Leonardo Avritzer: “O balanço do pêndulo”
O cientista político Leonardo Avritzer diz que apreço pela democracia no país é pendular
Para Avritzer, Lula faz seu papel ao recusar regime semiaberto: seu objetivo é viabilizar a derrota do Ministério Público — Foto: Divulgação
Valor Econômico, 4/10/2019
Diego Viana
Nas semanas anteriores ao lançamento de “O Pêndulo da Democracia” (Editora 34), o cientista político Leonardo Avritzer, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), teve a chance de atualizar o texto, incluindo eventos mais recentes. Mas decidiu parar de fazer mudanças no livro, já que “a cada 15 dias acontece algo central para a conjuntura”, diz.
É assim que caminhamos nesses últimos três anos, com fenômenos gravíssimos em base quase semanal”, diz. No livro, Avritzer se baseia em pesquisas sobre o sentimento da população a respeito da democracia e outros temas políticos, econômicos e morais. Conclui que o apreço à democracia, no Brasil, é pendular: às vezes, a sociedade questiona se ela vale a pena, e, às vezes, luta para mantê-la ou expandi-la.
Com base nessa percepção, analisa os eventos de 2013 até o governo de Jair Bolsonaro. Para Avritzer, o comportamento de parte do Judiciário, dos mercados e do próprio presidente indicam que o período conhecido como Nova República, inaugurado com a Constituição de 1988, já se encerrou.
O maior desafio político é reconstituir o centro político, diz. A conjuntura radicalizada favorece a tendência antidemocrática do pêndulo.
Valor: O senhor sugere que a Nova República pode ter chegado ao fim. O que indica esse fim?
Leonardo Avritzer: Vivemos o fim da Nova República. Não no impeachment, que ainda foi um momento no qual um partido importante da redemocratização chegou ao poder, o MDB. Mas quando temos um presidente que questiona um dos princípios fundamentais da República, a ideia de que o período entre 64 e 85 foi momento negativo na história, superado com a redemocratização, não se está na continuidade da Nova República. Também o fato de Bolsonaro tentar reabilitar elementos contrários a qualquer tradição democrática, como a tortura, aponta que a cultura política da democracia não é mais a única no país, nem hegemônica.
Valor: O que isso implica institucionalmente?
Avritzer: No livro, defendo que não tivemos um golpe em 2016, não tivemos uma reversão da ordem institucional legal, mas a ordem institucional legal oscila. Quando um presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro aceita a censura, é hora de perguntar se a Constituição de 1988 está em vigor. Em alguns momentos, parece que a ordem político-legal continua igual, e em outros parece que já mudou. É uma questão de degradação institucional. Alguns dão conta de que as instituições são importantes e devem ser afirmadas, enquanto outros jogam na derrubada do legado de 1988.
Valor: A questão central do livro é a relação do brasileiro com a democracia. O senhor escreve que é um país “ambíguo em relação à democracia, mas democrático”.
Avritzer:O Brasil navega no interstício muito delicado entre moral, democracia e antidemocracia. Se tinha um problema que não estava claro até a eleição e continua não estando, é: qual é o apreço dos brasileiros pela democracia? Ele é variável. Tem momentos em que as pessoas atacam a democracia sem nenhum pudor e tem outros momentos em que a defendem claramente. No episódio da Bienal do Livro do Rio, parece que algum bom senso retorna à esfera pública e ao sistema político. Parece que, enfim, se disse: “A democracia é pluralismo e o estado de direito é importante”.
Valor: O que determina a virada do apreço para o desapreço à democracia?
Avritzer: Minha interpretação é a de que o brasileiro ainda tem desconfiança da democracia. Quando a vida vai mal, a economia vai mal, o governo vai mal, ele se pergunta: “Será mesmo que a democracia é um sistema de governo importante?”. Isso diferencia o brasileiro não só do americano ou do europeu, mas do argentino. A Argentina enfrenta crises, mas por mais que o apoio à democracia caia um pouco, se recupera logo em seguida. Daí a ideia de que o brasileiro tem uma visão pendular da democracia.
Valor: E o que faria o pêndulo virar na direção da democracia?
Avritzer: O importante é se perguntar: como recompor as forças democráticas? Existem evidências positivas em questões como direitos humanos, meio ambiente, ciência e tecnologia. Trata-se de reconstituir visões comuns de políticas de Estado. Em termos de conjuntura, movimentos importantes estão se manifestando, como os estudantes, em defesa da universidade pública. Mas tudo isso está vindo tarde demais, no sentido de constituir um polo político forte o suficiente para ser decisivo na conjuntura. O pêndulo só vai ser revertido se tivermos uma convergência forte de atores políticos, da sociedade civil e do mercado. Ainda não vemos isso.
Valor: Para onde o mercado pende hoje?
Avritzer: Não temos nenhum elemento para afirmar que o mercado é uma instituição antidemocrática, olhando para a Nova República como um todo. Mas o mercado se posicionou para uma agenda estreita de reformas. Não se preocupou com o entorno delas. O fato de Bolsonaro se anunciar na campanha como presidente instável, que poderia tomar medidas contra a ordem econômica, não preocupou o mercado, que só queria as reformas. O último mês foi de deterioração da relação entre Bolsonaro e as forças de mercado, porque o presidente é o centro da desestabilização política e econômica. O mercado está começando a fazer outras contas. A estabilidade econômica não se reduz a reformas, ao superávit fiscal.
Valor: O que esperar das forças que elegeram o presidente?
Avritzer: A conjuntura desagregou o centro político, que é importante em qualquer sistema democrático. Aos poucos, esse centro se reconstitui. Por exemplo, a liderança de Rodrigo Maia no Congresso é importante para a reconstrução do centro. Ainda assim, não é claro qual seria o apoio eleitoral a ele. Falta rearticulação das forças de centro, para reorganizar o sistema, que não pode operar só na lógica polarizada. Deve haver mediação forte entre os polos. Bolsonaro desagregou o polo de centro-direita e não parece capaz de reagregá-lo em base permanente.
Valor: Há algum realinhamento visível?
Avritzer: O que ocorreu em 2018 foi grave para o sistema político. Ninguém imaginava que Marina Silva acabaria a eleição com 1% dos votos e que Geraldo Alckmin não chegaria a 5%. É a desagregação do sistema, na opinião pública e no eleitorado. Não é surpreendente que a recomposição demore. Hoje, o único lugar onde se percebe a ampliação do centro político é no Congresso. Tem votações em que a esquerda compõe com o centro, votações em que o centro é hegemônico, existem negociações reais, aquilo que se espera da democracia. Mas como o sistema político se desgastou no período 2014-2018, é difícil pensar numa rearticulação só no Congresso. Teria de reverberar no campo mais amplo da sociedade, em que o cidadão está perplexo com o governo que elegeu.
Valor: Como a Vaza-Jato afeta seu argumento?
Avritzer:O Brasil não tem um Poder Judiciário independente e baseado em regras. Ele é oligárquico e fortemente personalista. O ex-juiz Sergio Moro é uma expressão disso. Quando vemos o que está por trás de suas ações com o Ministério Público, vemos que faltam as regras mais básicas para o Poder Judiciário. O fato de que a Lava-Jato se concentrou no ex-presidente Lula e não em outras pessoas foi uma decisão não de um sistema neutro de Justiça, mas de pessoas determinadas, baseadas em suas preferências políticas. O grande risco da Lava-Jato é se tornar uma operação de deslegitimação do Judiciário no Brasil, o que seria uma tragédia.
Valor: O Ministério Público Federal pediu a progressão de regime para Luiz Inácio Lula da Silva, mas o ex-presidente se recusa a sair da prisão sem ser inocentado. Como avalia essa queda de braço?
Avritzer: O problema central do MP é que ele está com a credibilidade abalada, especialmente no processo envolvendo Lula. Não só pelas revelações da Vaza-Jato, mas também pelo livro do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot, em que diz que foi pressionado a acelerar a denúncia contra o PT, para poderem condenar o ex-presidente por formação de quadrilha. Todas essas questões colocam o problema mais amplo da politização excessiva do MP e da própria ideia do estado de direito. Quanto a Lula, está fazendo seu papel, que é tensionar o máximo possível o MP onde ele é vulnerável. Essa é uma questão delicada e que vai ter que ser objeto de decisão do STF. O grande medo do MP é que, depois de todos esses revezes, vai sofrer mais uma derrota. O objetivo de Lula é viabilizar essa derrota do MPF. Vamos ver qual será o resultado.