Pedro Cafardo: "Mea culpa, mea culpa, mea máxima culpa"
Classe dominante sabia o que esperar de Jair Bolsonaro quando o elegeu
Pedro Cafardo
Valor Econômico, no dia 15/06/2020
O título acima, em latim, não precisa de tradução. Vem de uma reza tradicional da Igreja Católica, o “Confiteor” (Eu confesso), na qual o fiel reconhece seus erros perante o Criador.
A prática do mea culpa é rara no Brasil. O PT foi e ainda é muito cobrado para fazer autocrítica e reconhecer erros cometidos durante os anos em que esteve no poder, nos governos Lula e Dilma. Nunca os reconheceu, nunca pediu desculpas.
Errar é humano, mas o Brasil precisa adotar a autocrítica
Há hoje, no Brasil, uma extensa lista de entidades e pessoas que precisam fazer o mea culpa pela escolha de 2018, quando a disputa democrática oferecia pelo menos seis ou sete candidatos melhores que o eleito.
Políticos influentes se omitiram na campanha eleitoral e deram um “dane-se” ao país. Oportunistas, muitos deles se elegeram governadores e deputados na sombra do candidato presidencial e agora viraram casaca como se nunca o tivessem apoiado, sem uma palavra de arrependimento e desculpas. Empresários só pensaram no próprio quintal e passaram a aceitar “qualquer um” desde que não fosse do PT. Igrejas se animaram com o tom conservador e as ideias retrógradas. Juízes e procuradores influenciaram o voto sem demonstrar constrangimento. Jornalistas olharam para a economia e acharam que Paulo Guedes, o Posto Ipiranga, com sua política liberal, poderia consertar o país. Mesmo que o presidente continuasse andando por aí propagando teorias bizarras, feito criança inconsequente.
Jornalistas, portanto, não podem fugir de suas responsabilidades. Muitos dos que hoje ferozmente expõem as atrocidades presidenciais deveriam reler com distanciamento crítico o que escreveram no passado recente. Julgaram que, uma vez eleito, o presidente não iria se aventurar no autoritarismo. Que as instituições impediriam aventuras desse tipo e consideraram histéricas pessoas que se mostravam temerosas. É possível mesmo que a sociedade organizada consiga evitar o avanço autoritário para uma ditadura, mas o custo será elevado. Já está sendo.
Na hora de assumir responsabilidade por erros, é instrutivo observar o mapa das votações no segundo turno das eleições de 2018. Está lá, em verde e vermelho, uma impressionante divisão do país em dois: o rico e o pobre. Quanto mais rico, mais verde, e, quanto mais pobre, mais vermelho. Em São Paulo, o Estado mais rico, Bolsonaro venceu em 631 dos 645 municípios. No Nordeste, a região mais pobre, ele perdeu em 98% dos municípios. A faixa verde se estende desde Rondônia, Mato Grosso e Goiás, áreas do próspero agronegócio, até o sul de Minas, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, as regiões mais industrializadas do país. A vermelha domina o Norte e o Nordeste.
Está claro que a escolha do presidente foi responsabilidade das elites brasileiras, do agronegócio à indústria, passando evidentemente pelo setor financeiro. Não há clichê esquerdista algum nessa afirmação que usa a palavra “elites”. Foram, sim, os mais ricos e teoricamente bem informados que elegeram ou trabalharam com mãos e mentes pela eleição do atual presidente. Precisam agora fazer mea culpa.
Ao escolher Bolsonaro, a classe dominante sabia que ele se juntaria ao conservadorismo de Trump, que adotaria comportamento hostil em relação à China, maior parceiro comercial do Brasil, que daria uma banana para as causas ambientais, que desprezaria os povos indígenas, que poria ideologia conservadora nas escolas, que incentivaria a homofobia e o uso de armas pela população, que tiraria recursos da cultura, que a contragosto apoiaria o arrocho fiscal recessivo, que flertaria com o autoritarismo antidemocrático.
O atual presidente tem muitos e graves defeitos, mas também uma qualidade: nunca mentiu sobre suas intenções autoritárias. As elites só não sabiam, mas poderiam desconfiar, que ele adotaria uma política tão desastrosa na área da saúde. Nem que o país enfrentaria a infeliz coincidência de ser liderado por alguém que despreza a ciência e promove a morte em meio a uma pandemia nunca vista em cinco gerações.
Por que o Brasil elegeu um cidadão que agora obriga brasileiros a lutar feito leões para manter a democracia? Por que o eleitorado foi tão incompetente a ponto de minar seu próprio terreno com bombas que agora exigem tempo e energia para a sua desativação?
Assustados, heróis da campanha das “Diretas já” dos anos 1980 emergem da aposentadoria para alertar os mais jovens sobre o perigo iminente. A batalha ideal de hoje seria pela saúde, pelo crescimento econômico, pela distribuição de renda, pela educação universal e por outras causas sociais que possam melhorar a vida dos brasileiros. Mas não, 35 anos depois de ter derrubado a ditadura, cá está novamente a nação lutando para salvar sua democracia.
Mudando de assunto, se o grande e generoso jornalista Alberto Tamer (1932-2013) estivesse vivo, certamente escreveria sobre deflação. O Brasil experimentou, nos dois últimos meses, duas deflações, de 0,31% em abril e de 0,38% em maio. Tamer morou em Paris por uma década na passagem do século e tinha sempre especial atenção para os males da deflação francesa, principalmente por seu efeito recessivo. Não é preciso ser economista para observar, costumava dizer, que quando um país vive em deflação o consumo desaba, pela simples razão de que as pessoas, na expectativa de que os preços vão baixar no futuro, adiam suas compras de produtos não essenciais.
No Brasil, onde a maior ameaça foi sempre o dragão da inflação, ninguém parece preocupado com deflação, até porque é considerada passageira, decorrência da pandemia. Mas se Tamer aqui estivesse certamente soltaria os cachorros para alertar o país sobre os males dessa “inflação negativa”. Em um momento como este, ela é uma overdose recessiva.
Pedro Cafardo é jornalista.