Maria Cristina Fernandes: “Um modelo de coabitação com o crime”
Valor Econômico – 22/02/2018
O presidente da República era secretário de Segurança Pública em São Paulo quando surgiu o Primeiro Comando da Capital. Tanto a volta de Michel Temer ao cargo que ocupara nos anos 1980 quanto a criação do PCC decorreram do massacre do Carandiru, que custou a vida de 111 presos.
Foi para vingar a morte de seus parceiros de cárcere e combater os maus tratos do sistema prisional que o grupo se organizou. Nesses 25 anos, o PCC, que é comandado de dentro dos presídios, chegou a decretar um toque de recolher na capital até se transformar na principal facção criminosa do país.
O crescimento da organização, que hoje tem sucursais em quase toda a América do Sul, foi concomitante ao aumento da população carcerária e à redução nos índices de violência em São Paulo. O Estado que hoje exibe a mais sustentada curva de redução de homicídios do país é também aquele que viu nascer e prosperar o PCC.
Esta coexistência atravessou os mandatos de quatro governadores e a carreira de uma geração de procuradores, juízes, policiais e um ministro do Supremo Tribunal Federal, além do atual presidente da República.
Quando o PCC surgiu, a organização criminosa mais forte do país era o Comando Vermelho, do Rio. Aliados em algum momento, os dois grupos romperiam anos atrás, levando o PCC a estimular o surgimento de facções rivais que chegaram a fazer sombra sobre o CV.
Organização mais radical e ostensiva do crime, o Comando Vermelho sempre foi o principal alvo da polícia nas operações que precederam a implantação das Unidades de Polícia Pacificadora. Como as UPPs nunca tiveram a pretensão de acabar com o tráfico, mas, sim, de limitar seu poder paralelo, sobreviveu melhor a bandidagem que soube se adaptar a uma operação menos ostensiva.
A ocupação militar do Rio de Janeiro acontece no momento em que o Comando Vermelho, depois de ser desalojado da Rocinha, retomou o controle sobre a favela, seu maior bastião. Foi a volta do CV que devolveu à cena os adolescentes com fuzis nas mãos postados em pontos estratégicos. Integrantes da facção derrotada migraram para as asas do CV com a mesma velocidade com que, numa janela partidária, parlamentares trocam uma legenda por outra com mais perspectiva de poder.
Ao contrário de São Paulo, o crime no Rio, além de fracionado, convive com um crescente poder das milícias. Organizações comandadas por ex-policiais em parceria com colegas da ativa, as milícias vendem proteção contra si mesmas. Cresceram numa conjuntura de contínua depauperação das condições de trabalho dos policiais, como fonte extra de renda.
Nas operações de pacificação pelas quais passou o Rio nos últimos anos, as áreas dominadas pelas milícias foram aquelas que menos resistiram às forças de ocupação. Adaptaram-se, sem confronto, e continuaram a operar seus negócios que, além da taxa de proteção, se estende para o controle da distribuição de gás, ligações clandestinas de energia elétrica, TV a cabo e vans. Mais recentemente, as milícias diversificaram suas fontes de renda com uma cobrança sobre transações imobiliárias das comunidades em que atua e lançaram pontes com o tráfico.
Quando as autoridades da República apostam no sucesso da intervenção militar, é num modelo entre milícia e PCC que se deve imaginar ser possível enquadrar o crime no Rio. Como se diz na quebrada, bandido ninguém aguenta. Mata um, aparecem 50.
Dos muitos contornos em aberto desta ocupação militar, os mais imprevisíveis são aqueles que derivam de sua coabitação com a campanha eleitoral no Estado em que o partido do presidente da República mais se lambuzou no poder. Se as milícias demonstrarem mais capacidade de adaptação à ordem militar, nada lhes impede a ganhar poder na circunscrição eleitoral dos candidatos.
Os milicianos sobreviveram a uma CPI, prisões e mortes. Quase todos os partidos no Rio têm ou tiveram integrantes que dependem da arregimentação de votos das milícias ou, como alguns preferem, "grupos de autodefesa comunitária". Dentro de um mesmo partido, como o MDB, a exploração de um serviço como o transporte público divide as facções do crime.
Quando perderam a proteção do presidente da Assembleia Legislativa, Jorge Picciani (MDB), pai de Leonardo, ministro do Esporte de Temer, empresários de ônibus começaram a ceder espaço para as vans, dominadas pela milícia. Picciani foi preso, e Jacob Barata, o maior empresário de ônibus da cidade, também (depois solto pelo ministro Gilmar Mendes). As vans, favorecidas por uma regulamentação menos rígida do prefeito Marcelo Crivella, consolidariam espaço. Quantos Eduardos Cunha virão a eleger?
Se o Rio de Jair Bolsonaro e Marcelo Bretas já era o laboratório da disputa institucional pelo discurso da lei e da ordem, a ocupação militar fincou a bandeira. A celeuma do auxílio moradia trincou a primazia do Judiciário nesta narrativa. Michel Temer valeu-se das Forças Armadas na tentativa de empunhá-la para dar sobrevida ao seu grupo político no poder e poupá-lo da jurisdição de Curitiba.
O procurador Deltan Dallagnol fez a melhor tradução desta disputa em rede social: "Se cabem buscas e apreensões gerais nas favelas do Rio, cabem também nos gabinetes do Congresso. Aliás, as evidências existentes colocam suspeitas muito maiores sobre o Congresso, proporcionalmente, do que sobre moradores das favelas, estes inocentes na sua grande maioria".
A tentativa de tomar este discurso do Judiciário e do representante renegado dos militares (Bolsonaro) já havia ficado patente com o convite do ministro Carlos Marun para que o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Sérgio Etchegoyen, se filiasse ao MDB.
O comandante-em-chefe das Forças Armadas, no entanto, ainda não parece ter escolhido nas mãos de quem vai entregar esta bandeira. Ainda parece improvável que seja suficiente para embalar uma candidatura presidencial bem sucedida. Mais chances de sucesso tem a estratégia de conformar o sangrento Rio de Janeiro a uma empreita mais silenciosa e lucrativa do crime.
Maria Cristina Fernandes é jornalista.