Marcos Nobre: “A velhice do novo e a novidade do velho”

07/10/2016 | Política

Valor Econômico – 3/10/2016

• O salve-se quem puder da eleição dará o tom da transição

Junho de 2013 levou às ruas uma insatisfação social profunda e duradoura. A partir de 2015, a Lava-Jato levou a crise para o coração do sistema político. E os efeitos da brutal recessão iniciada ainda em 2014 abriram a temporada de caça aos culpados de todas as desgraças. Foi então que teve início um salve-se quem puder geral dentro da política oficial. O PT se posicionou contra a política econômica de sua própria presidente, aliados e inimigos ameaçaram colocar fogo no circo caso Dilma Rousseff não os defendesse dos ataques da Justiça, acordos que vigoraram durante 20 anos e cinco eleições presidenciais deixaram de valer.

O resultado desse retorno ao estado de natureza da sobrevivência política não deu apenas no impeachment de Dilma Rousseff. Deu também nestas eleições municipais. A selvageria política que se instalou impediu que os congressistas costurassem os acordos de sempre em torno das regras eleitorais. Lutas de clãs armados substituíram as negociações. Em lugar de acordos, o que se viu foram vitórias pontuais de um lado ou de outro, sem vencedores nem vencidos definitivos.

No final, é a urna que conta. Mas o resultado da urna já vem previamente formatado pelas regras eleitorais. Dependendo de quais são as regras, candidaturas nascem ou morrem antes mesmo de nascer. As regras definem previamente as chances que têm candidatos e partidos, antes mesmo da própria campanha eleitoral. Com regras feitas no tapa, introduzindo de chofre e sem transição mudanças bastante radicais, também a eleição virou um salve-se quem puder. A expressão é aqui literal. Já se ultrapassou a linha da morte meramente política. Esta eleição já registra um número de assassinatos de candidatos que tirou a selvageria do reino da metáfora.

E, no momento do salve-se quem puder, a tábua de salvação não é o novo surpreendente, mas o velho conhecido. É o candidato do governador, é o postulante do ex-candidato a presidente, é o representante da oposição histórica a tudo o que está aí, é o candidato à reeleição, é o defensor de governos passados bem avaliados. A conversa de que esta é a eleição do novo precisa de um bom grão de sal.

Os nomes podem ser novos, mas não são poucos os sustentados pela velha política. João Doria em São Paulo é o caso mais emblemático. É o novo que vem nos ombros do governador Geraldo Alckmin. Ninguém vota em alguém porque diz que não é político. Se decide votar, vota dentro das limitações que lhe são impostas pelos partidos. Com candidaturas que representam a política de sempre, faz o que pode. A cara real desta eleição é Iris Rezende em Goiânia, é Rafael Greca em Curitiba. Figuras mais do que manjadas da política de sempre.

Daí que dizer que a atual eleição é uma resposta direta a Junho de 2013 é enganadora. O que também não quer dizer que tudo ficará igual. Apesar de toda a rejeição generalizada ao sistema político, há mudanças bem mais sutis do que uma contraposição entre política e antipolítica, entre novo e velho. São mudanças bem mais complexas do que os cínicos da política quiseram apregoar quando disseram que a poeira de Junho iria acabar baixando e que, no final das contas, PSDB e PT voltariam a ser os dois grandes polos organizadores da política nacional, como se nada tivesse acontecido.

Segundo o levantamento feito por "O Globo", dos grandes partidos o PSDB foi o que apresentou o maior número de candidaturas coligadas (95,6%), enquanto o PT apresentou a menor taxa de candidaturas coligadas (77%). Esse dado dá indicações do sentido em que esses dois partidos podem se reorganizar como polos, caso consigam de fato manter essa posição. No caso do PSDB, o inchaço de coligações está intimamente ligado à disputa interna pela candidatura presidencial. No caso do PT, a relativa penúria de coligações está ligada à disputa pela hegemonia do campo da esquerda.

Na luta pela candidatura presidencial, Aécio Neves e Geraldo Alckmin tentam reforçar suas posições mediante alianças com outros partidos. Conquistar aliados fora do PSDB se tornou o mais importante trunfo na disputa interna. É essa abertura para fora do partido que não apenas vai acabar determinando quem será o candidato tucano, mas qual será a reconfiguração do PSDB. A grande questão nesse caso é de saber se o partido permanecerá unido ao final do processo, ou se, no caminho até 2018, as duas candidaturas acabarão levando a uma cisão que levará à saída de um dos dois nomes rumo a outra legenda.

O PT seguiu o caminho contrário ao do PSDB. Demonizado como ícone da corrupção, teve contestada a posição de líder do campo da esquerda que deteve por quase 25 anos. Vendo sua própria existência ameaçada, adotou a tática de seguir mais isolado na eleição municipal com o objetivo de mostrar que continua sendo o grande bastião de que dispõe a centro-esquerda para enfrentar a centro-direita. O resultado foi ambíguo. Em comparação com outras forças do mesmo campo, não foi nem dizimado nem conseguiu se impor como força absoluta. Teve o quase resultado de São Paulo, mas o conjunto está longe de ser unívoco, já que Psol, PDT e mesmo PCdoB exibem resultados expressivos e comparáveis, por exemplo. Para não falar no Rede, que não obteve bons resultados em sua tática de isolamento, mas que tem em Marina Silva uma reserva eleitoral relevante.

A atual eleição, com toda a sua selvageria própria, dará o tom da transição para uma reorganização do jogo partidário e de seus polos. Se o PSDB quiser permanecer como um dos polos do sistema, terá de resolver não só como ficará sua relação com o governo Temer, mas, sobretudo, como fará para evitar um racha ao meio entre Aécio e Alckmin. O PT tem diante de si a tarefa dificílima de reconquistar a posição de líder do campo da centro-esquerda. De qualquer maneira, para entender o significado dessa reorganização para além das aparências, o importante é não se deixar levar pelo valor de face. Uma efetiva reorganização significará que nenhum nome, partido ou campo político representará mais o que representou antes.

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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

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