Marta Neves: “A arte é TRANS”

16/11/2017 | Políticas de igualdade

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Marta Neves no debate da Comissão de Cultura sobre a liberdade de expressão artística. Foto: Sarah Torres/ALMG

Manifesto hoje aqui meu repúdio à recente onda de censura e horror à arte que tem virado uma espécie de moda Brasil afora. Curioso que grupos que antes não tinham o mínimo interesse por atividades artísticas a elas se voltem atualmente; infelizmente, no entanto, não para conhecê-las, pensá-las, avaliá-las e criticá-las com cuidado e dedicação a seus discursos e possibilidades de significação, mas para puni-las e cobri-las com um véu automático de rejeição.

Não vou dizer que a arte tenha sido desde sempre um elemento absolutamente superior a tudo o mais na vida, descontaminado de interesses e preconceitos. A arte é uma parte da existência humana e tem dessa última palavra aí todos os aspectos tortos também. Na História da Arte no Ocidente temos um lastro de registros de corpos de mulheres nuas desfilando como ninfas e deusas gregas exibidas como objetos tão agradáveis quanto as travessas de prata e a louça bonita que povoam as pinturas de naturezas mortas: são corpos tratados e vistos como meros objetos de posse de um olhar essencialmente masculino e dono do mundo. A arte serviu historicamente como propaganda de grandes impérios, de máquinas colonialistas, de poderes religiosos em disputa, foi e é ainda usada como símbolo de status social elevado, encarada como produto de luxo de uma casta que se vê como o melhor dos mundos. Temos, na arte brasileira, um quadro que funciona como um documento importante de nossa cultura, pintado no século XIX por Modesto Brocos e chamado “A redenção de Cã”. Nele uma família aparece mostrando seu processo de “clareamento da raça”: a avó negra contrasta com o neto de pele branca, “redimido”, portanto, às custas da mestiçagem, numa orientação típica do “racismo à brasileira”, como diria Roberto DaMatta. Não, a arte não é ingênua quanto aos usos que dela se fizeram e se fazem.

Mas é exatamente esse o ponto que me chama atenção aqui. Muito provavelmente nenhum dos detratores das recentes exposições questionaria o teor racista da mensagem da pintura a que me referi agora. Talvez porque já tenham como naturalizada a ideia do tal clareamento racial. Ou talvez porque esse assunto não lhes interesse politicamente no momento atual, não lhes dê palanque.

Creio, por outro lado, que a arte é, em sua essência, um instrumento de outras construções de vida, embora tenha sido constantemente colonizada, como a vida, por tantos poderes podres. Mas a potência que a arte tem de propor outras formas de pensar e fabricar o mundo é o que faz dessa atividade humana algo imprescindível: mesmo manipulada como uma ninfa peladinha num quadro clássico, ela continuará e encontrará formas de resistir a essa manipulação, de criticá-la, de rir dela, de denunciá-la e de atravessá-la com outras possibilidades. Esse, a meu ver, é o fundamento da palavra arte – transpassar, atravessar, cortar, torcendo e reconfigurando encontros, como numa mesa de café posta no meio da rua, não à maneira de assistencialismo para indigentes, mas transfigurada em lugar de encontro e bate papo, regado a muita comida, xícaras coloridas, bolos, cruzamentos de histórias diversas, negras, artistas, LGBT’s, crianças, velhos – a exemplo do que é o grande happening que Thereza Portes faz Belo Horizonte afora. Ou uma faixa de rua onde se lê: “PERCA TEMPO”, do grupo Poro de intervenções urbanas, atravessando obtusamente nossos relógios. A arte como deve ser, como resiste em ser, não manipulada ou servente dos poderes instituídos, é Praia da Estação, é Warley Desali, Randolpho Lamounier e Affonso Uchoa mostrando o bairro Nacional em Contagem – com o crack, sim, com a falta do que fazer da juventude que nos atravessa a goela, gritando com uma urgência de tigre sua vontade de vida, mas que não tem para onde ir. Esses são os jovens pretos e pobres (crianças também) de que ninguém se lembra ao defender ardorosamente a infância diante das imagens produzidas por esses artistas do bairro Nacional, acusados de ferirem olhos inocentes. Essa arte nunca fala claramente, não é óbvia, ela rasga a obviedade com ironia, jogos de corpos, imagens e palavras, ela atravessa – e agora destaco o prefixo a que o termo “atravessar” me leva: TRANS. A arte, na real, não cooptada, não enfeitada, é TRANS.

Falo isso com a suavidade de quem tem certeza da força de um belíssimo trabalho TRANS, duramente ameaçado em vários lugares, e aqui também em Belo Horizonte, pela mesma onda que se volta raivosamente contra as exposições no Palácio das Artes (do projeto ArteMinas, envolvendo Pedro Moraleida, alvo maior dos ataques, Warley Desali, Randolpho Lamounier e eu, ocupando quatro salas da instituição). O trabalho TRANS que vem sofrendo duras ameaças em nosso país, feitas até mesmo à integridade física das pessoas envolvidas, mas que não tem sido tão lembrado nas recentes discussões sobre o tema do ódio à arte e de sua censura, é a peça “O evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu”, de Jo Clifford, encenada recentemente em BH, na Funarte, por Renata Carvalho. Foi necessário garantir judicialmente sua exibição entre nós e várias pessoas se mantiveram em vigília, contrárias à encenação da peça, em todos os dias em que ela aconteceu na Funarte, como se fosse uma ameaça a alguém. Jo Clifford escreveu a “Rainha do Céu” pensando em um Jesus que vem ao mundo como mulher transgênero, assim como Jo e Renata, ou seja, um Jesus que, no corpo de uma pessoa oprimida, fala aos oprimidos, oferecendo-lhes, aí sim, a verdadeira redenção.

Cometem um enorme erro aqueles que pensam que essa peça pretende destruir famílias, confundir crianças, trocar os gêneros das pessoas. Pensar assim é que significa, de fato, confundir pais e filhos quando se pensam as políticas públicas contra toda forma de opressão e discriminação. Pensar que a arte libertária e o estímulo ao pensamento crítico destroem famílias é desconsiderar mesmo convenções internacionais de que nosso país é signatário, indo na contramão da reflexão, do amor e do respeito a nossos corpos, da defesa da vida e das crianças. Não se impõe um gênero a pessoa alguma, não se impõe um partido pela educação com diálogo e pela arte transgressora de toda e qualquer arbitrariedade. O que se propõe de imediato, no caso específico de “Jesus, Rainha do Céu”, é a defesa da vida, apenas e tão lindamente.

Esclareço isso com algumas passagens do belo texto de Jo Clifford (peço desculpas se algumas partes foram livremente traduzidas por mim, já que não tenho a versão oficial para o Português, feita por Natalia Mallo).

Num dos momentos mais fortes da peça, Jesus declara:

“Eu nunca disse: cuidado com os homossexuais, transexuais e gays por levarmos vidas antinaturais ou por sermos depravadas em nossos desejos. Eu nunca disse isso. Eu disse: cuidado com os autoindulgentes e os hipócritas, cuidado com aqueles que se imaginam virtuosos e proferem julgamento, aqueles que condenam os outros e se consideram bons. Seus lábios são cheios de bondade, mas seus corações estão plenos de ódio.”

E mais:

“Eles vão tentar apagar a sua luz.

Eles vão te odiar por ter permitido que brilhe.

Eles vão cuspir na sua cara e gritar:

Bicha! Nojento! Traveco!

Ou talvez gritem:

Olhem! É um viadinho!

Ou te chamem de pervertida ou de esgoto.

Podem fazer ainda pior:

podem te bater,

te torturar,

te matar,

e jogar seu corpo no lixo.

(Porque essas coisas acontecem.)

Mas eu te digo:

Abençoada sejas se as pessoas abusam de você ou te perseguem, pois isso significa que você está trazendo a mudança.

E abençoados sejam aqueles que te perseguem também, pois o ódio é o único talento que têm, e não vale nada. 

E vão perder o pouco que têm.

Pois apesar do que eles possam dizer ou fazer, a mudança está chegando, e um dia o mundo será livre.

Abençoado seja o homem de negócios no escritório, pois vai perder tudo o que tem.

Abençoados sejam os tímidos e retraídos, pois não terão mais vergonha.

Abençoados os frígidos e impotentes, pois terão todo o sexo para sempre e sempre.

Abençoada a prostituta, pois ela será honrada.

Abençoada seja a pobre, pois ela será rica.

Abençoada seja a solitária e tímida, pois ela terá todo mundo que quiser.

Abençoado o menino no armário com o vestido de noiva, pois vai sair.

Abençoados os pais que não cuidam dos filhos porque eles nunca foram cuidados, mas serão amados.

Abençoados sejam os inadequados que estão no governo, pois eles perderão todo o poder.”

É dessa arte que estamos falando, não da que se rende ao estabelecido, ao ressentido, ao corroído, ao medo. Mas a que resiste, a arte que é TRANSgressora da violência e da morte, brilhante e vigorosa. Para que todos, as crianças inclusive (que, claro, não são obrigadas a frequentar exposições, mas não devem sem impedidas de celebrar também a experiência artística), tenham uma vida digna, TRANSformada em plenitude. Fecho esse texto ainda com “Jesus, Rainha do Céu”, para quem o brilho do que criamos jamais deve ser abafado.

“Quando você tem uma luz, por acaso a esconde dentro do armário? Não! Traga-a para fora onde ela possa brilhar para todo mundo ver.

Apesar de toda escuridão que possamos sentir dentro de nós, há luz dentro de nós. E é o nosso trabalho deixá-la brilhar.”

Marta Neves é artista plástica.

 (*) Artigo lido na Audiência Pública para Debater Liberdade de Expressão Artística, promovida pela deputada estadual Marília Campos (PT). A audiência foi realizada em 23 de outubro de 2017.