Luciano Coutinho: “O diagnóstico da desigualdade”

06/10/2017 | Economia

Valor Econômico – 05/10/2017

A abertura dos dados do imposto de renda das pessoas físicas (IRPF), preservado o sigilo individual, representou um salto qualitativo no diagnóstico da aguda e renitente concentração da renda e da riqueza no Brasil. Merecem louvor por esta decisão o ex-ministro Nelson Barbosa e o Secretário de Politica Econômica Manoel Pires e respectiva equipe técnica. Em maio de 2016, lançaram o Relatório da Distribuição Pessoal da Renda e da Riqueza da População Brasileira.

As informações do IRPF, combinadas com a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (Pnad) e outras fontes, viabilizaram estudos mais elucidativos sobre a alta desigualdade no país. Até então, as análises se baseavam principalmente na Pnad, de natureza declaratória. Ela registra satisfatoriamente as rendas baixas e médias, mas não capta fidedignamente as rendas altas, subestimadas pelos informantes. Por isso, a Pnad permite avaliar a evolução da renda na base da pirâmide social, mas é insuficiente para entender o que acontece em seu topo.

Realizada anualmente, a Pnad retrata bem como os percentuais da população abaixo das linhas de pobreza e de pobreza extrema caíram continuamente desde a estabilização da inflação. Sublinhe-se que a queda foi acelerada entre 2005 e 2014 pelo crescimento mais rápido da economia e do emprego, pela expansão do Bolsa Família e pelo aumento dos benefícios previdenciários vinculados ao salário mínimo, que teve forte alta real no período. A superconcentração da renda é empecilho ao avanço social e à igualdade de oportunidades.

A linha de pobreza extrema define a renda para comprar uma cesta básica com o mínimo de calorias necessárias à subsistência de uma pessoa, segundo os critérios da FAO e da OMS.A linha de pobreza foi arbitrada como o dobro da linha de pobreza extrema. O total de brasileiros na condição de pobreza diminuiu de 51,8 milhões, em 1995, para 25,8 milhões em 2014, ou de 35% da população para 13,3%. Considerando a pobreza extrema, a queda foi mais acentuada, vindo de 15,2% da população total em 1995 para 4,2% em 2014.

Não resta dúvida de que houve melhora relativa e absoluta da renda dos 50% mais pobres de 1995 a 2014. Segundo a Pnad, a fatia dos 50% mais pobres na renda nacional teria subido de 12,3% em 1995 para 17% em 2014 sugerindo uma substancial melhoria de distribuição. Estes percentuais, porém, referem-se a uma renda subestimada e demandam ajuste.

É aqui que os dados do IRPF fazem a diferença. Como a declaração de renda é obrigatória e as omissões são objeto de multas, a tendência à subdeclaração é bem menor. Além das rendas do trabalho, as declarações do IRPF incluem os ganhos de capital e de aluguéis e os rendimentos de aplicações financeiras.

Estudos recentes do Ipea e do World Wealth and Income Database (codirigido pelo economista francês Thomas Piketty) corroboram o Relatório da SPE-MF de 2016. Tais estudos mostram que a concentração da renda no Brasil continua extraordinariamente alta. Feitos os ajustes, a participação dos 50% mais pobres na renda nacional subiu de 11,3% em 2001 para 12,3% em 2015. Incluindo-se os programas de transferência de renda, ela sobe para 14% (ficando abaixo dos 17% indicados pela Pnad).

vlr1.pngMais gritante é a fatia desproporcional apropriada pelo topo de pirâmide social. Com base nos dados do IRPF, o pesquisador Pedro Ferreira de Souza apurou que, em 2012, os 10% mais ricos da população detinham 53,8% da renda total; os 5% mais ricos, 43,7%; e o 1%, 24,4%. Ou seja, a concentração no topo é muito aguda, e ainda maior no topo do topo. A fração superior de 0,1% (um décimo do 1% mais rico) absorveu nada menos que 11% da renda total.

Dada a alta fatia da renda dos 10% mais ricos, basta que ela cresça acima da média para agravar a concentração. Em outras palavras, a concentração elevada tende a se realimentar. Estudo recente de Marc Milá, da equipe de Piketty, indica que a fatia dos 10% mais ricos teria alcançado 55,3% em 2015. Comparações internacionais mostram que a distribuição da renda e riqueza no Brasil é das mais concentradas do mundo.

As causas dessa concentração exagerada são complexas. À herança histórica de um país que aboliu a escravidão há apenas 129 anos somam-se outros fatores estruturais. A desindustrialização prematura reduziu empregos qualificados na manufatura, substituídos por oportunidades ocupacionais de baixa renda no setor de serviços. A estrutura tributária brasileira é altamente regressiva, baseada em impostos indiretos, cuja incidência é maior sobre os mais pobres. Os impostos diretos estão sujeitos a válvulas de escape. Dividendos distribuídos às pessoas físicas são isentos, estimulando a chamada "pejotização".

As doações e heranças têm baixa taxação e as alíquotas de certas aplicações em renda fixa são inferiores ao desconto máximo do IRPF. Lembremos de que os juros muito altos nos últimos 23 anos transferiram sistematicamente ganhos reais para os estamentos superiores do topo da pirâmide. Agreguem-se, ainda, os ciclos de ganhos de capital e de valorização imobiliária, que favoreceram os mais bem informados e capacitados.

Em suma, a superconcentração da renda é empecilho à formação de uma grande classe média, à ampliação do mercado interno, ao avanço social e à igualdade de oportunidades. Para o bem do Brasil são imprescindíveis: 1- o aumento da eficiência do gasto público em favor dos mais pobres e, 2- uma reforma tributária que modernize e torne a incidência efetiva de impostos equânime e progressiva.

Luciano Coutinho, economista, é professor convidado do Instituto de Economia da Unicamp.