Maria Cristina Fernandes: “As pedaladas do bolsonarismo”
Gambiarras que todos fingem não ver escondem bomba fiscal
Por Maria Cristina Fernandes
Valor Econômico, 06/08/2020
“ Governo prevê aumento de gasto e alarma o mercado”. A manchete do Valor no dia 1º de setembro de 2015 marcou a escalada de indicadores que, dali a seis meses, ajudaria a precipitar o fim do governo Dilma Rousseff. Na véspera, o governo havia enviado a proposta orçamentária para o ano seguinte com a previsão de 0,5% de déficit, o primeiro do século, levando o dólar à máxima em 12 anos e o risco país, ao maior patamar naquela década.
Foram os ecos daquele tempo que se ouviram na terça-feira quando um dos juízes da trapalhada fiscal petista, o ministro do Tribunal de Contas da União, Bruno Dantas, foi o convidado de um encontro virtual fechado da XP: “Pedalada fiscal foi a alcunha que se criou para a contabilidade criativa do PT. Ainda estamos por nomear a criatividade a ser usada por este governo para não romper o teto de gastos”. Aos presentes, o ministro causou a impressão de que o TCU não vai alisar com a pedaladas bolsonaristas.
Com a proximidade da data limite para o envio da peça orçamentária (31 de agosto), os sinais de desconforto no mercado com as perspectivas fiscais do país começaram a aparecer. Ainda contribuíram para isso as notícias de que o governo poderia mandar ao Congresso um pedido de renovação do decreto de calamidade pública. Foi esta a pré-condição para o Orçamento de guerra no início da pandemia.
No encontro com a XP, Dantas desenhou. O Orçamento, disse, tinha três grandes travas, que, rompidas, configuram crime de responsabilidade: a Lei de Responsabilidade Fiscal, a regra de ouro (proibição de fazer dívida para pagar despesa correntes) e o teto de gastos. Com a aprovação de regras orçamentárias excepcionais para a pandemia apenas se exige o cumprimento do último, mas já há sinais de que nem mesmo este requisito esteja sendo observado.
No voto sobre o relatório de acompanhamento dos gastos do governo com a covid-19 apresentado por Dantas na tarde de ontem, fica claro que o governo acelera nas curvas da gestão fiscal deste governo. A estratégia passa por guardar para os anos seguintes, na forma de restos a pagar, os créditos extraordinários liberados para a pandemia ou mesmo as dotações orçamentárias originalmente previstas para este ano.
Um vídeo de Tarcísio Freitas que circula nas redes sociais dá uma ideia do tamanho da penúria que se tenta cobrir. Nele, o ministro da Infraestrutura, em reunião com a bancada federal do Maranhão, diz que o Dnit, órgão responsável pela construção e manutenção de estradas, terá o menor orçamento da história em 2021.
A penúria é a semente da gambiarra. Pra conseguir receber recursos do Tesouro, todos os ministros querem tirar seus projetos do teto de gastos ou fazer remanejamentos indevidos, como quis Paulo Guedes ao tentar arrancar dinheiro do Bolsa Família para a Secretaria de Comunicação da Presidência.
Depois que o ministro da Defesa excluiu a empresa de projetos navais da Marinha, a Emgepron, do teto, para fazer sua capitalização, o movimento fura-teto contagiou o governo. Espraiou-se do Ministério do Desenvolvimento Regional, que quer tirar o Minha Casa Minha Vida da limitação constitucional, à pasta de Tarcísio Freitas que, aliada aos generais palacianos, também engrossa o movimento com as obras do Pró-Brasil.
Tudo isso para evitar colocar, no Orçamento de 2021, um rombo que provoque, no mercado, a impressão de que já se viu este filme antes. Um gestor graúdo explica que o mercado já aceitou que 2020 esteja “perdido”. A previsão do governo era de um déficit de 1,6% para este ano. A pandemia elevou a previsão para 11,6%. Alimentava-se, porém, a expectativa de jogo zerado para 2021, com uma pitada de me- engana-que-eu gosto. Todas essas manobras mostram que não falta vontade do governo de satisfazer essas expectativas. O problema é que não são críveis.
A ausência de prazos conclusivos para uma vacina e as notícias de que a calamidade pública será ampliada azedaram a quarentena dos investidores. Apegaram-se à Bolsa acima de 100 mil pontos para manter um injustificado otimismo.
Paulo Guedes poderia ter evitado a corrosão de sua confiança se não tivesse ido com tanta sede ao pote. Quando havia dois ministérios, o da Fazenda e o do Planejamento, cabia ao primeiro resistir aos acessos de criatividade do segundo e ao presidente da República, arbitrar a disputa. Com a fusão no superministério da Economia, Guedes levou para seu colo todas as contradições.
Na gerência dessas pressões fez ouvido de mercador a advertências como a do Ministério Público de Contas de que um plano bienal teria possibilitado um enfrentamento da crise mais planejado e pactuado com a federação. Na terça-feira, Dantas reforçou aos investidores da XP que, sem válvulas de escape, o Estado será incapaz de conter a devastação social e econômica da pandemia e de frustrar a expectativa dos agentes econômicos. No voto de ontem, reforçou que isso não pode se dar às custas da transparência.
Ao final da palestra, alguns investidores saíram com a impressão de que vai ser preciso colocar uma claraboia acima do teto de gastos, bem como aceitar que a coabitação de Paulo Guedes com o projeto de reeleição do presidente da República talvez esteja com seus dias contados. Observador desse embate, uma liderança da oposição em ascensão o resumiu: “Se eles conseguirem perenizar o auxílio emergencial sem aumentar imposto, a gente nem precisa voltar ao poder. Vamos todos aderir ao bolsonarismo.”
De tanto receberem líderes partidários para falar exatamente o que suas endinheiradas audiências querem ouvir, investidores passaram a acreditar que o Congresso pode evitar um cenário fiscal degringolado. Como ninguém saiba o que vai acontecer na eleição para as mesas da Câmara e do Senado em fevereiro de 2021, a previsão é, no mínimo, otimista.
Vai na linha do que a economista-chefe de um grande banco chegou a dizer, recentemente: “O Centrão mudou”. Pode ser leniência, auto-engano ou nenhuma das duas. Com todos de braços-cruzados ante as pedaladas do bolsonarismo que potencializam uma bomba fiscal não-reconhecida, a se juntar ao rol de motivos para um impeachment que não sai da gaveta, talvez ela tenha razão.
Maria Cristina Fernandes é jornalista.