Marcos Nobre: "É recuo tático. Me cansa alguém dizer que Bolsonaro foi domado"
Portal UOL 03/07/2020
Por: Murilo Cleto
Ao optar pelo caminho do isolamento político, do negacionismo científico e, sobretudo, da recusa a governar o País, tudo isso durante uma pandemia, o governo Bolsonaro tomou um caminho que, a muitos, soa contraintuitivo. Isso porque não faltam exemplos, mundo afora, de governos impopulares que usaram da crise atual para reconstruir as suas bases e recuperar protagonismo no âmbito doméstico.
Bolsonaro preferiu a via do confronto, mas, à diferença de outros líderes autoritários, como é o caso do primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, o projeto hegemonista do presidente brasileiro carece de apoio majoritário na população, o que inviabiliza, por ora, a saída alternativa de usar a crise como pretexto para se perpetuar no poder.
Para Marcos Nobre, presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), alegar qualquer recuo de Bolsonaro é não compreender a natureza do seu projeto autoritário.
Dadas essas condições, o que explicaria, então, a reação de Bolsonaro à pandemia? Foi essa pergunta que levou o filósofo Marcos Nobre, um dos mais ambiciosos intelectuais do País, a escrever o livro "Ponto final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia", obra publicada em maio pela editora Todavia.
Para o Bolsonaro, ele enfrentar a pandemia como se deve significaria cometer estelionato eleitoral. Em conversa com o blog, Nobre explicou o cálculo feito pelo bolsonarismo na atual crise, falou sobre o papel das Forças Armadas no governo, as alternativas políticas da oposição e, também, sobre o que tem sido pintado como um novo recuo do presidente.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:
Antes de discutir o que você efetivamente elabora no livro, eu gostaria que você comentasse quais foram os maiores desafios para a escrita dele, assim, a quente, sobre um personagem tão cacofônico como o presidente Bolsonaro. Quer dizer, o que você fez para que o livro não envelheça rápido?
Essa pergunta é muito importante porque também diz respeito a como a gente analisa o fenômeno político. No meu caso, o que eu tento fazer sempre é me colocar na cabeça do ator político, seja de um movimento social, seja do presidente da Câmara ou do presidente da República, ou de um deputado etc. Sempre é essa a perspectiva. A perspectiva não é a minha. Se eu tivesse no lugar dele, com as informações disponíveis, que caminhos eu teria? Quais seriam as possibilidades?
Essa maneira de ver a política também busca algumas estruturas. Ou seja, você olha o campo de ação que é dado para cada força e diz assim: qual é a margem de ação que tem? Até onde pode ir nos limites que tem? Porque, quando você tem políticos, você tem uma correlação de força. Então, foi isso que eu tentei fazer no livro, buscar as estruturas da situação e não simplesmente uma descrição da situação ou um relato da situação. Por isso que é possível estender a análise para o além do momento em que o livro foi escrito. Muitas vezes as pessoas perguntam: “E o que aconteceu ontem? E o que aconteceu há 20 minutos”. Calma, se a estrutura estiver certa, a gente consegue interpretar. Você abre a possibilidade para um outro caminho ou não. Foi mais ou menos essa a ideia que e guiou. Agora, só foi possível também porque eu escrevo sobre política cotidianamente. Sobre especificamente o Bolsonaro há um ano e meio já, trabalhando em cima de Bolsonaro com vários artigos. Você vai conseguindo fechar uma interpretação. E vai nesse sentido da estrutura.
Diante da crise do coronavírus, muitos dos prefeitos e até governadores simpáticos ao Bolsonaro não se negaram a prestar solidariedade diante das vítimas e a mostrar serviço na área da saúde – o que, definitivamente, não é o caso do presidente. Além deles, você também tem líderes até com aspirações autoritárias que estavam com a popularidade no chão, como é o caso de Sebastian Piñera no Chile, e que conseguiram multiplicar as taxas de aprovação graças à administração da crise. Por que, afinal, esse não é o caso de Bolsonaro?
Para o Bolsonaro, ele enfrentar a pandemia como se deve significaria cometer estelionato eleitoral. Porque ele se elegeu como candidato antissistema. Acontece que, para enfrentar uma pandemia dessa, você precisa unir o país em torno do presidente e você precisa dirigir o sistema, que é tudo que ele não fez. Ou seja, o Bolsonaro, desde que assumiu, não governou. O projeto dele não é governar. É justamente deixar o governo funcionar, na medida em que os serviços públicos funcionam, mas, ao mesmo tempo, atacar o tempo inteiro o Estado, o sistema etc. Ou seja, é um presidente outsider. Difícil de entender isso, né? Como é que alguém que dirige o sistema é contra o sistema? Mas é assim que funciona e não é só aqui. Todos os populistas fazem isso. Agora, o Bolsonaro não é só populista. Ele é um populista autoritário. Ele cometeria esse estelionato eleitoral se ele dirigisse o sistema, mas, além disso, ele teria que abrir mão do projeto autoritário dele, que era, de fato, usar esse ímpeto antissistema que tem no país para, aos poucos, destruir por dentro as instituições para, em um segundo mandato, conseguir instaurar um projeto autoritário.
É isso que o diferencia de outros regimes autoritários pelo mundo. Nós temos que pensar que Bolsonaro foi eleito em 2018. Se a gente tomar a eleição do Viktor Orbán, na Hungria, em 2010, a primeira, como uma referência, ele tinha oito anos já de experiência autoritária para ele olhar como faz.
O que acontece é que a pandemia pegou o projeto dele (Bolsonaro) com um pouco mais de um ano de governo. Ou seja, ele não teve tempo de desenvolver o projeto autoritário. E aí, nesse momento, ele estava realmente encurralado no sentido de que, se ele dirigisse o sistema, ele teria que abrir mão do que ele disse na campanha. E ele teria que abrir mão do projeto autoritário dele. E ele não quis abrir mão disso.
Ou seja, de fato, o que Bolsonaro fez foi forçar um golpe. Ele tentou ver se era possível acelerar o projeto dele. Não deu certo. Ele não conseguiu apoio o suficiente ou organização o suficiente para isso. Ele estava construindo. Se a gente olhar o motim das polícias no Ceará em fevereiro, aquilo ali era o começo de algo muito assustador. E que foi interrompido pela pandemia. Líderes autoritários pelo mundo podem usar a pandemia para reforçar o autoritarismo, desde que o autoritarismo já esteja plenamente estabelecido. E não era o caso do Brasil. O projeto foi pego no contrapé.
No início da pandemia, antes mesmo do livro, você disse que um cenário que tornaria plausível a ruptura institucional seria o caos social decorrente da ação ou inação do governo diante da pandemia. Mas esse caos não veio. A que você acha que isso se deve?
São múltiplos fatores. A posição que Bolsonaro tomou desde o início da pandemia, quando ele fez esse diagnóstico, era, de fato, para obrigar contingentes armados em geral a se perfilarem com ele para tentar algo mais grave. Porque justamente o caos social é aquilo que impõe a ordem. Ele fez isso no começo impedindo que existissem medidas de política pública que pudessem compensar as medidas necessárias de isolamento.
Ou seja, os governadores e prefeitos tomam medidas de isolamento, só que, para que elas funcionem, é preciso que você tenha medidas econômicas para proteger os pequenos negócios, as pessoas que estão na informalidade. Você precisa de um monte de política pública para fazer isso. Ele barrou isso, no início. O resultado seria caos social. E aí, o que acontece? O sistema começa a produzir esse tipo de compensação. Vai dizer: “olha, caos social, não”.
Você tem, de um lado, o Congresso, que aprova o auxílio emergencial, que é fundamental; que aprova crédito para as empresas – não chegou, mas aprovou –; aprovou uma atuação do Banco Central que é inédita. Houve uma série de aprovações para evitar o caos social. Foi isso, até agora, que impediu. Houve também iniciativas da iniciativa privada mesmo, de doação de alimento, doação de produto, porque estava todo mundo olhando que, se fosse depender do governo, o caos social seria produzido mesmo. Não só porque o governo é inoperante. É porque o governo decidiu ser inoperante. É mais grave que isso.
E, portanto, o que impediu o caos social foi a sociedade brasileira. No fundo, é isso. O isolamento foi imposto a alguém? Não, mas quem pôde ficou em casa. Quem não pôde, não tinha jeito. Redes de solidariedade de formaram na sociedade. Eu tenho enorme esperança de que essas redes de solidariedade agora se tornem institucionais. Ou seja, se tornem política pública.
Que a gente realmente aproveite a imaginação das pessoas para sobreviver, se organizar, se solidarizar e ajudar uns aos outros. Que ela se torne política pública, aproveitando que nós temos eleições municipais à vista. Então, não aconteceu o caos social por causa da sociedade brasileira. Porque a sociedade brasileira teve a responsabilidade que o presidente não teve. E, claro, algumas instituições que responderam a esse clamor da sociedade por solidariedade e por políticas públicas que impedissem o caos social.
No livro, você chama atenção pro fato de que a política foi transformada em guerra. Costuma-se atribuir o caráter bélico e paranoico do governo à influência dos olavistas. Contudo, vemos que as teorias conspiratórias do olavismo, sobretudo o anticomunismo e o antiglobalismo, têm forte adesão do pensamento militar brasileiro. Em que medida essa paranoia funciona como um elo entre as alas olavista e militar do governo?
Eu acho realmente que essa figura que você citou, que mora nos Estados Unidos, é um fantoche. É um boneco de ventríloquo que é usado pela ala mobilizadora para dizer que tem uma pessoa que formula teorias etc. E, dentro das Forças Armadas, a importância dessa figura é muito pequena. Porque é uma figura caricata, folclórica, no sentido de que ele está à altura dos piores quadros que o governo consegue recrutar. Porque, como é um projeto autoritário, para aderir a esse projeto, você precisa realmente ter uma qualidade muito baixa, uma estatura muito baixa em termos políticos.
Então, eu não acho que seja relevante a figura. Eu acho que ela é só usada como fantoche. E ele também gosta de ser usado. De vez em quando faz uma live criticando para ver se consegue mais atenção. Então, eu não acho que isso seja relevante. O que eu acho relevante é essa distinção entre mobilização e organização. O “partido militar” no governo, ou seja, aquela parte das Forças Armadas que foi para o governo – que é muito diferente das Forças Armadas na ativa, é importante sempre manter essa distinção –, essa ala, que está com a tarefa de organizar, não quer marola. Ela não quer confusão. Porque, se não, ela não consegue organizar, justamente.
É uma coisa desesperadora quando você tem essa ala mobilizadora atrapalhando o serviço de um governo. Porque governar exige que você coordene ações, que você entregue coisas para as pessoas. E, até o momento, esse “partido militar” que está no governo não conseguiu ainda estabelecer essa organização transversal do governo. Eles estão tentando, estão ganhando terreno. Só conseguiram, de fato, se estabelecer como força hegemônica depois que prenderam o (Fabrício) Queiroz. Antes disso, não tinham conseguido.
Então, você tem um jogo aí entre organização e mobilização em que um não vai sem o outro. Mas, num momento de uma pandemia e de uma recessão econômica brutal, você precisa de um grau de coordenação muito alto. Não dá tempo de você ficar pensando em mobilização. Então a mobilização acabou se reduzindo. Pelo menos essa é a minha maneira de olhar.
O “partido militar” que está no governo, e, mesmo quem está na reserva das Forças Armadas, não precisa dessa figura que mora nos Estados Unidos para ter uma ideologia. Já tem formação o suficiente dentro das próprias Forças Armadas para ter sua opinião. Então não acredito que seja necessária essa influência. Realmente, é necessária só como fantoche para essa parte mobilizadora.
Uma hipótese explorada neste blog é que, talvez, eles tenham forçado essa possibilidade de algo como o que ocorreu no Chile acontecer aqui para dar alguma materialidade a essa paranoia e forçar as Forças Armadas a intervirem…
Você tem toda razão. Porque o que o Bolsonaro estava fazendo até a chegada da pandemia era a mesma coisa que aconteceu antes de 1964. Você faz duas coisas: você fala que tem um fantasma comunista, que tem uma ameaça comunista presente; e você diz que todo mundo é corrupto. Essa coisa da corrupção generalizada e da ameaça comunista ele ficou batendo na tecla o tempo inteiro.
E eles tinham sempre uma saída, que era AI-5, AI-5, AI-5. Eles estavam tentando. Embora pareça totalmente artificial você falar em ameaça comunista num momento como o nosso, ela serviu para mobilizar uma parte, pelo menos, da sociedade brasileira, que é a parte fanática de apoio do Bolsonaro. E a parte da corrupção serviu para a outra parte da base de apoio que ele ainda tem, e que agora está realmente periclitando. Quer dizer, alguém que faz todo o discurso contra a corrupção, que diz que todo mundo é corrupto, que o Centrão é o mais corrupto do mundo, e agora faz acordo com o Centrão. Alguém que fala da corrupção e, quando prendem o Queiroz, está no escritório do advogado dele. Você começa a ficar sem discurso.
Hoje faz exatamente três semanas que as coisas andam bem diferentes em Brasília. Bolsonaro não só anda mais quieto como também tem emitido alguns sinais de normalização. Muita gente interpretou a demissão do Weintraub como um esforço de armistício com o STF (Supremo Tribunal Federal), por exemplo. E o quase-novo ministro da Educação, o Decotelli, apresentava um perfil bem distinto do antecessor. E, bem, coincidentemente, chegamos a três semanas desde a prisão de Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ). Tem muita gente apostando no potencial destrutivo do advogado Frederick Wassef. Você acha que faz sentido essa hipótese de que talvez o governo esteja tentando se normalizar?
Eu ouço isso desde que o Bolsonaro foi eleito. Toda semana ele faz uma dessa e todo mundo diz “é bravata”, “é blefe”. Agora, durante a pandemia, acho que ficou muito claro que não é blefe, né? Se tinha alguém que podia dizer que isso aí é só bravata, que isso aí é só blefe, ficou muito claro para todo mundo que não é blefe. Eu ouvir mais uma vez “agora sim ele foi domado”; é muita vontade de acreditar numa coisa que não é verdade.
Vamos pensar que o Bolsonaro pode ficar calado por dois anos e meio? Não, ele não vai ficar calado. O que ele está fazendo agora é: ele está em ameaça máxima, por todos os lados; ele não esperava a reação que o STF teve; ele não esperava que o fato de ele tentar instrumentalizar a Polícia Federal tivesse levado as polícias do Rio e de São Paulo a fazer a operação que prendeu o Queiroz, a pedido do Judiciário estadual.
Não por acaso, já tem retaliação do Aras, do Procurador-Geral da República, à Lava-Jato. Você tem, de fato, uma disputa para quem controla a polícia, para quem controla o Judiciário, para quem controla o Ministério Público. É essa a disputa. Não é que o Bolsonaro está calado. O Aras está falando por ele. E dizendo: “olha, eu tenho aqui uma disputa. E eu vou controlar a Polícia Federal, eu vou controlar o Ministério Público”. E, do outro lado, você tem o Supremo dizendo “não, não vai”, os judiciários estaduais dizendo “não, não vai”.
É essa disputa que está em causa. Se o Bolsonaro ganhar essa, ou seja, se o Flávio Bolsonaro conseguir o que ele quer; se conseguirem fazer com que o Queiroz não delate, com que a mulher do Queiroz não seja presa – porque agora ninguém mais fala nisso –, ele volta. Ele está só esperando. É uma coisa militar, recuo tático. Ele vai voltar. Me cansa, realmente, alguém dizer que agora finalmente ele foi domado. Não, ele não é domado. O projeto dele continua o mesmo, igualzinho.
Uma das questões mais indigestas do seu livro é o reconhecimento de que qualquer acordo político para o impeachment precisa passar não só por agentes que contribuíram pra ascensão do Bolsonaro, mas também por alguns setores mais importantes para a sustentação dele, como os evangélicos e até as Forças Armadas. Digo que é indigesta porque muita gente tem reagido mal não só às suas, mas às propostas em geral de criação de uma frente ampla. E aí é só olhar para esses grupos de 70% nas redes sociais e ver que, mesmo no interior da esquerda, se perde mais tempo em brigas como “Lula roubou” ou “o Ciro foi pra Paris”; do que em realmente articular essa frente. Então eu queria que você falasse um pouco mais sobre a viabilidade desse acordo.
Quem conteve o Bolsonaro foi a sociedade brasileira. Foi a sua mobilização. Foi o fato de aumentar exponencialmente a rejeição ao Bolsonaro, que antes estava estabilizada em mais ou menos um terço do eleitorado e subiu de uma maneira muito importante. A gente não tem, de fato, pesquisas comparáveis. A gente precisa de uma série de pesquisas de opinião remotas, mas com certeza foi a sociedade brasileira que impediu o golpe do Bolsonaro.
Ao mesmo tempo, nós temos que pensar o seguinte: não foi suficiente toda essa mobilização da sociedade para, de fato, formar essa frente ampla. Porque você precisa, de fato, atingir, algo como dois terços do eleitorado não só de rejeição mas de apoio ao afastamento do presidente, para que o sistema político se mexa. Porque, para o sistema político enquanto tal, a situação como ela está é confortável.
Está todo mundo tentando garantir a sua posição, pensando na eleição municipal, com quantas prefeituras vai sair. Está todo mundo fazendo cálculo eleitoral. E, no cálculo eleitoral, o Bolsonaro acuado é bom. Então, se houver uma medida – que eu acho que é uma medida absolutamente necessária – de afastar o risco autoritário, que é fazer o impeachment do Bolsonaro e responsabilizá-lo por tudo que ele fez, precisa ter esse movimento da sociedade.
Como você disse, a própria sociedade não está se entendendo. Embora tenha havido movimentos muito importantes, os interesses eleitorais estão se misturando. E estão conseguindo convencer as pessoas a se atirarem entre si, como estão fazendo desde 2014. Está todo mundo atirando entre si e o Bolsonaro ganhou a eleição por causa disso. Ou, de fato, na base da sociedade, se consegue fazer um grande acordo para o afastamento e, nesse momento, diz “não importa a diferença que eu tenho com você, mas preservar a democracia é mais importante”.
Agora, não pode ser simplesmente um movimento para tirar o Bolsonaro. Todas as pesquisas sobre o bolsonarismo mostram que o sentimento antissistema é muito forte, então não adianta tirar uma pessoa. Tem que repactuar a democracia de uma tal maneira que as pessoas olhem e falem “esse não é aquele sistema antigo”. Porque tudo que as pessoas estão vendo até agora é o sistema antigo. São as mesmas figuras, são os mesmos acordos, é o mesmo Centrão, aquela coisa toda.
Agora vamos para a parte do realismo. Não é indigesto só para você, não é indigesto só para mim. É indigesto para todo mundo. E a última coisa que eu queria na minha vida era fazer um exercício de realismo político como esse, de dizer “olha, a correlação de forças coloca numa posição em que não é possível simplesmente passar por cima do eleitorado evangélico e das Forças Armadas que estão no governo”. Não é possível do ponto de vista do realismo político.
Se alguém me disser que nós conseguimos fazer um impeachment hoje, em que a gente faça um duplo impeachment, que saia Bolsonaro e saia Mourão… Essa coisa de cassação pelo TSE, isso aí é terceirizar a tarefa política. Isso aí você não faz. Você quer regenerar a democracia, você faz um movimento de massa para chegar a esse objetivo. Então, se alguém me disser “É viável. Olha aqui: tem essa massa aqui que está na rua, que está nas ruas digitais e nas ruas reais. A gente conseguiu 70% de rejeição e apoio ao impeachment e conseguiu empurrar o sistema político”, se alguém me disser isso hoje, e disser “olha, dá para fazer”, eu aceito na hora.
A última coisa que eu queria na vida era ter que fazer esse reconhecimento e esse pragmatismo político. O problema do ponto de vista da esquerda, eu acho, é que o capitalismo vive bem sem democracia. Ele já demonstrou isso. Mas o socialismo democrático, não. Ele precisa da democracia. Você precisa da democracia para poder aprofundar a democracia. Isso é algo essencial, é algo vital. O meu receio justamente é as pessoas acharem que basta tirar o Bolsonaro. Não, não basta. Nós precisamos muito mais do que isso. Nós precisamos repactuar regras de convivência democrática, que nos últimos anos foram totalmente destroçadas.
É indigesto para você, é indigesto para mim, é indigesto para todo mundo. E eu esperava que eu não estivesse nessa situação, que é uma situação defensiva. Nós estamos na defensiva. Nós estamos defendendo o mínimo. Não é que nós vamos agora avançar. Nós estamos defendendo o básico. Nós estamos numa situação muito difícil. Eu vou ficar contente se alguém me demonstrar o contrário. Eu não consegui ver ainda que nós estamos numa posição na correlação de forças que nos permita dar um enorme salto nesse momento. Não é o que eu vejo.
Há setores à esquerda que defendem a tese dos “dois populismos”, no sentido de que a estratégia para derrotar a extrema direita é polarizar à esquerda. Como você vê isso? Caminhar para a esquerda não daria legitimidade a essa “política da guerra” de Bolsonaro?
Teria dado certo, eu acho, seria uma possibilidade real, se tivesse sido essa a posição em Junho de 2013. Em Junho de 2013, nós tivemos essa chance. Nós tínhamos essa chance de canalizar o sentimento antissistema numa direção progressista. E foi perdido. Porque a maior parte da esquerda achou que Junho de 2013 era de direita.
Quando as pessoas que estavam ali tentando encontrar um canal para expressar a sua insatisfação política não encontram forças políticas organizadas de esquerda – algumas encontraram, mas na sua maioria não –, elas vão buscar outras maneiras de se organizar. Outros polos de aglutinação que não a esquerda. Vamos fazer a comparação com o Bernie Sanders. De onde vem o Bernie Sanders? De Occupy Wall Street em 2011, que foi, naquele momento, o Junho americano.
Esse movimento vai ganhando força, vai se organizando, e resolve desaguar institucionalmente numa pré-candidatura democrata, coisa que nós não temos no Brasil. Os partidos minimamente não se abrem para uma coisa chamada prévias. E a gente vê as mesmas pessoas o tempo inteiro. Quem é que sabia quem era Bernie Sanders antes de 2016? Ninguém.
Aí você tem esse movimento, ele mudou a agenda do país. Escolheram a Hillary e elegeram o Trump, mas esse processo continuou. E, depois, entre 2016 e 2020, você teve o Green New Deal, essa nova proposta de revolução ecológica e socialista. Um candidato socialista nos Estados Unidos teve a força que teve. Aí você fala “bom, mas agora escolheram o Joe Biden”. Sim, e o Joe Biden já foi e será obrigado a ir para a esquerda por causa da candidatura do Bernie Sanders.
O Biden ganhou porque o eleitorado negro garantiu a vitória dele na primária democrata? Sim, e em seguida você tem todos esses protestos de rua para dizer “caro candidato Joe Biden, não basta ir para a esquerda no sentido do Bernie Sanders sem você considerar a questão racial como central. Então não conte que você vai ter automaticamente o voto do eleitorado negro se você não fizer um movimento de fato para colocar a questão racial no centro”.
Os Estados Unidos têm um sistema político que é poroso a esse tipo de coisa e em que essa energia social conseguiu entrar. O Bernie Sanders não ganhou, mas ele muda a agenda. No Brasil, o que a gente tem? Um sistema político que se blindou a Junho de 2013. Aí você vira e fala assim: “agora é a hora”. Mas como? Nós estamos na defensiva. Cadê essa energia social toda?
Essa energia social antissistema que podia ter sido utilizada foi parar sabe onde? No lavajatismo, em algumas denominações evangélicas, em outros lugares que não movimentos organizados à esquerda. Como é que, numa situação em que a correlação de forças é desfavorável, em que você está defendendo o mínimo, você vai dizer “agora é hora da ofensiva”? Como?
Só se for uma estratégia como estratégia das duas velocidades. Você diz: “olha, eu vou agora organizar um movimento para ter um efeito lá na frente, mas, no momento, eu tenho que fazer Frente Ampla”. As duas coisas não se excluem. Porque esse negócio de Frente Ampla não é que todo mundo vai se abraçar e tudo é bonitinho. São negociações duríssimas e têm que ser duríssimas.
Tem lá uma faixa “todos pela democracia” e atrás cada um com a sua bandeira. Então pode ter. Claro que pode ter esse movimento. Mas vamos pensar o seguinte: o que está acontecendo durante essa pandemia? Esse tipo de coisa que a gente mencionou no início, dessas redes de solidariedade que se formaram. Isso tem que virar política na frente. E vai acontecer, lideranças comunitárias novas apareceram. Agora como é que elas vão chegar ao sistema político, se o sistema político não deixa elas chegarem? É dramático.
O grau de blindagem do sistema político brasileiro à energia social é uma coisa assustadora. Então, se alguém me disser "vamos começar", estou completamente a favor. Agora, a vontade não basta. Com que energia? Com que pessoas? É o que eu acho nesse momento. Agora, essas coisas podem mudar de uma hora para outra. Junho aconteceu de uma hora para outra. Claro, olhando para trás você vê que não é acaso que tenha acontecido, mas na hora surge como um acontecimento que você não esperava.
Você disse que a cassação pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) "terceiriza" a política. Poderia elaborar isso um pouco melhor? Além disso, você acha que o caminho TSE diminui muito as chances do acordo pela derrubada de Bolsonaro? Pergunto inclusive porque, nesse caso, o poder não cai automaticamente no colo dos militares…
Quando eu falo em terceirizar a política, no caso do TSE, o que eu quero dizer é o seguinte: não adianta você afastar uma chapa, você afastar um presidente, se você não tem repactuação política. A única maneira de você regenerar uma democracia é através de um movimento popular de massa. Você diz "ah, não, pode ter um movimento popular de massa pela cassação no TSE". Ora, como assim você faz um movimento popular de massa para um juiz decidir a seu favor? Não faz o menor sentido.
E, depois, o seguinte, o TSE jamais, nas condições atuais, vai decidir pela cassação da chapa. Isso aí é falta de força política. Quando você não tem, na correlação de forças, massa crítica, quando você não tem capacidade política, você pede para o outro resolver o seu problema. Ou a sociedade é capaz de se organizar, de regenerar a democracia e por isso faz o impeachment, ou então para mim não tem sentido.
Porque sai o Bolsonaro, ou saem o Bolsonaro e o Mourão, e o que entra? Outra candidatura antissistema, que talvez possa ser tão autoritária quanto o Bolsonaro. É até difícil imaginar, mas pode ser porque você não elimina a estrutura do problema. A estrutura do problema é: existe espaço para candidaturas antissistema no país e esse espaço só vai desaparecer se essas pessoas puderem ser incluídas no sistema político, se elas sentirem que elas têm voz, se elas sentirem que têm mecanismos para participar de verdade, que não é conversa fiada, que não é a política de sempre.
É por isso que o requisito é muito exigente. Como é que nós vamos direcionar essa energia antissistema para a esquerda? Com as forças políticas desorganizadas do jeito que estão, não tem nenhum espaço. Eu não estou nem falando de partido. Eu estou falando de uma organização política que seja capaz de fazer isso hoje. É uma questão realmente de correlação de forças, e é horrível falar isso. É muito melhor você fazer o discurso de "vamos pra cima e vamos conseguir tudo". É excelente, eu acho fantástico. Só que você reforça a posição do Bolsonaro. Agora que ele está quietinho fica fácil.
Você vê essa possibilidade de, forçado pela sociedade civil ou pelo sistema, o Bolsonaro acabar se enquadrando de alguma maneira?
Não vejo a menor chance, mesmo porque o tipo de estado de atenção, de alerta, em que está a sociedade hoje, se ele ficar quietinho por seis ou sete meses, as pessoas falam “está tudo certo, ele agora se enquadrou”. E, enquanto isso, ele vai fazendo o quê? Ele vai organizando, por exemplo – para dar um exemplo só entre muitos possíveis –, as polícias estaduais em nível federal, que era o que ele tinha começado a fazer. Se a gente for olhar a taxa de letalidade das polícias estaduais na pandemia… Como é que aumenta a letalidade policial se diminui o número de crimes contra o patrimônio, se as pessoas estão em casa? Justamente! É isso, o bolsonarismo venceu nisso.
Existe um grau importante em que as polícias estaduais não respondem aos seus governadores. Isso é muito grave. E isso vai continuar. O Bolsonaro não vai deixar de fazer isso. E o que isso significa? Que as polícias estaduais não compõem uma força incontornável porque elas são estaduais. Se elas tiverem uma organização e responderem a uma organização nacional, em termos de efetivo elas têm o dobro do efetivo das Forças Armadas. É claro que elas não têm a capacidade bélica, de organização, de formação e de treinamento, mas imagine 500 mil pessoas armadas e o que você pode fazer com isso.
E eu vejo, para mim, muito claro que o motim no Ceará em fevereiro foi um ensaio. O Bolsonaro vai deixar de fazer isso? Não vai! E nós ter que esperar isso acontecer de novo? A gente sabe que a escalada autoritária passa por muitas coisas: destruir as instituições, fazer reformas eleitorais, reformas judiciárias para beneficiar quem está no poder, tudo isso. Mas tem uma outra parte, que é a seguinte. Existe uma passagem de grupos armados de milícias que se tornam políticos, entre muitas aspas. Você passa a justificar coisas que são criminosas como coisas políticas. Essa é uma passagem clássica de qualquer fenômeno autoritário.
O risco de uma coisa dessa acontecer é muito alto e continua sendo com o Bolsonaro no poder. Esse tipo de coisa nós não podemos permitir. Ele não pode, de novo, ganhar um crédito e dizer “não, agora ele está normalizado, agora ele está amansado”. Nós não podemos admitir isso. Porque, quando essas milícias se tornam paramilitares no sentido político, você perdeu. Porque a sociedade não está armada. Quem está armado são esses grupos.
Nós temos que realmente nos mexer de maneira ativa para formar essa grande Frente Ampla para, sim, afastar Bolsonaro. É a única maneira que nós temos. E, claro, essa Frente tem que garantir que, seja lá qual for o governo que vai se seguir, não vai ser um governo autoritário, não vai ser um governo populista, não vai ser um governo de continuidade em relação a nada do que foi o governo Bolsonaro.
É isso que faz parte desse grande acordo interno dessa Frente também. Não é que todo mundo vai participar do governo, nada disso. Mas é garantir o governo não será um governo de continuidade. Isso é essencial. Foi isso que se garantiu no impeachment de Collor, uma garantia de que o governo Itamar não seria uma continuidade em relação ao governo Collor. Essas coisas são muito importantes.
Você acha que teve governador que não decretou lockdown por medo de não ser obedecido pelas polícias?
Ah, eu não tenho dúvida disso. Não tenho dúvida, porque quem é que vai aplicar a lei? Existem graus variados, mas é muito preocupante isso que está acontecendo. Você tem razões variadas. Governadores e prefeitos foram deixados ao Deus dará. E começou uma competição fratricida… quem é que consegue mais respirador. Porque não tem coordenação.
Numa situação em que é, no fundo, guerra de todos contra todos – porque foi o que aconteceu na pandemia, do ponto de vista do sistema, da organização do combate à pandemia, tirando o nosso glorioso SUS, o que a gente teve foi isso –, nesse contexto o poder das polícias é muito grande. Porque eles estão vendo que está tudo fragmentado, que você não tem centralização, que você não tem coordenação e que, portanto – eu não estou falando da cúpula da polícia, porque a cúpula da polícia está sempre com o governador, ela foi indicada pelo governador –, o problema é a base não responder mais à cúpula. Isso é muito grave.
Você acredita que faz sentido essa comparação que alguns analistas têm feito entre o que vive o Bolsonaro agora e a reconversão do lulismo em 2005-06 em virtude dos escândalos?
É um vexame essa comparação. É um vexame. É uma coisa que desonra. Esse tipo de comparação é realmente ultrajante para mim. Você está falando de um presidente que realmente quer implantar o autoritarismo no Brasil, como é o caso do Bolsonaro, e um presidente que deu provas de que é um profundo democrata, que é o Lula.
Primeira coisa: eu não comparo um democrata com um ditador. A segunda é que, do ponto de vista político, o que está acontecendo é que o Bolsonaro está só ganhando tempo. Não é que ele está reformulando o governo dele. Ele está tentando não ser abatido. O que aconteceu ali no governo Lula foi uma repactuação do projeto.
Você pode discordar, como eu discordei. Passei anos escrevendo coluna toda semana para dizer "olha, se não tiver reforma política isso aqui vai para o chã". A comparação, para mim, desonra. Não é possível comparar. O Bolsonaro está tentando se manter no poder de uma maneira desesperada. Não tem projeto ali, por enquanto. Mas seria comprida essa resposta, porque eu teria que fazer uma explanação mais detalhada. Então fica só a manchete.