Mário Magalhães: “Os brasileiros mais pobres são a maior resistência à candidatura Bolsonaro”
Intercept Brasil – 28/03/2018
No dia seguinte ao primeiro turno da eleição de 2014, quando Dilma Rousseff e Aécio Neves se classificaram à finalíssima, participei ao lado do jornalista Josias de Souza de uma entrevista com Fernando Henrique Cardoso. Pedimos ao ex-presidente uma análise, com timbre mais de sociólogo do que de dirigente político, sobre a votação massiva da petista entre o eleitorado de menor renda.
FHC, pró-Aécio, respondeu: “O PT está fincado nos menos informados, que coincide de ser os mais pobres. Não é porque são pobres que apoiam o PT, é porque são menos informados”.
Fernando Henrique enfatizou que a opinião não expressava menosprezo.
Quatro anos mais tarde, os brasileiros mais pobres, ou “menos informados”, impediriam Jair Bolsonaro de se tornar presidente. Se dependesse dos mais ricos, ou “mais informados”, o deputado de extrema-direita venceria hoje a eleição.
Em três simulações de segundo turno da pesquisa mais recente do Datafolha com a presença de Bolsonaro, ele prevaleceu no segmento de eleitores com renda familiar mensal de dez salários mínimos (R$ 9.540) para cima. Superou Lula por 43% a 32%. Marina Silva, por 42% a 34%. Geraldo Alckmin, por 38% a 31%.
No entanto, malogrou entre os entrevistados com renda familiar de até dois salários mínimos (R$ 1.908): perdeu de Lula, um passeio de 60% a 25%. De Marina, por 46% a 26%. De Alckmin, por 36% a 28%.
Na amostra do instituto, os eleitores com renda familiar até dois salários corresponderam a 47%. A partir de dez salários, a 4%. O IBGE calcula que metade dos brasileiros sobrevive com renda individual mensal inferior a um salário mínimo.
Como a estrutura da renda e da riqueza é piramidal, há muito mais votos de quem ganha menos do que de quem ganha mais. Na pesquisa do finzinho de janeiro, Lula derrotou Bolsonaro na soma geral, 49% a 32%. O extremista ficou dez pontos atrás de Marina, 32% a 42%. E alcançou empate técnico com Alckmin: 35% para o governador, 33% para o deputado.
A tendência se manteve quando considerada a escolaridade. Entre os entrevistados com ensino fundamental, Lula beira o triplo da intenção de votos de Bolsonaro (61% a 23%). Contabilizando apenas os com ensino superior, o petista é sobrepujado por 40% a 34%.
Esse é o retrato de momento, ou de dois meses atrás. Lula é o candidato com mais chances de frustrar a empreitada fascistoide encarnada por Bolsonaro. Nos cinco cenários de primeiro turno que incluem os dois, são eles os contendores que passam ao último round.
Caso a Justiça confirme a proibição de Lula concorrer, Bolsonaro seria o principal ou um dos principais candidatos beneficiados. Tal afirmação não constitui opinião. É fato, evidencia o Datafolha. Nas quatro simulações de primeiro turno sem Lula, Bolsonaro lidera três e empata uma, no limite, com Marina (ele registra 21%; ela, 17%). Com Lula no jogo, o deputado perde o primeiro lugar.
Se não fossem os “menos informados”, o risco à democracia seria ainda maior. É curioso ouvir que os brasileiros pobres impulsionam Bolsonaro. Sucede o contrário: eles concentram a resistência civilizatória à selvageria representada pelo capitão que já sugeriu pau-de-arara para torturar gente em CPI, disse que fecharia o Congresso e pregou o extermínio de 30 mil pessoas, sem poupar o então presidente Fernando Henrique Cardoso.
Escolaridade não equivale, necessariamente, a sabedoria. Cada um sabe onde o calo incomoda mais. A maioria dos cidadãos mais pobres não identifica hoje em Bolsonaro alguém que mitigaria sofrimentos e promoveria progressos em suas vidas.
A base social da extrema-direita no Brasil situa-se tradicionalmente na classe média (como a que tem renda familiar mensal acima de dez salários mínimos). Do vigor do integralismo nazifascista, na década de 1930, à postulação presidencial de Plínio Salgado, em 1955 (o veterano integralista amealhou 8% dos votos válidos no país; no Paraná, conquistou 24%; na cidade do Rio de Janeiro, 5%; Juscelino Kubitschek ganhou a eleição).
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Suprema rinha
Na semana que passou, Lula conduziu uma caravana pelos Estados do Sul, os menos seduzidos por sua cada vez mais improvável candidatura. Grupos de extrema-direita organizaram protestos violentos. Queimaram pneus e interditaram estradas. Arremessaram pedras, rojões e ovos. Não eram bolinhas de papel. Uma pedrada acertou o ex-deputado Paulo Frateschi. Outros foram feridos. Um manifestante agrediu com relho um partidário do ex-presidente. Relho é sinônimo de chicote e chibata. Um segurança de Lula deu um soco no repórter Sérgio Roxo, de O Globo.
A violência conheceu o paroxismo no Paraná. Três balas alvejaram dois ônibus da caravana. Desprezando eufemismos, foi um atentado político. O fascismo deu seu recado. Querem sangue.
O Tribunal Regional Federal da 4ª Região deixou o nome de Lula mais distante das urnas ao rejeitar, anteontem, os recursos da defesa. O ex-presidente foi condenado a doze anos e um mês de reclusão por corrupção e lavagem de dinheiro no caso do triplex. Liminar do Supremo Tribunal Federal evitou o começo do cumprimento da pena. O juiz Sérgio Moro terá de esperar pelo menos até 4 de abril para ordenar a prisão.
Na quinta-feira, o STF adiara a decisão sobre o habeas corpus requerido por Lula. A sessão plenária iniciara pouco depois das duas da tarde. Antes das oito, encerraram-na. Entre os pretextos, uma viagem do ministro Marco Aurélio Mello ao Rio.
Outra desculpa foi o iminente cansaço de ministros caso a sessão perdurasse. Os membros do Poder Judiciário usufruem de férias anuais de dois meses. Em 2015, os ministros não reclamaram, pelo contrário, do aumento de 70 para 75 anos da idade máxima para o exercício do cargo. Vendiam saúde. Não teriam fôlego para apreciar o habeas corpus?
Sessão do Supremo Tribunal Federal realizada no dia 22 de março. Foto: Nelson Jr./STF
Não marcaram a sessão seguinte, ou a continuação da anterior, para a semana vindoura. Pularam-na, afinal a semana em curso é a da Páscoa, e os ministros são filhos de Deus (outros filhos, menos abençoados, estão trabalhando sem descanso). Como Lula poderia ser prejudicado pela incapacidade de o STF se pronunciar a tempo, ofereceram-lhe o salvo-conduto de no mínimo treze dias.
Nas desinteligências sobre riscos institucionais e vaivéns de jurisprudência, o que mais impressiona é, aqui, ali e acolá, a omissão ou relativização da letra constitucional. A Carta determina que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Portanto, não seria obrigatória a prisão de condenado em segunda instância – os réus, como Lula, preservam o direito de apelar a tribunais superiores. Não é preciso ser iniciado em direito penal para compreender o escrito.
A presidente do Supremo, Cármen Lúcia, bravateia não aceitar pressões. Ignoro se a ministra se sente pressionada pela Constituição. Quem a elaborou foram legisladores, bons ou ruins, porém selecionados por sufrágio popular. O STF julga, não legisla – ou assim deveria se comportar em regime de equilíbrio entre os Poderes.
A ministra tem dado entrevistas exclusivamente – ou quase – a veículos de comunicação cujas orientações coincidem com as dela. Um dia antes da sessão sobre o habeas corpus, recebeu em seu gabinete representantes do Vem Pra Rua, movimento de direita contrário ao pedido de Lula.
Dois sábados antes, recepcionara Michel Temer em sua casa. O ministro Luís Roberto Barroso havia acabado de quebrar o sigilo bancário do presidente. Cármen Lúcia opõe-se a mudar o entendimento do Supremo de pôr em cana condenado em segundo grau. No ano passado, foi dela o voto de desempate em mudança de atitude do STF sobre afastamento de parlamentares. A decisão colegiada serenou o senador Aécio Neves.
Na véspera da sessão que não se definiu sobre o habeas corpus, o ministro Luiz Fux suspendeu o julgamento sobre o auxílio-moradia a juízes. O pagamento prossegue, a juízes e membros do Ministério Público. Já consumiu R$ 5 bilhões da União e dos Estados.
No mesmo dia, esquentaram as rinhas do plenário. Barroso espinafrou Gilmar Mendes como “mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia”. Gilmar contra-atacou insinuando: “Vou recomendar ao ministro Barroso que feche seu escritório de advocacia”.
Registro taquigráfico para os historiadores do futuro: a maioria dos ministros do STF foi indicada pelas administrações Lula e Dilma. A composição do Supremo é parte do balanço do petismo no Planalto.
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Mecanismos
Hoje os assassinatos de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes completam duas semanas. E faz cinquenta anos o tiro de um policial militar que matou o estudante Edson Luís de Lima Souto.
A Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro sob intervenção não anunciou pista importante na investigação sobre as mortes da vereadora e do motorista. As perguntas permanecem, desesperam e doem: quem os matou?; quem mandou matá-los?
Em Maricá, na região metropolitana do Rio, a polícia suspeita que quem chacinou cinco jovens na madrugada do domingo foram milicianos. Patrick, Marco Jhonatan, Sávio e os dois Matheus tinham de 16 a 20 anos. Integravam um movimento cultural de rap e rimas. Foram mortos no conjunto residencial Carlos Marighella, depois de voltarem de um show do rapper Projota.
O Facebook retirou do ar páginas que disseminaram mentiras sobre Marielle, ligando-a a traficantes de drogas. Descobriu-se o vínculo de seu mantenedor com o Movimento Brasil Livre, grupo expoente no mercado de notícias falsas, na campanha pela deposição de Dilma e na pressão pela prisão imediata de Lula. A imprensa fustiga as fake news. Mas um prócer do MBL, Kim Kataguiri, foi colunista da Folha de S. Paulo até março do ano passado.
A memória de Marielle Franco não foi alvejada somente pelos difusores de torpezas. Em episódio muito menos grave, Marina Silva tropeçou. A ex-ministra usou fotografia da vereadora morta para divulgar a estreia da série O Mecanismo, de José Padilha. A obra exibida pela Netflix se inspira na Operação Lava Jato, objeto de críticas acerbas de Marielle. Marina reconheceu o “sentido distorcido da arte” que propagandeava a série e a apagou das redes (antis)sociais.
O Mecanismo tem um personagem que o roteiro e a direção associam escancaradamente a Lula. No quinto episódio, o personagem imita hábito do Lula original ao cofiar a barba e diz: “Eu sei é que a gente precisa estancar essa sangria”.
“Estancar essa sangria” é expressão consagrada por Romero Jucá em conversa com Sérgio Machado. O contexto foi a conspiração de peemedebistas para escapar de punições e derrubar Dilma Rousseff. Logo, uma articulação para abater a aliada e sucessora de Lula. Colocar as palavras na boca de um Lula dramatúrgico configura fanfarronice histórica.
A condição ficcional da série não faz irrelevantes essa e outras licenças. Na Europa, um filme atribuindo a Hitler, e não a Churchill, as palavras sangue, sofrimento, lágrimas e suor seria tratado como ofensivo ou ridículo.
No Brasil, mesmo num filme de ficção, pareceria escárnio ou besteirol transferir para a lavra de Carlos Lacerda, meu próximo biografado, uma frase de despedida de Getúlio Vargas como “[…] saio da vida para entrar na história”. Ou filmar “eu prendo e arrebento” como fala de um oposicionista, e não do ditador João Baptista Figueiredo, o general que preferia o cheiro de cavalo ao de povo.
Cineasta talentoso, José Padilha dirigiu e produziu ao menos dois filmes ótimos (Tropa de Elite 1 e 2) e uma série muito boa (Narcos) – Tropa 1 e Narcos estão disponíveis na Netflix. É direito de Padilha interpretar o país como quiser, contá-lo como bem entender, veicular seus filmes e séries pelo canal que escolher e esgrimir livremente suas ideias.
Mas seria demais ele esperar silêncio e cumplicidade, diante de uma fraude histórica vulgar, no Brasil castigado por dores e inflamado por paixões.
Mário Magalhães é jornalista e escritor.