Paulo Klias: “Mea culpa do financismo?”
Christine Lagarde criticou publicamente Meirelles, afirmando que 'a prioridade das políticas econômicas precisa ser o combate à desigualdade social.'
Paulo Kliass*
Carta Maior – 17/01/2017
O ano começou com muita mesmice e algumas novidades. As trapalhadas, as denúncias de corrupção e os equívocos desastrosos do governo Temer seguem na mesma toada. Os massacres ocorridos nos presídios em vários Estados, ao longo de poucos de dias de 2017, chamam a atenção para o despreparo do governo federal em lidar com o tema e acendem a luz vermelha pelo futuro próximo. Mas eis que em sua primeira reunião do ano, o Comitê de Política Monetária (COPOM) decidiu por reduzir a SELIC em 0,75%.
A publicação de um artigo inusitado de André Lara Rezende, porém, foi mais surpreendente do que essa terceira queda consecutiva da taxa de juros. O autor é um dos economistas mais bem preparados do campo conservador em nosso País, tendo atuado de forma significativa tanto no ambiente acadêmico, quanto na formulação de políticas públicas e como dirigente do setor financeiro privado. Esteve presente na implementação de algumas das mais importantes tentativas de estabilização macroeconômica, desde o Plano Cruzado em 1986 até o Plano Real em 1994.
O texto foi divulgado originalmente na edição de final de semana do jornal Valor Econômico, onde costumam aparecer peças de maior densidade intelectual e que podem oferecer material para uma reflexão mais profunda, fato que a correria do meio da semana em tese não permite à maior parte dos leitores. É importante lembrar que Lara Rezende sempre defendeu as políticas do establishment econômico-financeiro ao longo das últimas décadas. Exatamente por isso soa um tanto estranho para o leitor familiarizado com seus pensamentos o título do documento: “Juros e conservadorismo intelectual“. Afinal, adoção de uma política monetária arrochada sempre foi um dos pilares da receita do campo conservador para a nossa economia.
Por que a taxa de juros é tão alta?
A leitura do artigo confirma a suspeita inicial. Realmente parece tratar-se de uma autocrítica em relação a tudo o que foi praticado, em termos essenciais, do ponto de vista da política monetária ao longo, pelo menos, dos últimos vinte anos. O autor começa com a pergunta que qualquer cidadão minimamente formado e informado deveria se fazer a cada dia, ao acordar pela manhã. Qual a razão para a permanência de uma taxa de juros tão elevada em nossas terras e de forma ininterrupta? Ele se questiona:
(...) “Desde a estabilização da inflação crônica, com o Real – e já se vão mais de 20 anos -, a taxa básica de juros no Brasil causa perplexidade entre os analistas. Por que tão alta?” (...)
Afinal a opção por esse tipo de política de juros elevados para viabilizar os planos de estabilização consolidou-se mesmo para os períodos posteriores à edição do Plano Real, por exemplo. O Brasil assumiu a liderança absoluta no campeonato mundial no quesito. A SELIC superou em muito os níveis considerados “razoáveis” para cumprir seu papel de reguladora da demanda e, com isso, contribuir para evitar riscos inflacionários. E ali ficou, criando raízes em patamares estratosféricos.
A questão do equívoco na política adotada pelo COPOM fica ainda mais evidente com as medidas do austericídio, no período mais recente. A redução do ritmo de crescimento da economia deveriam ter invertido os sinais para a orientação da taxa de juros. Era o momento para a adoção das chamadas medidas anticíclicas. Lara Rezende continua em suas perguntas quase existenciais:
(...) “As altíssimas taxas brasileiras ficaram ainda mais difíceis de serem explicadas diante da profunda recessão dos últimos dois anos. Como é possível que depois de dois anos seguidos de queda do PIB, de aumento do desemprego, que já passa de 12% da força de trabalho, a taxa de juro no Brasil continue tão alta, enquanto no mundo desenvolvido os juros estão excepcionalmente baixos?” (...)
Modelos equivocados
Além disso, o autor vai ainda mais fundo em seu diagnóstico dos erros cometidos. Isso porque os modelos neoclássicos da economia sempre estabeleceram uma relação de causalidade entre aumento da massa de moeda na economia e os níveis de preços. Assim, o governo deveria ter muita cautela na gestão do volume de recursos à disposição das famílias e das empresas, pois isso seria um potencial fator de explosão inflacionária. Lara Rezende se rende à evidência empírica e aponta a conjuntura internacional recente para desmentir esse postulado básico do conservadorismo liberal. O exemplo da política monetária adotada pelos Estados Unidos desde a crise de 2009 coloca esse modelo de cabeça para baixo. De acordo com o autor:
(...) “todos os modelos macroeconômicos que adotam alguma versão da Teoria Quantitativa da Moeda (TQM) estão equivocados e devem ser definitivamente aposentados. Os bancos centrais aumentaram a oferta de moeda numa escala nunca vista. O Fed, por exemplo, aumentou as reservas bancárias de US$ 50 bilhões para US$ 3 trilhões, ou seja, multiplicou a base monetária por 60, num período inferior a dez anos. A inflação não explodiu, ao contrário, continuou excepcionalmente baixa” (...)
Para ele, a conclusão de que a política monetária foi equivocada e ineficiente não pode ser compreendida apenas como sendo exclusividade dos chamados “críticos contumazes”. Afinal, ele mesmo agora abre suas baterias contra aspectos essenciais daquilo que a corrente que ele integrava ativamente sempre recomendou e implementou. Para tanto, o analista se vale das inovações que surgem na moderna teoria da macroeconomia, colocando em xeque os dogmas conservados e ultrapassados.
(...) “A condução da política monetária estaria assim, há décadas, seriamente equivocada. Esta não é, como poderia parecer, uma conclusão de contumazes críticos da teoria dominante. É o resultado lógico do arcabouço teórico da moderna macroeconomia, que inspira a condução das políticas monetárias no mundo, quando confrontado com evidência empírica dos últimos anos. ” (...)
Lara Rezende avança ainda mais e reconhece que a política de juros elevados, tal como a praticada em nossas terras ao longo das últimas décadas, provoca um efeito contrário ao que pretende. Ele se baseia na experiência norte-americana do “quantitaive easing” (QE) para demonstrar que a adoção de juros elevados provoca, na verdade, um aumento do desequilíbrio fiscal e não contribui para a redução da inflação. Essa intuição vai na contramão de tudo o que tem sido a prática do Ministério da Fazenda e do Banco Central aqui no Brasil. Todos os economistas que gastamos tantas linhas e muita saliva para denunciar tais equívocos durante tanto tempo, agora recebemos a contribuição de alguém muito influente na formação do pensamento do establishment financista.
(...) “O único modelo analítico compatível com a evidência empírica do QE leva à conclusão de que o juro nominal alto sinaliza uma inflação alta, pauta assim as expectativas e mantém a inflação alta. Ou seja, o juro alto, não só agrava o desequilíbrio fiscal, como no longo prazo mantém a inflação alta. ” (...)
Mea culpa, mea máxima culpa
Lara Rezende termina seu ensaio alertando para os riscos políticos de se dar continuidade a essa verdadeira insanidade transfigurada em instrumento de política econômica. Assim, ele faz como que um chamamento à razão para seus pares, atualmente em postos de comando na equipe econômica do governo Temer. Para ele, seria mais do que passada a hora de romper com as amarras do conservadorismo nessa matéria da política monetária e abrir os espíritos para as novidades que flanam pelo resto do mundo.
(...) “Quando o país passa por um delicado momento político e pela sua mais séria recessão em décadas, vale a pena acompanhar, sem ideias preconcebidas, a discussão na fronteira da teoria macroeconômica. O custo do conservadorismo intelectual nas questões monetárias, durante as quatro décadas de inflação crônica do século passado, já foi alto demais. ” (...)
Talvez seja um exagero apostar que tal iniciativa se caracterize mesmo como um ”mea culpa” do financismo. De qualquer maneira, não podemos ignorar movimentos semelhantes efetuados por economistas de renome na seara internacional e mesmo mudanças de abordagem oficial de instituições multilaterais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. É possível que o artigo de Lara Rezende caminhe no mesmo sentido. Só o tempo dirá - aguardemos as repercussões.
Estamos longe de alguma ruptura desse movimento internacional com os representantes do financismo tupiniquim. Mas não deve passar desapercebido o carão passado pela dirigente máxima do FMI ao nosso Ministro da Fazenda há poucos dias em Davos. Durante a reunião do Fórum Econômico Mundial, Christine Lagarde criticou publicamente a fala de Henrique Meirelles no painel em que ambos participavam, afirmando que “a prioridade das políticas econômicas precisa ser o combate à desigualdade social.”
Apesar de seus aspectos positivos para o debate, o texto do autor não se propõe a avançar em seus questionamentos. Mas não podemos deixar de levantar a indagação relativa aos efeitos desastrosos provocados pelos equívocos reconhecidos por ele. Como a sociedade brasileira poderia cobrar dos responsáveis pelas consequências das medidas da qual Lara Rezende parece se arrepender tão tardiamente? Afinal elas foram responsáveis por desemprego, desindustrialização, dilapidação do patrimônio público, aprofundamento da miséria social, desnacionalização da economia, entre outros.
*Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.