Olívio Dutra: “Perder as ilusões não é perder a esperança. É aprender que tem pedras pelo caminho”
Olívio Dutra: “Os partidos do campo democrático-popular tem um problemão para resolver. A natureza desse problema não é eleitoral e tem raízes mais profundas”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Sul21 - 16/06/2017
Marco Weissheimer
Para muita gente, Olívio Dutra é hoje uma espécie de Mujica brasileiro. A referência ao líder político uruguaio não é gratuita. A melhor maneira de testar essa comparação é ouvir as suas falas e conversas políticas. Não são estritamente políticas, ao menos no maltratado sentido comum que a palavra “política” adquiriu. Mas ambos são seres políticos por excelência, na mais alta acepção que esse termo pode alcançar. Ao falar da política, falam da vida e da condição humana no presente. Alçado por muitos à condição de referência moral do PT e da esquerda brasileira de modo geral, Olívio Dutra é respeitado por pessoas de todos os espectros políticos, inclusive por aqueles que acreditam viver fora desse espectro. Mas ele recusa essa condição de salvador da pátria. Essa, aliás, é uma das razões pelas quais ele não pretende concorrer a qualquer cargo na eleição de 2018. Ele tem a convicção de que as raízes dos problemas a serem enfrentados pelo “campo democrático-popular” são mais profundas e não serão resolvidas fundamentalmente pela via eleitoral.
Olívio Dutra recebeu o Sul21 em seu apartamento-biblioteca na Avenida Assis Brasil para uma conversa sobre esses temas. Nos recebeu com um avental do Internacional, seu clube do coração. Antes de iniciar a conversa, registrada também com fotos e vídeo, assinalou: “Acho melhor me desaparamentar, né? – retirando o avental. Por mais de uma hora, Olívio falou sobre sua decisão de não concorrer, sobre a conjuntura nacional e estadual, o sentido da experiência do governo que encabeçou no Rio Grande do Sul e, principalmente, sobre aqueles que considera ser os principais desafios da esquerda hoje: não se deixar consumir pelo eleitoralismo, retomar o trabalho de base e de formação e promover um amplo debate sobre o funcionamento da sociedade e do Estado brasileiro. Crítico de longa hora dos erros e desvios do PT, ele, porém, não abraça a política da terra arrasada ou do desânimo. Pelo contrário, cita versos de Carlos Drummond de Andrade e de Mário Quintana para falar da importância de se permanecer juntos em meio às agruras do presente, perder as ilusões, mas não perder a esperança.
Sul21: Com exceção da disputa para o Senado, em 2014, o senhor não vinha participando de eleições como candidato. Quais foram as razões que motivaram essa decisão? Há alguma possibilidade de voltar a disputar eleições no futuro, como as de 2018, por exemplo?
Olívio Dutra: Os partidos do campo democrático-popular tem um problemão para resolver. A natureza desse problema não é eleitoral e tem raízes mais profundas. É evidente que nós, desde que nos constituímos como um partido registrado no Tribunal Superior Eleitoral, assumimos também o compromisso de enfrentar eleições com programas e candidaturas próprias em todos os níveis. É preciso saber enfrentar esse compromisso sem se deixar consumir pelo eleitoralismo, que é até uma deformação, trabalhando intensamente pela retomada de um trabalho de formação permanente. Este trabalho de formação não é do tipo em que as direções são os professores e a base os alunos, mas sim um processo onde todos possamos aprender uns com os outros e, em especial, com o povo, que se organiza das mais diferentes formas, e as suas lutas.
“O nosso sexto Congresso não fez o que devia fazer. O PT não saiu pior do sexto Congresso, mas também não saiu melhor”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
No meu entendimento, o PT está mal neste pedaço. Eu não me iludo. O nosso sexto Congresso não fez o que devia fazer. O PT não saiu pior do sexto Congresso, mas também não saiu melhor, com as energias restabelecidas, com sua simbologia renovada, com um projeto de transformação que não passa exclusivamente por eleições, mas que também inclui eleições, com candidaturas sérias e comprometidas, oriundas das lutas sociais e populares. Não se trata, portanto, simplesmente de ter esta ou aquela candidatura para salvar a situação do partido ou do campo de esquerda diante da crise que enfrentamos. Uma crise que não é só nossa, mas que atinge o mundo inteiro. No capitalismo em sua fase neoliberal vemos o ressurgimento das formas mais desumanizadoras do que deve ser o Estado, a política e o poder.
Reconheço que os nossos governos incorporaram milhões de pessoas numa situação de vida mais digna, com políticas sociais que tiraram da miséria mais de 40 milhões de brasileiros, uma população maior que a da Argentina. Foram ganhos importantes e o povo queria mais. Uma parcela significativa da população ficou cobrando mais de nós, quando estávamos no governo. Essa é uma luta que não esgotamos e não podemos paternalizar as conquistas que foram obtidas neste período.
Então, eu acho que não tenho que ser candidato. Já fui candidato em várias situações, com gosto, determinação, compromisso e responsabilidade. Vejo muitos jovens ingressando no PT. Tenho andado pelo interior e presenciado filiações de jovens, mulheres e homens, negros e índios, representantes dos movimentos sociais mais diversos, numa situação em que o partido está longe de ter a representatividade que já teve. Isso significa que o PT ainda tem algo que ainda inspira aqueles que querem transformações, não apenas mudanças na superfície das coisas.
Tenho uma opinião que já transmiti ao próprio Lula. Acho que ele tem que andar, sim, pelo Brasil. Ele tem disposição e gana para fazer isso e faz muito bem. Mas não como candidato a presidente da República. Eu disso isso pra ele. Lula acaba se transformando em uma espécie de para-raios para explicar tudo o que aconteceu, de positivo e de negativo. Esse é um movimento que tem que ter muito mais articulação, planejamento e estratégia para o país, reunindo todas as forças do campo democrático e popular junto com os movimentos sociais. Precisamos de um projeto alternativo de médio e longo prazo. Além disso, precisamos discutir a forma de executá-lo. Quando é que nós fizemos isso? Quem é a esquerda no Brasil hoje? Hoje, vemos alguns companheiros de diferenças forças se degladiando, uns dizendo que são mais de esquerda que outros. Isso é uma estreiteza. O povo brasileiro precisa de um campo de forças políticas comprometidas com as lutas populares.
“É preciso compreender que todos nós erramos e acertamos na vida, inclusive os sujeitos coletivos como os partidos”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Sul21: O centro do seu argumento então é que os problemas políticos centrais enfrentados hoje pelo PT e pela esquerda brasileira de um modo geral não serão resolvidos pelas eleições de 2018?
Olívio Dutra: No meu entendimento, não vai. Evidentemente, o campo democrático-popular precisa estar muito ativo, instigante, provocador de participação e formulador de questões. A formação é fundamental neste trabalho. É preciso compreender que todos nós erramos e acertamos na vida, inclusive os sujeitos coletivos como os partidos. Temos que tirar lições dos nossos erros e ter franqueza para dizer à população que erramos e afirmar aquilo de positivo que podemos fazer mais e melhor junto com o protagonismo do povo brasileiro.
Sul21: Na sua opinião, como disse anteriormente, o PT não saiu nem melhor nem pior do sexto congresso, realizado recentemente. Qual sua avaliação sobre o resultado desse congresso?
Olívio Dutra: Eu não vi a determinação necessária para essas mudanças. Aliás, não fui delegado em nenhuma instância, municipal, estadual ou nacional.
Sul21: Não quis ser?
Olívio Dutra: Não quis.
Sul21: Por quê?
Olívio Dutra: Eu não milito em nenhuma corrente interna. Sou do campo de esquerda do partido, que é um campo diversificado. Para mim o PT é um partido de esquerda, mas nós temos uma direção que, no meu entender, não representa adequadamente o campo de esquerda de um partido socialista democrático. Ela foi se acomodando e afirmando mais a institucionalidade do que a luta popular mais ampla. Por outro lado, é evidente que essa direção não está solta no espaço. Nós, na base, afrouxamos a cobrança nas instâncias partidárias. Foi se consolidando uma situação onde quem estava na direção, em função de uma dada conjuntura e de uma presença na institucionalidade, se arvorou no direito de operar certas políticas sobre as quais, agora, a base precisa ficar dando explicações ou tentando justificar.
Então, temos muitas coisas sobre as quais precisamos refletir e aprender. Eu me incluo nisso. Tenho muito o que aprender. Acho que essa disposição de aprender sempre não foi apropriada pelo partido em seu conjunto. Lembro que nos cursos de formação do PT nós tínhamos grandes pensadores, intelectuais e estudiosos conhecedores da sociedade e da história brasileira. Com o passar do tempo, essas figuras foram sendo deixadas de lado e se tornaram observadoras de longe da vida do partido. Tínhamos nomes como Antonio Cândido, José Álvaro Moisés, Francisco Wefort, Florestan Fernandes, Mario Pedrosa e outras figuras de uma geração anterior a nossa que pensaram o Brasil e refletiram sobre o país nas mais variadas dimensões. No entanto, as nossas direções foram deixando isso passar, encantadas por uma lógica puramente eleitoral e um pensamento muito operativo, baseado na eficiência e no pragmatismo.
“O golpe foi uma tessitura detalhada e sofisticada. Como é que nós, com quadros de grande capacidade, nos deixamos nos enredar nesta trama?” (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Sul21: Esse processo coincide com a chegada do PT a governos, não?
Olívio Dutra: Isso. Alguns desses nomes foram ficando pelo caminho e até saindo do partido como foram os casos do Wefort e do José Álvaro Moisés, entre outros. Acho que não trabalhamos bem essa herança cultural do campo democrático-popular, de esquerda e do socialismo democrático. Outro nome que me vem a memória e que foi um companheiro ativo, ex-militante do Partido Comunista e depois do PRC, é o do jovem Apolônio de Carvalho. Ele tinha uma grande inteligência e uma capacidade de reconhecer erros e identificar perspectivas novas que se abriam. Deixamos essas experiências muito soltas. Por outro lado, surgiram novas lideranças de movimentos sociais que não se perderam nesta dimensão eleitoral e institucional e que não se deixaram neutralizar pelo fato de haver um governo de esquerda.
Sul21: Poderia citar alguns exemplos dessas novas lideranças?
Olívio Dutra: No MST e no Movimento dos Trabalhadores Sem Teto tem muitas. Do mesmo, no movimento estudantil e na área da agricultura familiar. Penso que entidades com a UNE, a própria CUT e setores do movimento sindical ficaram meio amarradas pelo fato de estarmos no governo. Houve uma certa pressão de dentro para fora dos nossos governos para que os movimentos contemporizassem mais as situações sem que se explicasse direito as enormes contradições que estávamos vivendo por estar no comando de uma máquina, o Estado brasileiro, que sempre foi uma cidadela de defesa dos interesses das elites tradicionais. Você não chega aí e altera essa estrutura só porque elegeu o Lula. É preciso explicar isso para os movimentos para ir democratizando essa máquina e mudando a sua lógica, o que não é uma tarefa fácil, tampouco de curto prazo.
Então, precisamos explicar como é que caímos neste enredo. O golpe foi uma tessitura detalhada e sofisticada. Como é que nós, com quadros de grande capacidade, nos deixamos nos enredar nesta trama? Não temos que prestar de contas de nada sobre isso?
Sul21: Há quem diga que este momento, quando há uma ofensiva conservadora em curso, não seria o mais adequado para fazer esse trabalho de autocrítica. O que pensa sobre isso?
Olívio Dutra: Acho que isso é uma meia verdade. É evidente que você não pode abrir a guarda e se autoflagelar de modo que o adversário possa tirar proveito disso. Mas não dá pra fazer boca pequena ou ficar cheio de dedos, sem ter a franqueza de se reconhecer os erros que foram cometidos. E há figuras que cometeram erros, bem identificáveis. A Justiça é parcial, a estrutura do Estado é viciada, há forças internacionais interessadas em explorar o Brasil? Sim, tudo isso é verdade, são dados da realidade e parte da conjuntura que vivemos, mas nós tivemos iniciativas ou deixamos de tê-las que propiciaram esse enrosco em que nos metemos. E não vamos sair desse enrosco negando o que aconteceu.
Achei muito infeliz, para dizer o mínimo, o discurso da nova presidente do PT. Ela coloca uma pedra em cima de tudo o que poderia ser feito em termos de avaliação dos nossos erros, equívocos ou limitações. Ao invés disso, ela faz um autoelogio. Eu acho que elogio em boca própria é vitupério. Vamos usar essa palavra feia. Não adianta ficar dizendo simplesmente que fomos o melhor governo do país, melhor do que Getúlio, Jango e Brizola. Convenhamos, isso chega a ser um desrespeito com figuras importantes da história do país que pertenceram ao campo democrático-popular. Essa é a nova direção do PT? É difícil.
Sul21: O governo que o senhor encabeçou aqui no Rio Grande do Sul é considerado por muitos como uma das mais avançadas experiências institucionais da esquerda brasileira no período pós-redemocratização. Ele foi alvo de ataques desde o primeiro dia, com o episódio da bandeira de Cuba na sacada do Palácio Piratini. Considerando a realidade do Estado hoje, qual o olhar que tem em relação aquele governo
Olívio Dutra: Foi o governo da Frente Popular, que reuniu o PT, os PCs, o PSB, por um bom tempo o PDT, e outras forças do campo democrático-popular, do qual tive a honra de ser governador. Foi um momento em que o neoliberalismo estava em franca ascensão no país com a ideia das privatizações e da redução do tamanho do Estado. Sucedemos um governo que estava disputando essa ideia como uma liderança nacional desse campo neoliberal. No nosso governo, não tínhamos nenhum quadro que tivesse vivido uma experiência longa por dentro da máquina pública. Mas nossos quadros tinham uma visão muito crítica da realidade pela qual o Estado estava passando. Tínhamos que acumular experiência num tempo curto sob pressão permanente dos setores cujos interesses nós achávamos que tínhamos que contrariar para fazer valer o interesse público.
Nós queríamos que o Estado passasse a funcionar com outra lógica para atender aos interesses da maioria, descentralizando o desenvolvimento econômico, social e cultural. Não era uma tarefa simples e não estava bem esquadrinhada. Ela foi sendo construída no próprio caminhar em meio a enfrentamentos, o que às vezes nos dificultava calibrar bem os tempos das nossas ações. Tínhamos a disposição de não baixar nunca a guarda e de não fazer arreglo. A mídia poderosa que temos aqui no Estado saiu em respaldo dos grupos cujos interesses o nosso programa e a nossa ação contrariavam.
“O Sperotto me ligava de madrugada para reclamar que estavam invadindo uma terra e que era preciso acionar a Brigada imediatamente”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Sul21: Desde cedo, tentou-se colar o rótulo de um “governo de conflito”?
Olívio Dutra: Sim. Isso acabou chegando até setores da nossa base que queriam que fôssemos mais devagar, que compuséssemos mais. No meu entendimento, foi importante ter mantido uma linha, não do conflito pelo conflito, mas que afirmava que o nosso projeto não era pessoal ou exclusivamente partidário, mas sim um projeto baseado numa visão segundo a qual o Estado não poderia servir aos interesses de uns poucos grupos e seus amigos, nem continuar submisso ou pisoteado por um pacto federativo onde ele estava cada vez mais sendo secundarizado. A ideia do Estado funcionando melhor não só para alguns, mas para a maioria da população, sob controle público e não privado, germinou. Foi ela que sustentou a não venda de nenhum parafuso do patrimônio público. Ao contrario, tentamos recuperar algumas empresas que já estava estilhaçadas pelo processo do governo anterior, como foi o caso da CEEE. Impedimos a venda do Banrisul, da Corsan e da CRM que agora estão todas aí na alça da mira para serem vendidas.
É bom lembrar que o Rio Grande do Sul, no nosso governo, cresceu acima da media nacional. E não foi só o PIB geral, mas também o PIB agropecuário, o PIB industrial, a geração de emprego e renda e a qualificação dos serviços. Acho também que demarcamos muito bem a questão da segurança pública. O companheiro José Paulo Bisol, uma figura que a gente nunca pode esquecer, fez debates seríssimos sobre o funcionamento do braço armado do Estado. Valeu a pena levantar essas questões, mesmo com os enfrentamentos que tivemos. Nunca, nenhum deles, aconteceu porque quiséssemos fazê-los, mas por que as condições dadas acabaram levando a eles.
Lembro de um episódio envolvendo uma greve de delegados. Nós tínhamos uma política para diminuir as distâncias salariais entre quem ganhava mais e quem ganhava menos entre o funcionalismo público. Não atrasamos nenhum dia o salário do funcionalismo, fizemos diversos concursos públicos e reajustamos mais os salários de quem ganhava menos. Isso gerou descontentamentos entre setores da elite do funcionalismo público. Os delegados de polícia fizeram uma greve contra nós por conta disso e nunca colocamos a Brigada na frente do palácio para nos proteger. Um dia, os delegados em greve entraram no palácio e se alojaram lá no saguão para passar a noite lá. Nós não colocamos a polícia pra cima deles e a secretaria própria foi tratar do assunto. Em um determinado momento, o Laerte (Meliga) me ligou dizendo que o presidente da Farsul, Carlos Sperotto, estava lá embaixo levando bandejas de comida para os delegados. Só pra dar uma ideia do que enfrentávamos.
Nunca deixei de receber o presidente da Farsul por causa disso. Às vezes, ele me ligava de madrugada para reclamar que estavam invadindo uma terra e que era preciso acionar a Brigada imediatamente. Um dia respondi para ele: “Presidente, agora são duas horas da madrugada. Às sete e meia da manhã, estarei aqui no palácio lhe esperando com uma mate pronto para conversarmos”. O que ele queria é que a ação fosse, sobretudo, policial e repressiva.
Sul21: Hoje, temos, com o governo Sartori, uma retomada da agenda privatista do governo Britto, talvez até de modo mais agudo. Qual a sua avaliação sobre o atual momento que vive o Estado?
Olívio Dutra: O Estado sempre foi um território de disputa. As elites tradicionais e os grupos econômicos mais poderosos sempre tiveram o Estado como uma trincheira deles. Eles admitem fazer algumas concessões, aqui e ali, de vez em quando, mas só até um limite. Tanto é assim que deram este golpe agora porque acharam que o povo ultrapassou os limites que eles tinham concedido. Como o governo Lula abriu a possibilidade de protagonismo para muita gente, era hora de dar um “paratequieto”. Nós não conseguimos que essa cultura do protagonismo e da defesa do controle público do Estado se enraizasse e se espraiasse. Mas isso não está só acontecendo só aqui, mas também pela America Latina afora e no mundo inteiro de um modo geral. A ideia do fim do Estado de bem estar social, do Estado mínimo, do mundo financeirizado, da cultura de ganhar o máximo de lucro com o menor custo, que implica a superexploração da mão de obra e a agressão à natureza, também ajudam a entender o que estamos vivendo agora.
Eu não diria que o governo Sartori está nadando de braçada, mas está tendo a ousadia de chamar um plebiscito para a privatização de empresas públicas caríssimas, não só para o desenvolvimento do Estado, mas para a cultura gaúcha também. Esse debate não é superficial, tem raízes mais profundas e envolve uma fundamentalmente uma concepção de Estado, para que e para quem ele deve servir e como deve funcionar. O governo Sartori está indo na China para buscar financiamentos. Quem é que vai vir pra cá? Empresas públicas chinesas. É uma contradição e uma demonstração dos nossos limites também no debate político de conteúdo.
Nós afrouxamos o debate sobre como funciona a sociedade no capitalismo em sua fase neoliberal e como deve funcionar na visão de outro mundo que é possível de construir na medida em que o protagonismo das pessoas se amplie. Penso que não está dado que, em caso de um plebiscito, o povo gaúcho permita a privatização dessas empresas, mas os espaços são estreitos. Esse é um debate político de conteúdo que devemos enfrentar. Mas ele tem que ter regras e espaços adequados e isonômicos, meio a meio, para as duas posições se dirigirem ao povo gaúcho. Criadas essas condições, é um bom debate, um debate que talvez tenhamos deixado de fazer com a intensidade que deveríamos ter feito mais lá atrás.
Sul21: Há muito tempo, a sua fala defende a importância de uma formação cultural e histórica mais ampla para a militância da esquerda. Considerando o contexto atual que vivemos no Brasil e no mundo, qual é, na sua opinião, o déficit maior que precisa ser enfrentado nesta área?
Olívio Dutra: Como diz o Carlos Drummond de Andrade, “estou preso à vida e olhos meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças (…) O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”. Mais ou menos isso. Todos nós temos que ter a consciência de que o povo brasileiro não é uma massa amorfa que tem alguém que dá forma a ela. O povo brasileiro tem uma diversidade enorme de origens, de formação e de compreensão. Precisamos conhecer bem essa diversidade e o funcionamento da sociedade no Brasil, um país onde os colonizadores que chegaram aqui massacraram as populações indígenas, como de resto aconteceu na maioria da América Latina. É bom ler os clássicos que contam essa história. Mas também é preciso estar na luta no cotidiano. No presente das lutas também aprendemos sobre o passado e sobre as ligações dele com o presente e com o futuro. É um trabalho a ser realizado de baixo pra cima, que exige paciência e tolerância, para criar novas lideranças e fortalecer as que já estão despontando. É uma construção coletiva que tem que ser feita desde anteontem.
Sul21: Tem muita gente deprimida com a situação pela qual passa o país. Diante do presente que estamos vivendo, o senhor é otimista ou pessimista em relação ao futuro?
Olívio Dutra: Não é ruim que as pessoas estejam angustiadas com tudo o que está acontecendo. Mas é preciso superar isso. Enquanto houver uma injustiça no mundo, não só aquela que está perto de nós, o ser humano tem que estar se indignando contra ela. Agora, se indignar contra a injustiça não é estar de mal com mundo e nas relações afetivas que nutrimos. Tem um versinho debochado do Mario Quintana que diz: “Meu saco de ilusões, bem cheio tive-o e com ele ia subindo a ladeira da vida. No entanto, a cada ilusão perdida, que extraordinária sensação de alívio”. Perder as ilusões não é perder a esperança. Ao contrário, é aprender que tem pedras pelo caminho. E é só caminhando que poderemos construir uma realidade de justiça e fraternidade, com a qual sonhamos, inclusive acordados.