Monica de Bolle:"Renda básica é impagável?"
O impacto total desse tipo de programa sobre as contas públicas acaba sendo menor do que parece
Monica De Bolle
O Estado de S. Paulo -03/06/2020
A ideia de se instituir um programa de renda básica permanente está ganhando adeptos mundo afora. Em resposta à crise, o governo da Espanha aprovou, na sexta-feira, um programa de renda mínima para reduzir a pobreza. Governos de outros países estão considerando medidas semelhantes, como é o caso do Chile.
No Brasil, o debate sobre a renda básica ganhou fôlego no âmbito da adoção do auxílio emergencial de R$ 600 em abril, cuja prorrogação é necessária para o enfrentamento da pandemia e dos efeitos macroeconômicos dela provenientes. Mas a renda básica que hoje é assunto de artigos diversos – inclusive da série de colunas que tenho escrito neste espaço sobre o tema – transcende a emergência. A ideia é fazer o que fez a Espanha e torná-la um benefício permanente, reforçando as redes de proteção social do País.
Criação de uma renda básica resultaria no fim do Bolsa Família. Foto: Divulgação
Há muitos pesquisadores no Brasil debruçados sobre esse tema, fazendo simulações, contas, analisando os dados e as possibilidades. Destaco em especial o trabalho de pesquisadores do Ipea, da USP, e do Cedeplar da UFMG. Esses são os estudos que mais têm recebido a atenção dos parlamentares no Congresso, ao contrário de outras propostas que nem sequer estão em discussão. Insisto: não há uma só proposta para a renda básica. Há várias. Algumas são perfeitamente viáveis do ponto de vista macroeconômico e sustentáveis do ponto de vista fiscal. Outras são impagáveis.
Recentemente, uma proposta impagável foi objeto da coluna do economista Samuel Pessôa, que ficou impressionado com seus potenciais efeitos sobre a redução da desigualdade, mas, depois de mostrar ser a proposta inviável, lamentou e ficou por isso mesmo. É compreensível que existam temores de natureza fiscal sobre a adoção de um programa que, à primeira vista, pode parecer impossível de custear. Não é compreensível, entretanto, deixar de lado propostas que hoje fazem parte do debate interno.
É evidente que um programa de renda básica formulado como simples extensão do atual auxílio emergencial é custoso: os cálculos mostram que o gasto com esse programa alcançaria facilmente cerca de 7 pontos porcentuais do PIB. Além disso, tal programa poderia ter consequências indesejáveis do ponto de vista do trabalhador, estimulando a informalidade quando essa já é elevada e tende a aumentar em razão da crise. Por fim, o financiamento da renda básica exigiria, no mínimo, a extinção de outros programas focalizados, como o Bolsa Família, que hoje alcança as famílias mais pobres. Por que não simplesmente ampliar o Bolsa Família, alguns perguntam? Porque o Bolsa Família deixa vulnerável uma massa de brasileiros que não são suficientemente pobres para atender aos seus critérios, mas ainda assim vivem na precariedade, oscilando entre o emprego formal e a informalidade.
Quais as alternativas? Uma delas, proposta por pesquisadores do Ipea e da USP e hoje tema de intensas discussões e simulações, seria pagar uma renda mínima para todas as crianças, universalizando o benefício. Quais crianças? Uma ideia é começar pela primeira infância, a faixa de 0 a 6 anos, que receberiam meio salário mínimo. Tal programa abrangeria um enorme contingente de famílias pobres e vulneráveis, cobrindo as lacunas deixadas pelos programas sociais existentes. Ao preencher essas lacunas, o programa seria complementar aos já existentes. Não deixaríamos de ter o Bolsa Família, ou o Benefício de Prestação Continuada, por exemplo. Esse programa universal de proteção infantil custaria cerca de 1,5 ponto porcentual do PIB, não elevaria a razão dívida/PIB, não geraria inflação, e atenderia tanto à necessidade de responsabilidade fiscal quanto a de responsabilidade social.
O impacto total desse tipo de programa sobre as contas públicas acaba sendo menor do que parece, e a razão é simples: trata-se de uma transferência de renda que resulta em aumento do consumo, e o aumento do consumo eleva a arrecadação de impostos, o que financia, em parte, o programa. Além disso, o consumo aquece a economia e gera crescimento, de modo que há um efeito multiplicador: com mais renda, há mais consumo e, no fim, mais arrecadação.
O Brasil atravessa um momento único. Nele se abre uma fresta pela qual podemos finalmente emplacar um reforço às redes de proteção social que preencham as lacunas dos demais programas. São dezenas de milhões de pessoas que poderão ser beneficiadas. E tudo isso é perfeitamente pagável. E também impagável: seu valor para a sociedade é inestimável.
Monica de Bolle é economista e pesquisadora do Peterson Institute for International Economics