Marcos Nobre: “Eleição de Bolsonaro devolveu legitimidade ao sistema político”
Professor de filosofia da Unicamp vê o presidente investir no colapso das instituições democráticas para governar
Revista Época, 23 de agosto de 2019 | Por Ruan de Sousa Gabriel
Foto: Adriano Vizoni / Folhapress1. O presidente Jair Bolsonaro não abandonou o discurso eleitoral mesmo depois da posse. Por quê?
Bolsonaro mira naquele um terço do eleitorado que é fiel a ele. Esse um terço é composto da extrema-direita, de lavajatistas, de quem busca por lei e ordem, de quem teme a volta do PT. O que mantém toda essa gente unida em torno de Bolsonaro é a ideia de que ele é um presidente antissistema, o que é, em si, um paradoxo. Como um presidente pode ser antiestablishment? Bolsonaro luta contra o sistema político. Para manter sua base unida, ele precisa que as instituições que o elegeram estejam em colapso. Com suas palavras e atos, ele reforça o colapso dessas instituições.
2. Quais são as evidências de que as instituições estão em colapso?
São muitas. A lista de barbaridades cometidas contra a Constituição e as leis desde que Bolsonaro assumiu é infinita. Em todos os níveis, em todos os Poderes, as instituições estão funcionando de maneira disfuncional. Uma instituição deixa de funcionar quando um indivíduo se identifica com ela a ponto de impor suas posições como decisões institucionais. É isso que Bolsonaro faz como presidente. É o que Sergio Moro fazia como juiz e faz como ministro da Justiça. No caso de Bolsonaro, o exemplo mais destacado é a indicação de seu filho ( o deputado federal Eduardo Bolsonaro ) à embaixada nos Estados Unidos. Ele usou a Presidência da República para um ato manifestamente contrário a qualquer regra estabelecida para a nomeação de diplomatas. Não é só nepotismo, é um atentado contra as instituições. Outro exemplo foi a exoneração do funcionário do Ibama que o multou por crime ambiental. Ele equivale seus interesses enquanto indivíduo aos interesses da instituição, o que é um desrespeito completo às regras explícitas — definidas pelas leis — e implícitas que regem o funcionamento das instituições. O presidente atropela procedimentos, se aproveita do cargo e disfarça suas motivações absolutamente pessoais com justificativas aparentemente legais.
3. Como o senhor avalia a atuação das oposições nestes primeiros meses de governo Bolsonaro?
Considero oposição todas as forças democráticas. O modelo de governo que Bolsonaro tem em mente é o governo do general Emílio Garrastazu Médici ( 1969-1974 ), é a ditadura militar. Qualquer um que seja contra esse modelo deveria estar na oposição. As oposições, potenciais ou reais, têm agido de duas formas: ou tentam hackear o governo ou aguardam passivamente seu fracasso. A oposição à direita, a direita democrática, tem hackeado o governo Bolsonaro, tem se aproveitado dele para impor uma pauta econômica que não conseguiu impor nas últimas eleições nem, completamente, no governo de Michel Temer. A direita democrática controla a pauta legislativa, mas não a pauta pública. Essa quem controla é Bolsonaro. Já a oposição à esquerda é ora passiva, ora reativa. Ou reage ao que Bolsonaro fala e faz ou espera e diz que o governo não vai dar certo. A direita usa o governo para passar sua pauta. A esquerda espera que ele fracasse para se cacifar e voltar ao poder.
4. O que explica esse comportamento das oposições?
O sistema político, como um todo, tem plena convicção de que Bolsonaro não será reeleito em 2022, que ele não será capaz de ultrapassar um terço do eleitorado. Ele é o candidato ideal a ser batido. Chega ao segundo turno, mas não ganha em hipótese alguma. Mas fica a pergunta: vale a pena correr esse risco, seja hackeando o governo, seja esperando passivamente seu fracasso? A maioria do eleitorado não apoia Bolsonaro. Um terço o rejeita e outro terço mantém distância. Mas o sistema político não sente o mesmo medo e a mesma angústia que a população, porque Bolsonaro é, na verdade, uma resposta a seus problemas. Desde junho de 2013, o sistema político estava em crise existencial porque não atendia mais às expectativas de representação do eleitorado. A eleição de Bolsonaro devolveu ao sistema político a legitimidade que tinha perdido. Como não se formou um movimento social de defesa das instituições democráticas capaz de empurrar a pauta do governo para um lado ou para o outro, os partidos políticos saíram fortalecidos como únicos intermediários entre a sociedade e o Estado. Só que os partidos não acham que a situação é tão grave e usam o mesmo recurso usado por Bolsonaro para se eleger: canalizam o medo e a insegurança e dizem ao cidadão que são sua única defesa.
Bolsonaro faz um ataque frontal às instituições que permitiram que fosse eleito, enquanto as oposições seguem dando espaço para o presidente, diz Nobre. Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo5. Até agora, quem mais está se mexendo com os olhos nas eleições de 2022 é o governador de São Paulo, João Doria, que tem atacado Bolsonaro. Qual é sua avaliação da estratégia de Doria? Ele pode se consolidar como uma alternativa da direita liberal?
A estratégia de quem está pensando em 2022 é a seguinte: Bolsonaro não conseguirá aumentar sua base de apoio. Há eleitores que podem abandoná-lo, outros que o rejeitam e um grupo que não o apoia nem o rejeita. A estratégia de Doria — e também de Luciano Huck — é acenar num dia para os que não rejeitam nem apoiam e no outro para os apoiadores de Bolsonaro que podem abandoná-lo.
6. E a esquerda, tem estratégia?
A esquerda pensa que Bolsonaro já está no segundo turno porque tem o apoio consolidado de um terço do eleitorado. E que quem tem o apoio do terço que rejeita Bolsonaro também já está no segundo turno. E quem tem o apoio desse outro terço? A esquerda. Por isso o PT vem radicalizando o discurso e insistindo no “Lula Livre”. Não só porque o maior líder popular da segunda metade do século XX é petista e foi preso num processo no mínimo suspeito, mas também para dar unidade a essa parte do eleitorado, tornar essa base mais aguerrida e fiel. Assim, eles se preparam para o embate em 2022.
7. Antes de 2022, há as eleições municipais de 2020. O PSL, o partido do presidente, detém a segunda maior bancada na Câmara dos Deputados, o que lhe garante uma fatia generosa do Fundo Partidário. O PSL conseguirá repetir, nas eleições municipais, o sucesso que Bolsonaro e que o próprio partido tiveram em 2018?
Acredito que eles têm boas chances. Não o PSL, que não existe de fato, mas os candidatos bolsonaristas. Uma parte do eleitorado que apoia Bolsonaro está permanentemente mobilizada nas redes sociais, produzindo notícias e espalhando correntes. Essas pessoas se sentiam excluídas do sistema político e, quando Bolsonaro chegou ao poder, elas se viram incluídas porque sabem que sua posição orienta as posições do presidente, derruba ou faz um ministro. Essa sensação de inclusão é ilusória, mas, antes, nem isso elas tinham. Se um Wilson Witzel consegue se eleger governador do Rio de Janeiro, por que eles não elegeriam vereadores ou prefeitos? Bolsonaro conseguiu produzir um tipo de mobilização que a direita e a esquerda democrática não conseguiram, que é descentralizada e flexível, mas permanente. Com que candidatos a direita e a esquerda democráticas vão aparecer em 2020? Com as mesmas pessoas indicadas pelos partidos? Esses partidos continuam analógicos e sem entender a mudança estrutural causada na esfera pública brasileira pela internet. Essa mudança produziu um novo sujeito, que quer um novo tipo de participação e um novo tipo de abertura dos partidos políticos.