Obama: “As medidas de austeridade contribuíram para desacelerar o crescimento na Europa”
Presidente dos EUA analisa os assuntos mais palpitantes na esfera internacional
EL PAÍS Brasil – 18/10/2016
Em uma entrevista ao jornal italiano La Repubblica, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, fala sobre a recuperação econômica durante seu mandato, as políticas de austeridade na Europa, a assinatura do TTIP (Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, na sigla em inglês) e a guerra contra o terrorismo islâmico.
Pergunta. No começo do seu primeiro mandato, as economias norte-americana e europeia estavam imersas numa profunda depressão. Desde então, a economia dos Estados Unidos desfrutou de sete anos de crescimento, ao passo que a europeia continua padecendo de um crescimento baixo e um desemprego elevado. Chegou a hora de rever a função da política fiscal, do investimento público, e o modo que poderiam restaurar o crescimento econômico? Em outras palavras, as políticas de austeridade fracassaram?
Resposta. Acredito que a experiência dos Estados Unidos durante os últimos oito anos deixa evidente o nosso ponto de vista. Pouco depois de me tornar presidente, aprovamos a Lei de Recuperação para estimular a economia. Nós nos apressamos em resgatar a indústria automobilística, estabilizar os bancos, investir em infraestrutura, agilizar os empréstimos às pequenas empresas e ajudar as famílias a manterem suas casas. Os resultados estão claros. Nossas empresas criaram mais de 15 milhões de novos postos de trabalho. A taxa de desemprego caiu pela metade. Reduzimos drasticamente o déficit. Finalmente os salários dos trabalhadores começam a subir. A renda cresceu e o índice de pobreza diminuiu. Ainda resta muito trabalho por fazer para ajudar os trabalhadores e as famílias a se recuperarem, mas vamos num bom caminho.
Alguns países adotaram uma proposta diferente. Como eu já disse outras vezes, acredito que as medidas de austeridade contribuíram para desacelerar o crescimento na Europa. Em alguns países, os anos de estancamento agravaram a frustração e a angústia econômica que vemos em todo o continente, sobretudo entre os jovens, que têm menos chances de encontrar trabalho.
P. O “fenômeno Trump” nos Estados Unidos foi precedido por movimentos populistas e nacionalistas na Europa. O que proporia aos seus aliados europeus para enfrentar a situação posterior ao Brexit? Como responder a movimentos que querem isolar a Europa, construir muros, reduzir a imigração e restringir a abertura ao comércio internacional?
R. Não cabe dúvida de que, nos nossos países, as mesmas forças da globalização que durante décadas trouxeram consigo tanto progresso econômico e humano representam também um desafio político, econômico e cultural. Muitos cidadãos sentem que o comércio e a imigração os estão prejudicando. Vimos isso na votação sobre a saída do Reino Unido da UE. Vemos no crescimento dos movimentos populistas, tanto de direita como de esquerda. Em todo o continente, observamos que alguns questionam o próprio conceito de integração europeia e insinuam que os diferentes países estariam melhores se andassem sozinhos.
Em momentos como este, apesar de estarmos conscientes desses desafios tão reais que enfrentamos, é importante recordar que as forças da integração são muito benéficas para nossos países e nosso cotidiano. A economia mundial integrada, incluindo o comércio, contribuiu para melhorar a vida de bilhões de pessoas em todo o mundo. A pobreza extrema foi reduzida de maneira espetacular. Graças à colaboração internacional em matéria de ciência, saúde e tecnologia, as pessoas vivem mais tempo e têm mais oportunidades do que nunca. A UE continua sendo um dos maiores feitos políticos e econômicos dos tempos modernos. Nenhum país da UE se levantou em armas contra outro. Famílias da África e Oriente Médio arriscam suas vidas para darem aos seus filhos as oportunidades e a qualidade de vida de que os europeus desfrutam, conquistas que não devem ser vistas como algo automático.
Nosso desafio, portanto, consiste em assegurarmos que os benefícios da integração estejam mais bem distribuídos e que qualquer transtorno econômico, político ou cultural seja enfrentado como tem que ser. Isso exige políticas econômicas que sejam inclusivas e realmente invistam nas pessoas, mediante uma educação, uma capacitação e uma formação que contribuam para elevar os salários e reduzir a desigualdade. Para isso, é preciso um comércio que proteja os trabalhadores e o meio ambiente. É necessário que nos aferremos a nossos valores e tradições de sociedades plurais e diversas; que rejeitemos essa política do “nós” contra “eles”, que tenta utilizar os imigrantes ou as minorias como bodes expiatórios. E, na Europa, é necessário o tipo de visão defendida por dirigentes como o primeiro-ministro [da Itália, Matteo] Renzi: uma Europa que avança ao invés de retroceder, insistindo num crescimento que gere emprego e oportunidades, sobretudo para os jovens.
P. Nos dois lados do Atlântico, foram paralisadas as negociações do TTIP (Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, na sigla em inglês). O protecionismo cresce em todas as partes. O senhor conhece bem as objeções norte-americanas ao livre comércio, mas a perspectiva europeia é um pouco diferente: muitos dos nossos cidadãos, inclusive em países como a Alemanha, onde gozam de enormes excedentes comerciais, consideram que o novo tratado com os Estados Unidos reduziria as proteções aos nossos consumidores, nossos trabalhadores, nossa saúde. Aos olhos de muitos europeus, seu país se tornou símbolo de um capitalismo sem limites, no qual as multinacionais ditam as normas. O que responderia a estas preocupações dos europeus?
R. Sim, a política comercial é complexa em todos os países. Mas a história demonstra que o livre mercado e o capitalismo são talvez a maior força para gerar oportunidades, e que promovem a inovação e melhoram a qualidade de vida. Vimos isso na Europa Ocidental durante as décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial. Vemos na Europa Central e Oriental desde o final da Guerra Fria. Vemos no mundo todo, da África à América, passando pela Ásia. Ao mesmo tempo, também vemos que a globalização pode debilitar a posição dos trabalhadores, tornar mais difícil que ganhem um salário decente e causar a transferência de fábricas para países com mão de obra mais barata. E já adverti a respeito de um capitalismo desumano que só beneficia alguns poucos que estão acima de tudo, que agrava a desigualdade e separa ainda mais ricos e pobres.
Nesta economia mundial em que uma parte tão grande da nossa prosperidade depende do comércio internacional, é simplesmente impossível recuar e levantar a ponte levadiça. O protecionismo só serve para fragilizar nossas economias e prejudica a todos, sobretudo aos trabalhadores. Em vez disso, precisamos aprender com o passado e comercializar de tal maneira que a economia mundial funcione melhor para todos, não só para os que estão acima de tudo. Os empreendedores necessitam de ajuda para transformar suas ideias em empresas. Precisamos de colchões de segurança mais fortes para proteger às pessoas em épocas de dificuldade. E temos que continuar trabalhando para frear os excessos do capitalismo mediante normas estritas para os bancos e os impostos, e mais transparência, para tentar evitar as reiteradas crises que colocam em risco nossa prosperidade compartilhada.
Também necessitamos de acordos comerciais de alta categoria, como a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento. Embora o comércio entre os Estados Unidos e a UE mantenha 13 milhões de postos de trabalho nos nossos países, uma grande quantidade de tarifas e diferentes regulamentos, disposições e normas dificultam que o comércio, o investimento e a geração de emprego sejam ainda maiores. Eliminando as tarifas e resolvendo as diferenças regulatórias, facilitaremos o comércio, sobretudo para as pequenas e médias empresas. O TTIP não rebaixará as normas. Pelo contrário, as reforçará para proteger melhor os trabalhadores, os consumidores e o meio ambiente, e garantirá uma Internet livre e aberta, o que é essencial para a economia digital. Por todos estes motivos, os Estados Unidos continuam decididos a concluir as negociações do TTIP, e isso exigirá vontade política por parte de todos os nossos países.
P. Estamos ganhando a guerra contra o Estado Islâmico no Iraque e na Síria? E o que se pode dizer da “outra” guerra contra o EI, a prevenção dos atentados terroristas dentro dos nossos países?
R. Nossa coalizão mantém uma luta incansável contra o EI em todas as frentes. Os bombardeios aéreos da coalizão continuam atacando alvos do EI. Continuamos eliminando seus principais líderes e comandantes para que não possam voltar a nos ameaçar. Continuamos golpeando suas infraestruturas petrolíferas e suas redes econômicas, privando-os do dinheiro que financia seu terrorismo. No terreno, no Iraque, o EI perdeu mais de metade do território povoado que ocupava anteriormente, e as forças iraquianas iniciaram as operações para liberar Mossul. O EI está há mais de um ano sem concluir com sucesso uma grande operação no Iraque ou na Síria. Em resumo, o EI continua na defensiva, nossa coalizão está na ofensiva, e embora continue sendo uma luta difícil, confio em que nós ganharemos e o EI perderá.
Dito isto, mesmo que o EI continue perdendo terreno no Iraque, Síria e Líbia, ainda tem capacidade para efetuar ou inspirar atentados, como vimos no Oriente Médio, no norte da África, nos Estados Unidos e na Europa. Impedir que indivíduos solitários ou pequenas células terroristas matem inocentes em nossos países continua sendo um dos nossos desafios mais difíceis. Embora cada um dos nossos países trabalhe para reduzir os atentados em seu território, precisamos colaborar mais, compartilhando informação e inteligência, impedindo que os terroristas estrangeiros viajem e reforçando a segurança fronteiriça.
P. A Itália assumiu a liderança na crise dos refugiados no Mediterrâneo. Às vezes parece que está praticamente sozinha diante desta emergência. Como avalia a importância da solidariedade europeia nesse tema?
R. A Itália está claramente na vanguarda na crise dos refugiados, que é uma catástrofe humanitária e um teste para nossa humanidade comum. As imagens de tantos migrantes desesperados – homens, mulheres e crianças – amontoados em pequenos navios e se afogando no Mediterrâneo foram muito mais que dilaceradoras. É preciso reconhecer que a Itália e seus aliados resgataram e salvaram as vidas de centenas de milhares de emigrantes. O primeiro-ministro Renzi foi uma voz eloquente na defesa de uma resposta compassiva e coordenada a esta crise, incluindo a necessidade de ajudar os países africanos dos quais muitos desses migrantes procedem. Numerosos italianos mostraram sua generosidade ao receber os refugiados em suas comunidades.
Mas, como eu disse na cúpula dos refugiados que convoquei nas Nações Unidas no mês passado, um pequeno número de países fronteiriços não pode suportar sozinho toda essa carga. Essa é a razão pela qual a OTAN decidiu neste verão [boreal] aumentar o apoio às operações navais da UE no Mediterrâneo. Por isso os Estados Unidos acreditam que o acordo entre a UE e a Turquia seja uma forma importante de compartilhar os custos desta crise e garantir uma estratégia coordenada que respeite os direitos humanos dos emigrantes e garanta uma política migratória ordenada e humana. E por isso os Estados Unidos continuarão fazendo a sua parte como maior doador de ajuda humanitária em todo o mundo, incluindo a ajuda aos refugiados, e com seu compromisso de receber e reassentar 110.000 refugiados nos próximos 12 meses.
Dada a magnitude desta crise, todo mundo deve fazer mais. A cúpula sobre os refugiados do mês passado foi um importante passo adiante. Mais de 50 países e organizações aumentaram em 4,5 bilhões de dólares [14,4 bilhões de reais] suas contribuições às organizações humanitárias e aos apelos das Nações Unidas. Juntas, nossas nações estão aproximadamente duplicando o número de refugiados que admitimos em nossos países, até superar os 360.000 neste ano. Ajudaremos mais de um milhão de crianças refugiadas a terem acesso a educação, e ajudaremos um milhão de refugiados a terem acesso a formação, a adquirirem novas aptidões e a encontrarem trabalho. Mesmo assim, continuamos precisando que mais países doem mais ajuda e aceitem mais refugiados. E precisamos reafirmar nosso compromisso com a diplomacia, o desenvolvimento e a proteção dos direitos humanos, contribuindo assim para pôr fim aos conflitos, à pobreza e à injustiça que obrigam tantas pessoas a fugirem de seus lares. É uma tarefa urgente, em que agradecemos a firme colaboração de nossos amigos e aliados italianos.