárias injustificadas das Casas Legislativas e demais subterfúgios que possam gerar, mesmo involuntariamente, desvio de recursos públicos para proveito pessoal, próprio ou de terceiros, ou ações de caráter eleitoreiro ou clientelista”. 

SISTEMA POLÍTICO ATUAL: O GIGANTISMO DOS MANDATOS PARLAMENTARES E O RAQUITISMO DOS PARTIDOS POLÍTICOS. UM EXEMPLO: EM MINAS SÃO 24 FUNCIONÁRIOS PARA CADA DEPUTADO; JÁ O DIRETÓRIO ESTADUAL DO PT TEM APENAS 14 FUNCIONÁRIOS

Lula tem razão quando afirma: “A estrutura à disposição de um deputado é maior do que a de um diretório estadual do partido”. Isto acontece com todos os partidos com representação parlamentar e em todos os Estados brasileiros. Veja o caso de Minas Gerais: aqui, cada deputado estadual tem 24 funcionários e o Diretório Estadual do PT tem apenas 14 funcionários. Mas o que fazer? O PT é um dos poucos partidos que cobra contribuições mensais de seus parlamentares, o que explica, em grande medida, porque o partido tem uma representação bastante estável (poucos saem e ninguém, já tendo mandato, entra). Mas não podemos defender, pela evidente ilegalidade, o compartilhamento desta estrutura dos deputados – pessoal, infraestrutura - com os partidos políticos.  

O PT precisa defender uma redução expressiva das assessorias parlamentares e este é um diálogo que o partido deve fazer com a população. A adoção do sistema de listas fechadas, poderá fortalecer em muito os partidos políticos. Mas não se pode aceitar que este modelo seja implantado sem rupturas com as estruturas do modelo atual de lista aberta, onde cada parlamentar, isoladamente, conta com um grande número de servidores de nomeação política para realizar o trabalho político junto as suas bases. No modelo de listas fechadas os partidos serão menos fragmentados e terão, para sobreviver, de serem mais agregadores dos interesses sociais. Neste novo modelo, as assessorias para mandatos fragmentados podem e devem ser substituídas por assessorias mais enxutas e coletivas vinculadas às bancadas partidárias, o que deve se combinar com o fortalecimento da capacidade de assessoria dos servidores efetivos das diversas casas legislativas. Mesmo que permaneça o sistema de lista aberta, o PT deve defender a redução expressiva das assessorias parlamentares. 

BRASIL TEM MAIS DE 1 MILHÃO DE SERVIDORES DE LIVRE NOMERAÇÃO POLÍTICA E  DE SERVIDORES “TEMPORÁRIOS”

De acordo com uma pesquisa que realizamos na Internet, o Brasil tem mais de 1 milhão de servidores de livre nomeação política e de servidores temporários que são mantidos de forma indefinida sem concursos públicos. Os maiores contingentes de servidores de livre nomeação estão nos municípios e nos estados. Segundo dados que pesquisamos, eles são 504.000 nos 5.556 municípios brasileiros. Já nos Estados, estima-se, que são de 100.000 a 150.000 os servidores de livre nomeação. Na União eles são aproximadamente 22.000 servidores. 

Nossas críticas em nada se confundem com o discurso anti-petista da direita contra o “aparelhamento do PT da máquina do Estado”. Os tucanos detestam concursos públicos. Em São Paulo, uma lei estadual efetivou, sem concurso, 200 mil servidores; em Minas, com Aécio, foram efetivados também 100 mil servidores não concursados pela chamada Lei 100. O Estado de Goiás, governado pelos tucanos,  é o campeão brasileiro em número de servidores de livre nomeação política, são ao todo 10.175 servidores, conforme dados que pesquisamos. 

Conforme pesquisa que realizamos, o Brasil, no governo federal, Poder Executivo, tem aproximadamente 22 mil cargos comissionados, sendo aproximadamente 17 mil de recrutamento restrito entre servidores efetivos e 6 mil de servidores de recrutamento amplo junto as forças políticas do governo de coalizão que temos no Brasil. Este número nos Estados Unidos é de 9.051, que tem uma economia muito maior do que a nossa. Nos países europeus, o número de servidores comissionados é ainda menor: na Alemanha e na França, são 500, e, na Inglaterra, apenas 300. Também no Poder Legislativo – Senado e Câmara Federal – servidores de livre nomeação representam 45% e 27% do contingente de servidores, sem contar aqueles vinculados aos mandatos dos parlamentares.

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Foto: Facebook/divulgação

Luiz Alberto dos Santos, que assessorou a bancada do PT na Câmara dos Deputados, afirma em um trabalho sobre os servidores de livre nomeação no Brasil: “A existência de cargos de confiança é inerente ao regime democrático, em que aos dirigentes eleitos confere-se certo grau de liberdade para compor as estruturas de comando. Embora essa seja uma necessidade para o governo imprimir sua marca à gestão e permitir que o comando político exerça controles verticais mínimos sobre a burocracia de carreira, trata-se de um mecanismo que, empregado sem critério, dá margem a sérias distorções”. 

Portanto, para melhorarmos a política no Brasil é preciso também fazer uma substituição bastante ampla dos servidores de livre nomeação por servidores concursados. Além disso, é preciso definir claramente o que são servidores temporários, não os deixando ocupar cargos efetivos, que devem também ser ocupados por servidores concursados. E para as atividades claramente temporárias, é preciso a adoção de processos seletivos públicos para garantir condições mínimas para que todas as pessoas concorram em igualdade de condições a tais vagas. 

REMUNERAÇÃO “CHEIA” DOS VEREADORES FOI IMPLANTADA PELO DITADOR ERNESTO GEISEL EM 1977 PARA FORTALECER A “ARENA”. ESTA PRÁTICA NÃO SE COADUMA COM A HISTÓRIA DA ESQUERDA

Até a ditadura militar, os vereadores não eram remunerados. A ditadura militar em 1969 mudou  as regras constitucionais, que passaram a prever: “Somente farão jus à remuneração os vereadores das capitais e dos municípios de população superior a duzentos mil habitantes, dentro dos limites e critérios fixados em lei complementar”. No governo do general Ernesto Geisel, frente a crise política vivida pela ditadura militar, os militares para fortalecerem a ARENA (partido da ditadura) e para evitar um maior crescimento da oposição (PMDB), abriram as porteiras e permitiram a remuneração de todos os vereadores brasileiros, independente do tamanho do município. Uma lei complementar criou uma ampla indexação dos salários dos vereadores aos dos deputados estaduais. 

O advogado José Paulo Cavalcanti explica: “Em vez de legisladores pagos com dinheiro público, grande parte dos países tem conselhos de cidadãos, formados por representantes das comunidades, que não recebem salário pela atividade. O cargo de vereador é, praticamente, uma exclusividade da legislação brasileira”. (...) “Na grande maioria dos países, a figura do legislador municipal inexiste. Em seu lugar, há os chamados “conselhos de cidadãos”, formados por representantes das comunidades e bairros, que geralmente trabalham sem remuneração ou ônus para os cofres públicos”.(...) “Os conselheiros são escolhidos pela própria população e costumam reunir-se periodicamente para discutir temas relativos à cidade, numa pauta equivalente à que é cumprida pelos vereadores no Brasil”. (...) “No entanto, nenhum deles sobrevive da política e sim das suas atividades profissionais. As reuniões acontecem em auditórios públicos, sem a estrutura física de uma Câmara Municipal, nem funcionários ou servidores comissionados à disposição”.

A esquerda, historicamente, defendeu a remuneração dos parlamentares porque senão a representação política ficaria restrita aos ricos. Mas, é evidente, que a remuneração só tem sentido se vinculada à dedicação integral ao Parlamento, como é caso dos senadores, deputados federais, deputados estaduais e vereadores de capitais e grandes cidades. Não tem sentido a “remuneração cheia” para vereadores de pequenas e médias cidades, que têm pouquíssimas sessões mensais. É a possibilidade de montagem de sistemas políticos municipais, que levou à constituição de centenas de municípios no Brasil, sendo grande parte deles inviáveis do ponto de vista de seu financiamento. Em um grande número de municípios a arrecadação própria não cobre sequer as despesas com os agentes políticos locais (prefeito, vice-prefeito e vereadores). 

Temos assistido em todo o Brasil a mobilização da população para conter abusos na política local, como a ampliação do número de vereadores e aumentos não justificados da remuneração dos agentes políticos. A esquerda precisa se mostrar sensível a esta situação municipal. Propomos que sejam remunerados os senadores, deputados federais, deputados estaduais e vereadores das capitais e de grandes municípios. Vereadores de pequenas e médias cidades deveriam se manter como legisladores não profissionalizados, vinculados aos seus empregos de origem com estabilidade no emprego e liberação de uma cota de horas mensalmente; e receberem uma ajuda de custo pelo trabalho exercido. As iniciativas da população devem ser apoiadas para pelo menos colocar limites à expansão das estruturas atuais dos legislativos municipais.  

O “ORÇAMENTO IMPOSITIVO” E AS EMENDAS INDIVIDUAIS PRECISAM SER REAVALIADOS 

As atribuições do Poder Legislativo podem ser resumidas assim: fiscalizar e controlar os atos do Poder Executivo; auto-fiscalizar os atos do próprio Poder Legislativo; propor projetos de lei e outras iniciativas parlamentares em consonância com os interesses da sociedade; representar a sociedade junto ao Poder Executivo nas demandas por obras e políticas públicas. No Brasil, fruto da representação individualizada e pouco partidarizada do sistema de listas abertas, foi agregada uma nova e decisiva função dos parlamentares: o de “fazedor de obras” nas suas bases eleitorais. Quando a emenda individual se transforma em obra (um ginásio, a reforma de um posto de saúde, o asfaltamento de uma rua, etc), o parlamentar se apresenta como quem fez as obras, omitindo que elas são dos governos (federal, estadual ou municipal), com recursos dos impostos que compõe o orçamento governamental. As emendas individuais são expressivas do ponto de vista financeiro: cada deputado ou senador tem até R$ 15 milhões por ano, o que representa 25% dos investimentos realizados pela Prefeitura de Contagem, a terceira maior cidade de Minas. 

Jorge Hage, ex-ministro da Controladoria Geral da União – CGU é um crítico das emendas individuais: “Sou totalmente contrário à existência das emendas orçamentárias individuais. Primeiro, porque tais emendas pulverizam o dinheiro público em pequenas obras de interesse público menor. Em segundo, fazem com que o parlamentar federal exerça um papel de vereador, quando ele deveria estar preocupado com os grandes debates nacionais. E, finalmente, porque tem sido esse o principal caminho para os desvios de dinheiro público que verificamos”.

Agora, com o chamado Orçamento Impositivo, foi criada uma espécie de vinculação constitucional para as emendas individuais, como existe na saúde e na educação, por exemplo. O filósofo e comentarista político, Renato Janine Ribeiro, critica duramente o Orçamento Impositivo: “Foi aprovada a Emenda 86 à Constituição, aquela que celebrou a eleição de Eduardo Cunha à presidência da Câmara. Seu espírito é simples: as emendas individuais de parlamentares ao Orçamento ficam preservadas de qualquer restrição pelo Poder Executivo. Este não poderá contingenciá-las ou deixar de pagá-las. Por isso, a emenda ficou conhecida como a emenda do Orçamento Impositivo, o que é quase sarcástico, porque impositivo agora é só o que se refere ao 1,2% do orçamento da União retalhado entre deputados e senadores – não os 98,8% restantes do Orçamento Geral da União – OGU”. (...) “A emenda chega a determinar que, se o beneficiário do recurso for um ente federado inadimplente com o Tesouro, mesmo assim ele deve receber o dinheiro – o que contradiz todos os preceitos de boa governança”. 

Renato Janine afirma que o Orçamento Impositivo é inconstitucional e anti-republicano: “Não pode haver, na lei orçamentária, minifeudos que seriam os recursos que cada deputado ou senador destina a algo que ele escolhe sozinho. A chave do erro está nesta palavra: sozinho. Ninguém pode decidir sozinho, uma vírgula que seja do orçamento. Ele é precioso demais para a sociedade”. (...) “Com esta emenda, deputados e senadores se tornam monarcas, cada um deles, de 0,002% do dinheiro público pago ao governo federal pelos brasileiros. Isto não cabe no conceito de República, que quer dizer que o governo tem por finalidade o bem comum, nem no de democracia, que significa que o poder é atribuído pela eleição popular do governo. Nenhum desses conceitos tolera uma delegação arbitrária a um só, justamente daquela que é uma das razões da república e da democracia, a elaboração do orçamento pelo conjunto do Congresso mais o chefe do Poder Executivo”. 

Devemos nos opor à extensão do orçamento impositivo para as Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais e questionar a própria existência das emendas individuais ao orçamento. Devemos nos opor  fortemente ao voto distrital, puro ou misto, que fragmenta de vez, combinado com as emendas individuais, a representação política no Brasil. 

É PRECISO ENFRENTAR O NÚCLEO DURO DA DESIGUALDADE NO BRASIL

O realismo político irá dizer que as propostas que sugerimos neste texto são inexeqüíveis. Formação de opinião não se faz com propostas exeqüíveis no curto prazo. Se o realismo político tivesse imperado há mais de 30 anos, não teríamos sequer criado o PT, que parecia para muitos um projeto impossível de ser consolidado. Um exemplo mais corriqueiro, é a luta da deputada Marília Campos contra os privilégios em 2003 e 2004 que a levou a um absoluto isolamento político, mas que 10 anos depois, em especial depois das grandes manifestações de 2013, tornou-se um consenso na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. 

Que fique claro. Se adotarmos o realismo político podemos jogar a toalha politicamente no Brasil. Não vamos avançar mais nada, além do que já avançamos. Os avanços que conseguimos no Brasil se deram em uma época que não se repetirá mais. Como dizia Lula: todas as classes sociais ganharam. Os pobres melhoraram de vida e os ricos nunca ganharam tanto dinheiro. Conseguimos avanços sem tocar no núcleo duro da desigualdade no Brasil. Vivemos o boom das comodities e do espetacular crescimento da China, que ampliou como nunca o nosso mercado externo e aproveitamos a oportunidade para criar um mercado interno de massas no Brasil. Mas o rentismo continuou muitíssimo forte e as taxas de juros reais reduziram, mas continuaram entre as maiores do mundo. Não mexemos no sistema tributário regressivo, os recursos para os avanços sociais vieram, não de uma maior tributação dos ricos ou do avanço da tributação sobre o patrimônio e a renda, mas da ampliação da base contributiva: contribuição de previdência dos 21 milhões de novos trabalhadores com carteira assinada; ampliação do Imposto de Renda pessoa física, com o aumento da renda da população; aumento do imposto de renda da pessoa jurídica, com a maior lucratividade das empresas. Não conseguimos avançar no dispositivo constitucional, que vincula o direito de propriedade a sua função social. Esse é o núcleo duro na economia. Na política, temos a democratização da mídia, a reforma política, a discriminação de diversos segmentos da sociedade brasileira. 

Dilma mexeu no núcleo duro da desigualdade no Brasil. Ela recebeu o governo com o câmbio bastante desajustado e, para não agravar ainda mais a situação das contas externas brasileiras, puxou a taxa de juros para 7,25%, a menor da história brasileira. É esta inflexão à esquerda na política econômica, e não as inabilidades políticas da presidenta, que explica, em grande medida, a guerra declarada pelo capital financeiro à presidenta a partir de 2012. Estamos em meio a uma guerra com o capital financeiro e até hoje não entendemos as razões de tamanhos ataques. 

Veja os números sobre os juros no Brasil: em 2011, eles foram de R$ 237 bilhões, em 2011; recuaram, com os juros mais baixos, para R$ 214 bilhões, em 2012; subiram para R$ 249 bilhões, em 2013; e dispararam para R$ 311 bilhões, em 2014. Ou seja, na mínima dos juros em 2012, eles foram quase R$ 100 bilhões menores do que em 2014. 

Como escrevi em meu blog: “Somos de uma geração de esquerda, educada politicamente de forma primária, no combate ao capital financeiro e ao rentismo no Brasil. Para facilitar a comunicação de massas simplificamos, de forma populista, nossos questionamentos. Tratamos o capital financeiro como sendo algo autônomo em relação aos outros segmentos da economia (os serviços para além dos bancos, a indústria, o comércio, a agricultura) e também em relação à sociedade. Sempre combatemos a “meia dúzia de banqueiros” que exploram a todos, ou a “bolsa banqueiro” que os bancos embolsam com os juros estratosféricos. Esta autonomia do capital financeiro não existe. Só existe em nossa publicidade limitada e de má qualidade. O certo é que o capital financeiro se fundiu com outros segmentos da economia e tem bases em diversos setores da sociedade”.

Termino a minha matéria no blog com estas palavras: “A “coligação dos juros altos” é muito maior do que podemos imaginar. Bancos compraram empresas; empresas compraram bancos; empresas aplicam suas disponibilidades financeiras em renda fixa; o grande comércio não quer vender à vista, prefere o parcelamento em diversas prestações “sem juros”, na verdade com os juros já embutidos; Estados e municípios aplicam os recursos disponíveis em títulos do governo federal e alavancam suas receitas; a classe média tem suas aposentadorias privadas financiadas, em grande medida, pelos ganhos com os títulos do governo; mesmo trabalhadores vinculados a sindicatos de esquerda têm os seus grandes fundos de pensão e são grandes aplicadores institucionais em renda fixa; os servidores, agora com a criação da previdência complementar, e com os regimes de capitalização dos Estados e municípios ficarão também dependentes de aplicações financeiras”.

De tudo isso, podemos concluir de que se trata de uma ingenuidade a defesa do “Volta Lula”, confiando que suas habilidades de negociador poderá melhorar radicalmente a situação da economia. Sem enfrentar o núcleo duro da desigualdade no Brasil – juros e rentismo, carga tributária regressiva, propriedade como um fim em si mesmo sem levar em conta a sua função social, pouco poderemos avançar de aqui em diante. 

E é ainda mais ingênuo acreditar que poderemos enfrentar o núcleo duro dos privilégios privados sem enfrentar de forma corajosa os grandes privilégios públicos. Os partidos políticos, mesmo os de esquerda, como o PT, ficam sem autoridade política para comandar reformas mais profundas sem romper com o nível de profissionalização da política no Brasil que é uma aberração. Levantamos, anteriormente, algumas teses que podem retomar o PT como um partido reformador conseqüente e diferente dos demais. 

Existe em todo o mundo uma crítica cada vez mais contundente à profissionalização da política. Políticos não formam uma classe social e os parlamentos não podem ser transferidos em sindicatos classistas, voltado, com grande prioridade, para a defesa dos interesses de seus associados. 

Um exemplo de crítica contundente à profissionalização da política vem do ex-presidente, José Mujica, do Uruguai. Mujica disse: “Os que gostam muito de dinheiro, precisam ficar longe da política, porque se não terminamos hipotecando a confiança das pessoas. Uma sociedade, para que funcione, necessita acreditar em algo”. 

José Mujica, em discurso na ONU, em 2013, afirmou que os governos republicanos deveriam se aproximar da forma de vida dos seus povos: “Não foram as repúblicas criadas para vegetar, mas ao contrário, para serem um grito na história, para fazer funcionais as vidas dos próprios povos e, por tanto, as repúblicas que devem às maiorias e devem lutar pela promoção das maiorias”. (...) “Seja o que for, por reminiscências feudais que estão em nossa cultura, por classismo dominador, talvez pela cultura consumista que rodeia a todos, as repúblicas frequentemente em suas direções adotam um viver diário que exclui, que se distância do homem da rua”.(...) “Esse homem da rua deveria ser a causa central da luta política na vida das repúblicas. Os governos republicanos deveriam se parecer cada vez mais com seus respectivos povos na forma de viver e na forma de se comprometer com a vida”.(...) “A verdade é que cultivamos arcaísmos feudais, cortesias consentidas, fazemos diferenciações hierárquicas que, no fundo, amassam o que têm de melhor as repúblicas: que ninguém é mais que ninguém”.

O sociólogo Boaventura Souza Santos analisa o movimento “Podemos” da Espanha e ressalta que o igualitarismo é também uma de suas características. Dentre as bandeiras do novo partido está: “ser político não permite que se ganhe mais que o salário médio do país”. 

Uma situação exemplar é a da Suécia. Em entrevista publicada no Blog Diário do Centro do Mundo, o primeiro ministro Fredrik Reinfeldt, foi perguntado se “A vida dos políticos suecos, sem luxo nem privilégios, obedece a algum tipo de código de conduta moral?”. Ele respondeu: “Eu diria que sim. A Suécia é um país onde não existe o alto grau de desigualdade social que se vê em outros lugares, e este é um aspecto que valorizamos enormemente em nossa sociedade. Por esta razão, buscamos líderes políticos dos quais se possa dizer que são ”um de nós”, e não ”acima de nós”. Este é um ponto básico do pensamento social sueco, que a mim também agrada. Quero ser um indivíduo entre outros indivíduos, e não alguém tratado como uma pessoa extraordinária. O senso de igualdade entre as pessoas se reflete na alma sueca, no sentimento sueco de identidade nacional, e naquilo que desejamos que a Suécia seja como nação. Eu seria duramente criticado, assim como qualquer outro político, se houvesse a percepção de que vivo uma vida de luxo, inteiramente diferente da vida dos cidadãos comuns.”

E veja que o primeiro ministro Fredrik Reinfeldt é do partido conservador sueco. Visto aqui no Brasil, até parece o depoimento de um esquerdista. Observação: em eleições recentes, a social democracia voltou ao poder, derrotando o partido conservador. 

Em síntese, como disse José Mujica: “Os governos republicanos deveriam se parecer cada vez mais com seus respectivos povos na forma de viver e na forma de se comprometer com a vida”. 

Este igualitarismo deve ser um dos principais nortes políticos e morais da esquerda brasileira, para que ela recupere o seu prestígio.