Outras Palavras: “Insurreição chilena quer passar país a limpo”

24/10/2019 | Política

Pelo sexto dia, população desafia o Estado de Emergência e exige fim do inferno neoliberal. Assembleias em praças enfrentam Exército. Jornalista analisa: ruas pedem mudanças urgentes e transformadoras, a começar pela Constituição

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Outras Palavras – 24/10/2019

Francisca Quiroga, entrevistada por Gabriela Leite e Rôney Rodrigues

O presidente do Chile, Sebastián Piñera, parece, desnorteado, enfrentar uma “invasão alienígena” – expressão usada por sua esposa, Cecilia Morel, em áudio vazado onde queixa-se de que terão que “diminuir nossos privilégios e ter que dividir com os outros”. Para conter essas assustadoras manifestações, declarou, textualmente, guerra ao povo – e, para isso, buscou referências vintage na sangrenta ditadura de Pinochet: tanques de guerra nas ruas, toque de recolher, mais de duas mil pessoas detidas, bombas de gás lacrimogêneo disparadas de helicópteros, espancamentos, pessoas arrastadas pelo asfalto, policiais correndo atrás de crianças, abusos sexuais, tiros com balas reais nas pernas de manifestantes, 18 mortes confirmadas (incluindo a de uma criança de quatro anos), pessoas desaparecidas e um centro de torturas em uma estação de metrô de Santiago. Diversos vídeos circulam pelas redes sociais, mostrando essa realidade cruel.

Mas, se a guerra ainda não foi vencida pelos insurgentes, ao menos venceram de lavada todas as batalhas até agora. Por mais que Piñera, seus ministros e a velha mídia tentem justificar o Estado de Emergência para conter “vândalos depredadores do patrimônio público”, a desculpa não cola: desde sexta-feira (18/10), a insurreição popular se estendeu pela Cordilheira e alcançou todas as gerações de chilenos –  já não apenas aqueles jovens que pulavam catracas contra o aumento da tarifa de metrô, há três semanas. Os manifestantes, desafiando o medo, dizem: “não é por 30 pesos, mas por 30 anos de neoliberalismo”. Que o Chile, enfim, despertou. Batem panela contra o governo. Enfrentam Exército e polícia — cujos blindados, inclusive, são obrigados a recuar frente a um mar de gente.

Todo dia, a partir das 12h, as ruas ficam em polvorosa. Assembleias populares desafiam o toque de recolher e se propagam, dia após dia, em praças, universidades, ruas, centros acadêmicos, sindicatos e portas de ministérios. Discutem a tomada das ruas, os cuidados coletivos com a segurança e o Chile que querem construir. As escolas públicas estão sem aula; as privadas, com presença facultativa. As universidades foram fechadas para evitar que se tornassem “ratoeiras do Estado de Emergência”. No centro da rebeldia, estão jovens secundaristas entre 15 e 18 anos que, na última década, tem tido protagonismo nas insurgências contra os governos neoliberais. Conectados por WhatsApp, organizam marchas e “pula-catracas” em grupo. Para driblar a repressão, propõem mobilização permanente e estratégia de “piquetes”: grupos menores, em várias partes da cidade – um contraponto às tradicionais manifestações, com local definido e começo e fim.

Uma greve geral de 48 horas começou nesta quarta-feira (23/10). Frente a pautas complexas – como redução da jornada de trabalho; reajuste das aposentadorias; reforma do sistema previdenciário; fim dos privilégios tributários aos ricos; restauração da Saúde e Educação pública –, organizações sociais já propõem reformar a Constituição, herança maldita da ditadura militar, e lançar uma Assembleia Constituinte.

Na última terça, um arrependido Piñera pediu desculpas à população e anunciou pequenas mudanças no sistema previdenciário e de saúde, elevação do salário mínimo e redução das tarifas de energia. No entanto, recusou-se a recuar quanto ao Estado de Emergência: as Forças Armadas seguirão nas ruas para controlar a ordem pública e fazer valer os toques de recolher, decretados em quase todas as regiões do país. Mas, a julgar pelas ruas ainda mais cheias no dia de hoje, os “alienígenas” não desistirão enquanto não tombar o modelo neoliberal.

Para compreender esse complexo movimento, conversamos com Francisca Quiroga, editora d´El Desconcierto, mídia progressista chilena. Na entrevista, ela desenha a complexa teia de personagens presentes nas manifestações — entre eles, secundaristas, feministas, movimentos sociais contra a Previdência e Saúde privadas e a Frente Ampla, surgida das mobilizações estudantis de 2011. Conta que do “pula-catracas” dos estudantes, duramente reprimidos, emergiu uma raiva mobilizadora que contagiou toda a população. Explica como os governos de centro-esquerda, após a ditadura, apostaram erroneamente no neoliberalismo e ampliaram a desigualdade — radicalizada por Piñera, com governo elitista e toques de autoritarismo. E expõe as incertezas sobre o futuro de uma ampla mobilização popular, que começa a costurar saídas como a da Constituinte, mas cujos próximos passos são imprevisíveis.

Vimos as ruas tomadas. Primeiro, as de Santiago. Depois, todo o país. A denúncia se tornou conhecida: não é por 30 pesos, mas por 30 anos. Como entender o contexto em que surgem e o reivindicam esses protestos?

Primeiro, é preciso esclarecer que tudo isso não é resposta somente a um fato específico. O pula-catraca por causa do aumento da tarifa foi apenas o estopim, o evento que fez com que os chilenos visualizássemos um conjunto de indignações e raivas que tem a ver com a discussão sobre a desigualdade no país e o modelo neoliberal.

A discussão de fundo é a Constituinte. É sobre que tipo de Estado e de sociedade temos — já que foi na Ditadura que se implementou o modelo neoliberal como conhecemos, exportado a outros países da América Latina. Muitos desses elementos e pilares — tanto do neoliberalismo, como do sistema autoritário — não foram revogados na pós-ditadura e na volta da democracia, de 1989 até hoje.

Temos um sistema privatizado, no qual 80% da população ganha menos de 500 mil pesos (algo em torno de US$ 680 ou R$ 2.700). Sentimos que nossa vida vale pouco. Percebemos que as vidas são mercadorias. Este sistema mercadocêntrico e mercantilizado da vida é o modelo chileno que o mundo internacional tanto gostava de resgatar como “o país que prosperou”, quando na realidade temos uma concentração da riqueza e um descontentamento pelos abusos, por sentirmos que temos vidas endividadas e totalmente mercantilizadas.

Há partidos de esquerda e movimentos sociais envolvidos na articulação dessas mobilizações populares?

As mobilizações são espontâneas. Não há lideranças do Partido Comunista nem da Frente Ampla. Começaram com os estudantes secundarista, pois Piñera mantém um forte discurso de criminalização contra eles. O Evade! (“pule a catraca”) surge como estratégia de contestação por parte desses jovens, escolhendo como alvo o metrô, símbolo da prosperidade no Chile.

Os cidadãos, ao invés de se indignarem com esses jovens que pulavam a catraca há três semanas, solidarizaram-se. Sim, eles evadem o pagamento da tarifa, pensaram muitos, mas o governo também evade meus impostos, a classe política concentra privilégios e estamos endividados e abandonados pelo Estado.

Foram esses os fatores que conjugaram na insurreição social que deixou os políticos pasmos. Não há uma liderança organizada, mas um conjunto de atores sociais nas ruas. Já não utilizam a estratégia de  grandes passeatas: formam pequenos grupos, em várias regiões — e, dessa forma, conseguem desestabilizar as forças de ordem e de repressão, que não sabem como enfrentá-los. Diferentemente de marchas que duram apenas algumas horas, o pessoal está mobilizado o tempo todo, usando a estratégia de “piquete”, ou seja, de pequenas turmas. Isso é novidade no Chile.

E a resposta do governo é a mais inadequada possível. Voltamos a ver tanques de guerra nas ruas — um desastre em como conduzir uma crise.

Foram 30 anos de modelo neoliberal. Por que agora toma-se fôlego para questioná-lo? As condições de vida da população pioraram com o governo Piñera? Por que esse descontentamento “explodiu”?

A Concertación [coalizão de centro-esquerda que governou de 1990 2010 e, depois, de 2014 a 2018] tinha um discurso de “neoliberalismo com rosto humano”. Um progressismo limitado, que falava de direitos sociais e melhorias na qualidade de vida dos cidadãos, mas sempre enquadrando essas políticas no modelo neoliberal.

O modelo de  administração da Concertación — que, de fato, melhorou os indicadores de pobreza, graças ao nível de crescimento do Chile — trouxe, também, a concentração de riqueza. Com isso, nos deparamos com um problema político-social, que se estendeu pelos governos seguintes. Mas Piñera [que governou entre 2010 e 2014, e está em seu segundo mandato desde 2018] fecha os canais de diálogo com os atores sociais. Movimentos dos secundaristas, universitários e feministas — que ganharam força a partir de 2018 — e muitas outras demandas da população estão sendo ignoradas.

Algo que ele deve estar muito arrependido agora…

Além disso, Piñera, ao propagar discursos de prosperidade e ordem — e, mais recentemente, ao declarar que somos o “oásis da América Latina” — ativou nossa raiva. Soma-se a isso declarações estapafúrdias de ministros que, reagindo aos protestos, aconselharam que o povo acordasse mais cedo [para não pagar a tarifa que sofreria a elevação, no horário de pico].

A forma como Piñera administra o poder, acredito, escancarou as contradições do modelo e gerou condições para agravar o conflito. O aumento da tarifa, embora já  programado em lei, somado à péssima estratégia de comunicação do governo, geraram todas as condições necessárias para a explosão.

Essa falta de empatia somada a uma grande desconexão com a realidade — afinal, são homens brancos, ricos, que estudaram em escolas da elite e fazem análises políticas com planilhas de Excel — tornou ainda  mais sensível e delicada a relação do governo com os cidadãos.

Como a ultradireita se comportou perante as mobilizações? Tentou cooptá-las?

No caso chileno, a ultradireita se vê representada por um grupo liderado por José Antonio Kast, que obteve 8% dos votos nas últimas eleições presidenciais. Faz parte da política tradicional, saiu do partido [de direita] União Democrática Independente (UDI), onde era um deputado medíocre. Poderíamos até compará-lo com Bolsonaro — de fato, eles já se encontraram e Kast o admira.

Kast se pronunciou dizendo que os manifestantes eram vândalos e que era necessário levar os militares às ruas. Pegou mal: teve enorme rejeição e foi visto como parte do capital financeiro e da ultradireita ligada a Pinochet, à criminalização e ao uso da violência.

Porém, no Chile há uma diferença essencial em relação ao Brasil: o eixo Ditadura vs. Democracia continua pautando nossa história política. Há muita discussão e análises, as novas gerações rejeitam e condenam fortemente a ditadura. Os jovens de 20 a 30 anos são muito conscientes de questões como memória e direitos humanos. Como nós já vivemos o neoliberalismo no Chile e o associamos à implantação da ditadura, essa direita liberal tem poucas chances de se aproveitar desta mobilização.

Como Piñera se articula para enfrentar as ruas? Por enquanto, nem mesmo a forte repressão estatal promovida pela polícia e pelas Forças Armadas estão surtindo efeito em pulverizá-las…

Quanto maior a repressão, mais gente se mobilizando nas ruas, como percebemos nestes dias em Estado de Emergência. Ouvimos que seria mantido o toque de recolher — que restringe nossas liberdades — e nos disseram “estamos em guerra”. Isso gerou uma situação em que os cidadãos comuns, que estavam pacificamente nas ruas, com seus familiares, com os jovens, sentissem uma raiva mobilizadora, e fez com que eles não tivessem mais medo dos enfrentamentos, pois as injustiças já ultrapassaram todos os limites.

Mas, hoje em dia, a população tem acesso a meios de comunicação alternativos, a redes sociais, e isto lhes permite perceber que os grupos que provocam violência são minoria, são os chamados grupos lúmpen que cometem vandalismo, e que sempre vão existir. Não representam a grande maioria mobilizada, que protesta por demandas políticas, sociais, culturais e de modo de vida, que não aguenta mais o privilégio dos mais ricos.

Hoje, Piñera mantém um suposto discurso de diálogo e se reúne com parte da oposição. Propõe conversar com alguns, para depois tirar uma foto e dizer que se trata de um problema da classe política de modo geral, que pode ser resolvido com a lógica dos anos 90: formando mesas de trabalho. Mas não se reuniu com os Partidos Socialista, Comunista e nem os da Frente Ampla. Vale lembrar que o Partido Comunista sequer foi convidado para a reunião no palácio de governo por ter declarado que, enquanto durar o Estado de Emergência e os militares estiverem na rua, não negociará com nenhum governo.

As manifestações como a dos Pinguinos e de 2011-2012, também feitas por jovens e estudantes, entusiasmaram a todos. Mas, ao final, apesar de avanços, não houve mudanças estruturais. O que diferencia as de hoje e as anteriores?

Esta mobilização é completamente diferente das de 2011, que ainda mantinham uma política parecida com a de movimentos sociais, em que há um porta-voz em evidência. Alguns de seus personagens representativos criaram seus próprios partidos e compuseram a Frente Ampla. São jovens que estão fora da Concertación, críticos às políticas de acordos e transição. Em 2011, eles deram um salto em suas carreiras políticas: foram parar no Parlamento, conquistam a atenção da opinião pública como porta-vozes da educação pública. Foi uma das primeiras manifestações a questionar o neoliberalismo e a mercantilização da educação e dos direitos sociais. Porém, partia de apenas um setor.

Embora tenham tido uma adesão popular, não geraram uma situação parecida com a de agora, mais orgânica e contraditória. As vozes vêm das ruas, sem representantes nem liderança. Estamos nos perguntando: “quem são seus porta-vozes? o que querem?”. Agora, começam aparecer organizações sociais que se somam às manifestações, mas não falam pelas ruas nem pelos jovens que organizaram o Evade!.

Analisar essa rebeldia é difícil; ela relaciona-se a muitas outras manifestações que ocorrem no mundo. Vivemos uma crise de representatividade que se reflete em falta de lideranças e dirigentes. Mas, também, surgem novas formas de mobilização por meio das redes sociais, por exemplo, onde as pessoas conseguem dialogar e encontrar demandas em comum, onde a raiva é mais exacerbada — e, justamente por isso, não sabemos o que apresentará esse movimento. Mas o objetivo foi agregar demandas e desestabilizar o governo, e nisso já teve grande sucesso.

É um questionamento aos abusos e às desigualdades, uma forma de dizer “estamos fartos, não aguentamos mais”. Um estado de espírito mais complexo do que aquele de 2011 que, se não for canalizado pela direita, pode ser algo vívido e interessante. Por enquanto, é um proto-movimento que não sabemos aonde vai chegar. Mas estamos voltando ao debate crítico ao modelo neoliberal. O cenário latino-americano também influencia: vimos as mobilizações no Equador, eles cantaram que o “povo está unido”, e nós, chilenos, começamos a pensar: “aqui não é o oásis que Piñera disse, há muita desigualdade”. Os equatorianos resistiram a um pacote de medidas neoliberais enquanto nós vivemos há anos com elas.

Como a greve poderá impactar na articulação em torno de uma nova Constituição, que parece ser uma demanda que congrega a todos?

A greve foi convocada por uma plataforma recém-criada, chamada Plataforma Unidade Social. Ela é composta por um conjunto bem diversificado de organizações, vindas de movimentos sociais, feministas e culturais, e que fizeram uma lista de exigências. A primeira é a revogação do Estado de Emergência e do toque de recolher, e a retirada dos militares das ruas, todas as práticas aplicadas por Piñera. Depois, apostam em uma Assembleia Constituinte. Querem uma nova Constituição feita em assembleia, pedem reformas mais radicais e transformadoras. Também reivindicam o congelamento dos projetos de lei que atentam contra os direitos sociais. É uma agenda mais radical a que chama para a greve nesta quarta e quinta-feira, no Chile inteiro. Até agora, mantém-se a suspensão das aulas nas escolas e as faculdades continuam fechadas. Todos continuam mobilizados, e os atos crescem a cada fala de Piñera.

Além disso, há mais atores políticos institucionais envolvidos: a oposição que não se reuniu com Piñera por perceber que abrir diálogo, com os militares na rua e o Estado de Emergência em vigor, era uma armadilha. Esses atores organizam uma agenda chamada No más abusos [“Chega de abusos”]. Fazem parte a Frente Ampla, o Partido Comunista e o Partido Progressista. A eles, se somaram a coordenação do movimento No más AFP [“Pelo fim da Previdência Privada”] e a Confederação da Saúde, que são instituições grandes e estruturadas. Este grupo aposta em cinco grandes eixos, entre eles, reduzir os salários e privilégios parlamentares, a aprovação das 40 horas de trabalho semanais (que é um projeto que já contava com os votos da oposição para ser aprovado, mas que foi barrado pelo Poder Executivo) e a melhoria das aposentadorias, que são extremamente baixas. Porém, essas organizações não pretendem convocar uma Assembleia Constituinte para já. Falam de transformações, mas num tom muito mais reformista do que o que a Plataforma Unidade Social propõe.

Arrisca alguma aposta pro futuro dessas mobilizações?

Precisamos observar a Greve Geral e seus movimentos. As pessoas têm muita vontade de participar, mas é necessário também ver como enfrentaremos o discurso do medo. A repressão tem sido muito forte, e tem gente começando a se assustar com esses dias sem diálogo e sem alternativas no horizonte. Portanto, a nova fase que viveremos dependerá de como esta mobilização será conduzida. Estão somando-se novas organizações da luta feminista, acrescentando-se demandas dos funcionários públicos, outras referentes às aposentadorias, dos líderes de sindicatos…

Agora, precisamos ver como isso vai caminhar, porque os atores políticos institucionais de partidos que não negociam com Piñera, que se autodenominam de centro-esquerda ou social-democratas, também não têm muitas convicções nem sabem explicar muito bem como liderar esse movimento que é tão espontâneo, que vem de baixo pra cima. É um fenômeno a ser observado.