Renato Janine Ribeiro: “A insensibilidade e o desdém com o sofrimento dos mais pobres é o caldo de cultura da corrupção”

06/07/2015 | Cultura política

Folha de S.Paulo – 02/07/2005

Ninguém pode ter certeza se o governo conseguirá ou não recuperar-se do desgaste que vem sofrendo. Mas quero colocar alguns pontos de princípio, sem os quais o debate sobre a corrupção fica pobre -porque um autêntico debate sobre a corrupção nunca trata apenas da corrupção.

O movimento abolicionista galvanizou a sociedade brasileira quando convenceu a opinião pública de que a escravatura não fazia mal apenas aos negros. Ela corrompia a sociedade inteira. Uma peça como "O Demônio Familiar", de José de Alencar, mostra-o bem. Os negros sofrem na pele, mas o desprestígio do trabalho faz com que toda a sociedade escravagista gravite em torno não de uma ética do trabalho, mas do sonho com o parasitismo. Há um mal físico e há um mal moral.

Isso vale para a sociedade brasileira atual. Algo nos corrompe: a injustiça social. Ela é tão entranhada que ouvi, dias atrás, empregadas domésticas aliviadas por terem trabalhado, sem registro, seis meses: isso "não sujou" suas carteiras de trabalho, disseram elas. Perderam meio ano na contagem para a aposentadoria e, mesmo assim, não se sentem prejudicadas! A iniqüidade continua presente em nossos costumes.

O que tem isso a ver com a corrupção? Esta não é apenas o furto de um bem. Não podemos reduzir a corrupção a uma visão superficial que a considera análoga ao furto ou ao roubo (veja-se o insulto tão comum, "político ladrão"). Ela é pior que isso. Vai na jugular do bem comum. Faz troça da coisa pública, da res pública. Arruína os costumes. Prestigia condutas que fazem mal ao outro.

Se em nossa sociedade a miséria coexiste com o luxo, a Daslu com a favela, isso não cria em nós uma indiferença olímpica ao sofrimento alheio? Recuamos para antes de Rousseau, que, 250 anos atrás, "inventou" a compaixão, isto é, a capacidade de alguém sentir a dor que afeta seu semelhante.

Ora, boa parte da iniciação na vida de nossas classes médias e ricas consiste em aprender como não ser tocado pela miséria ambiente. Todos os mendigos são atores. Todos os miseráveis são preguiçosos. Todos bebem. E por isso nada temos a ver com sua condição inumana. Há quem se orgulhe de termos, em São Paulo, a segunda maior frota de helicópteros privados do mundo. Mas, quando o "New York Times" noticiou isso, seu repórter Simon Romero estava chocado. Como pode haver tanta insensibilidade, ele me perguntou. Pois é.

Minha tese é que a insensibilidade ao sofrimento dos mais pobres, laboriosamente construída ao longo de cinco séculos, é o caldo de cultura para a corrupção. O desdém pela pobreza nos torna uma sociedade viciada. Como valores éticos poderão vicejar nesse terreno?

Daí que só o combate frontal à injustiça social poderá enfrentar a corrupção. Tudo o mais serão meras palavras, muitas delas ingênuas, algumas hipócritas. E quem tem condições de travar esse combate?

Gostemos ou não, o partido que mais tem condições de enfrentar de frente a injustiça social é o PT (ao qual não sou filiado). Ele tem falhas. Quando era oposição e fiel a seus valores de sempre, não se preocupou com a governabilidade. E, depois que se mostrou responsável, governando cidades, Estados e, finalmente, o país, suspendeu alguns de seus valores -não se sabe se temporariamente ou se para sempre.

Ele vive, como todos os que querem melhorar o mundo, dividido entre o radicalismo nem sempre responsável e a responsabilidade pouco radical. Mas é o partido mais apto a apontar, hoje, para a redução da iniqüidade no Brasil. Outros grandes partidos se acomodam com a injustiça ou, pela composição de suas bases, têm políticas menos empenhadas na luta contra a desigualdade. É claro que, se há corrupção no PT, ela deve ser apurada, mas também é verdade que ele é o partido mais afeito a discussões sérias, lavando sua roupa suja com freqüência -e mesmo em público.

Lembrando o título de um clássico de Barrington Moore sobre as bases sociais da democracia e da ditadura, temos de discutir a corrupção à luz dos seus fundamentos na sociedade. Resumindo, a corrupção só poderá ser controlada se resolvermos a injustiça social, e o PT é quem melhor sinaliza nesta direção, hoje.

Para isso, e para recuperar-se politicamente, é preciso que o governo, na reforma ministerial, firme a agenda reformista de centro-esquerda que foi aprovada pelos eleitores, dialogando com todos os setores da sociedade que queiram e possam assumir o mix de decência e justiça social. Isso não é fácil. Exige renunciar ao que é inviável na esquerda e rejeitar o que é iníquo na direita. Mas, para lembrar a antiga Grécia, a arte de governar, como a do médico, consiste em efetuar as dosagens adequadas para a krisis.