Mathias de Alencastro: “Governo Trump será teste para as instituições norte-americanas”
Folha de S.Paulo – 09/11/2016
À luz dos últimos grandes momentos eleitorais da Europa e dos Estados Unidos, pode-se constatar uma novidade. A formação de um grupo importante de trabalhadores de renda média-baixa brancos assustados com os efeitos latentes da crise financeira global de 2008 e revoltados contra um Estado de bem-estar para o qual deixaram de ser a prioridade.
Esse grupo foi unificado por meio de um efeito colateral ainda pouco explicado da revolução digital da comunicação: a penetração e disseminação de teses conspiracionistas na informação de massa.
O candidato republicano, Donald Trump, recorreu ao populismo para instilar um sentimento de minoria entre esse grupo e provocar um efeito de manada. Um golpe eficaz do ponto de vista eleitoral dado que ele representa cerca de 40% da população americana.
É revelador desse processo que Michigan tenha sido o estado que selou a vitória republicana. Detroit e a sua indústria automóvel foram um tema central das últimas campanhas presidenciais. As colossais construções de Alfred Kahn, outrora catedrais da indústria americana, se tornaram santuários fúnebres da classe trabalhadora branca. A insurreição nasceu nas carcaças do velho sonho americano.
É inconsequente fazer considerações sobre a pertinência de se escolher Hillary Clinton. Mas se ainda havia dúvidas sobre a fraqueza de sua candidatura, elas foram dissipadas pela sua recusa em conceder a derrota durante a noite de ontem.
Lionel Jospin, ao constatar que Jean-Marie Le Pen o ultrapassaria no traumático primeiro turno das presidenciais francesas de 2002, rapidamente se dirigiu aos franceses, informando a sua retirada da vida política e apelando à resistência.
Hoje de manhã, Hillary perdeu a oportunidade de sinalizar aos americanos que as instituições continuam funcionando. O seu exército de comentadores, que monopolizava as redes sociais até poucas horas atrás, recolheu-se num silêncio constrangedor. A sensação de mergulho no caos advém tanto da irresponsabilidade do campo democrata como do choque da eleição do candidato republicano.
Esse sinal de Hillary tinha especial relevância porque a resistência das instituições americanas ditará as consequências do resultado de hoje.
Neste momento duas teses pontificam. A primeira, que podemos chamar de estruturalista, defende que a burocracia deixará a máquina estatal em piloto automático, de modo a moderar a influência do presidente eleito e dos seus acólitos. Os funcionários dos departamentos-chave colocarão obstáculos aos excessos da nova administração. As pontas do Estado, os policiais, funcionários de saúde, dos impostos, resistirão em transformar o discurso do ódio na realidade do cidadão comum.
A diplomacia de bastidores funcionará a pleno gás. Os embaixadores vão vestir a roupa de bombeiro e estabelecer uma relação de confiança com chefes de Estado estrangeiros. O despreparo absoluto da nova equipe na área de política externa abrirá espaços para acordos tácitos entre diplomatas responsáveis.
Outra tese, não menos improvável, sugere uma captura do Estado por forças populistas. O futuro presidente terá o controle das duas casas e o apoio de velhos lobos do Congresso tão perigosos como hábeis à imagem de Newt Gingrich, artesão do bloqueio do Congresso na era Bill Clinton. Se o objetivo de desconstruir o legado da administração Obama for atingido rapidamente, o risco de uma reforma mais profunda do Estado em outras áreas-chave será uma realidade.
Essa tese também advoga que o ímpeto reformista seria conjugado com uma tentativa de perpetuação de uma nova ordem moral. Os republicanos farão da nomeação do substituto na Suprema Corte de Antonin Scalia, "égérie" do conservadorismo americano falecido no ano passado, o prenúncio de uma restauração conservadora do sistema judiciário.
O mais provável é que a realidade seja uma mescla dessas duas teses. As instituições seculares absorverão parte das ondas de choque provocadas pelo novo governo. A recomposição absoluta do cenário politico oferece condições para a emergência de um candidato que concilie a necessidade de responder à frustração do eleitorado vocalizada nestas eleições com a necessidade de regressar à normalidade política. Mesmo se essa experiência não durar mais de quatro anos, os seus danos serão permanentes.
Talvez seja nas relações internacionais que os efeitos deste eleição serão sentidos de maneira mais aguda. Pela primeira vez em mais de um século, o mundo terá de se governar sem a ajuda do xerife americano. A volatilidade e incoerência da nova administração podem servir de catalisador para as ambições de potências globais e regionais.
Para a China, a retração dos Estados Unidos é uma oportunidade inesperada para fazer em quatro anos o que estava planejando fazer em quarenta: o deslocamento da economia mundial para o Pacífico. As potências médias tentarão resolver as suas querelas: a Turquia tentará colocar um fim na tentação independentista do Curdistão iraquiano, enquanto os países da África central não hesitarão em recorrer de novo à violência extrema para consolidar as suas fronteiras. A ala mais radical do governo israelense incitará à violência contra o Irã, que se sentirá ameaçado quando os seus canais de comunicação com a administração americana forem extintos.
Consequência inevitável da ruptura anunciada com a luta contra o aquecimento global e a aposta no gás de xisto, essencial para energizar economicamente os Estados do sul onde reside grande parte do eleitorado republicano, a estagnação durável do preço do petróleo terá um efeito de gasolina para as relações internacionais.
Outra dimensão possível das relações internacionais desta nova era só existe por enquanto numa realidade alternativa. A eleição de Marine Le Pen na França em 2017 levaria à formação de um eixo geopolítico totalmente inédito, que se caracterizaria pela transgressão das barreiras normativas estabelecidas no pós-guerra. De Washington até Moscou, passando por Paris, o mundo seria reorganizado em função das prioridades de um grupo de interesse que compartilha o objetivo de preservar a qualquer custo sua hegemonia global em tempos de decadência pós-colonial.
Por enquanto, esse cenário é de ficção cientifica. Mas a eleição de ontem mostrou que a fronteira entre o hiper-realismo televisionado e a realidade está cada vez mais tênue.
MATHIAS DE ALENCASTRO é doutor em Ciência Política na Universidade de Oxford.