Raquel Faria: “Por que a elite brasileira tem tanto ódio e pavor de Lula?”
Raquel Faria
Os Novos Inconfidentes – 17/10/2019
Se o STF rever a prisão em 2ª instância, no julgamento iniciado nesta quinta (17/10), todos os réus criminais no país, atuais e futuros, serão beneficiados pela decisão; 4.895 presos ficarão livres já. Mas, só se fala em Lula. Faz tempo que a cúpula do judiciário e a própria jurisprudência no país giram em torno do ex-presidente.
O debate sobre o momento da prisão (na condenação em 2ª instância ou depois de esgotados os recursos) rola no STF desde a promulgação da Constituição há 30 anos. Só agora a corte vai tomar uma posição definitiva, pressionada pela atitude de Lula de desafiar a Justiça e recusar o regime semiaberto a que tem direito.
Para não esticar a corda, o STF vai reavaliar a jurisprudência que adotou em função do mesmo Lula em fevereiro de 2016. Àquela época, ao avaliar um habeas corpus, a maioria dos ministros julgou que a prisão em 2ª instância era constitucional. E esse entendimento permitiu a detenção do ex-presidente em meados do ano passado, após o TRF4 confirmar sua condenação no caso do triplex do Guarujá.
Não dá para ignorar, depois dos vazamentos do Intercept, que a prisão de Lula foi a grande motivação da Lava Jato, razão mesmo de sua existência e do apoio social recebido. O ex-presidente foi escolhido como paradigma da corrupção nacional. Até brasileiros que sempre toleraram o ‘rouba mas faz’ passaram a cobrar punição exemplar para o petista. Puni-lo e afastá-lo da política virou obsessão de magistrados, grupos políticos, procuradores, empresários, classes médias.
A Lava Jato não criou o antilulismo; apenas liberou sentimentos latentes. Aos olhos da elite, Lula nunca deixou de ser o asqueroso ‘sapo barbudo’ da famosa expressão de Brizola. Os antilulistas só engoliram o sapo, em 2002, por força das circunstâncias: ele ia ganhar a eleição de qualquer jeito e então se compôs o pacto simbolizado por José Alencar, o vice capitalista da chapa petista. Na primeira chance, quando turbulências internacionais derrubaram a cotação de commodities e do Real, antilulistas promoveram a queda de Dilma e PT, abrindo alas para a prisão de Lula.
A questão crucial, não resolvida, é o motivo dessa ojeriza. Urge achar uma resposta já que o ex-presidente vai sair da cadeia alguma hora, talvez em breve. E deve continuar na ativa. Se as grades da cela da Polícia Federal não conseguiram contê-lo, por que ele se recolheria às sombras após voltar às ruas? Difícil imaginar que Lula livre não tenha progonismo político. A obsessão antilulista terá que ser enfrentada, ou não haverá paz no país.
Uma hipótese: a ojeriza a Lula reflete uma rejeição às políticas de inclusão social de seu governo. Um sentimento arraigado que remonta ao pavor da casa grande pela senzala. Uma rejeição ancestral e profunda das elites aos mais pobres, similar ao preconceito dos brancos pelos negros na África do Sul. Lula está associado no inconsciente coletivo ao Zé Povinho que se beneficiou de seus programas de renda como o Bolsa Família.
Uma evidência de que o antilulismo espelha o fosso social brasileiro: a desigualdade voltou a aumentar no país após a explosão do ódio ao ex-presidente. Está no maior nível desde o início da pesquisa PNAD pelo IBGE, segundo divulgado nesta quarta. Não por acaso, a economia padece com a recuperação mais lenta de sua história exatamente pela fraqueza da demanda: povo com menos renda gasta menos com consumo.
Ninguém precisa gostar de Lula. Mas, todos precisam aceitar a inclusão social que ele personificou. A não ser que a elite nacional desista do crescimento da economia (e dos próprios ganhos), ela vai ter que superar o seu pavor ancestral da senzala e assimilar o Zé Povinho, ainda que tapando o nariz.
Raquel Faria é uma jornalista mineira, criadora da rede Os Novos Inconfidentes.