Roberto Andrés: “Belo Horizonte: Sob os pés, uma caixa d’água”
Jornal O Tempo – 04/02/2016
Entre as muitas contradições da criação de Belo Horizonte, está a das águas. Um dos motivos para a escolha do local da nova capital era a abundância de nascentes e córregos, mas eles foram solenemente ignorados pelo projeto urbano. A grande movimentação de terra assoreou córregos e tornou a cidade por muito tempo um lamaçal. O traçado geométrico das ruas fez dos cursos d’agua seres alienígenas, que passavam pelo meio dos lotes, tornando difícil a presença do seu leito natural e expondo as moradias às enchentes. O desmatamento das cabeceiras desprotegidas minou nascentes que pouco antes eram fartas.
O resultado é que, 10 anos após a inauguração, Belo Horizonte ainda era uma cidade vazia mas já começava a faltar água. Córregos que corriam limpos e com peixes, em uma relação harmoniosa com o antigo arraial, estavam poluídos. A maneira truculenta e estúpida com que se lidou com o arraial – a proposta surrealista de reassentamento era “devolver” os moradores para seus “locais de origem” – se replicava com as águas.
Longos debates travaram os engenheiros da comissão construtora para decidir qual sistema de esgoto adotar. Em um lampejo de bom senso, optaram pelo chamado Separador, com as águas fluviais e o esgoto em redes separadas. Decisão inócua, pois na pressa da inauguração, com as obras atrasadas (qualquer semelhança com a atualidade é mera coincidência), os esgotos foram jogados nos cursos d’água mesmo, o que era mais barato e fácil e ocorre até hoje em boa parte da cidade.
Estas e muitas outras histórias são contadas no livro Rios Invisíveis da Metrópole Mineira, do geógrafo Alessandro Borsagli. O trabalho primoroso de pesquisa traz em detalhes a vida e a morte de personagens cujos nomes hoje poucos conhecem, mas que estão sob nossos pés: Bonsucesso, Cercadinho, Piteiras, Pintos, Leitão, Acaba Mundo, Serra, Cardoso, Navio, Taquaril, Freitas, Olaria, Cafundó, Ferrugem, Tejuco, Pastinho, Lagoinha, Mata, Horto, Britos.
Nos termos do autor, Belo Horizonte não foi um plano urbano, mas político. E a relação do poder público com as águas também, sempre obedecendo à lógica das inaugurações apressadas, da ausência de um pensamento sistêmico e da repetição de erros de longo prazo que oferecem sucesso no curto prazo.
O que o livro mostra, ao traçar uma linha histórica, é que todas as supostas soluções para os “problemas das águas urbanas” nunca solucionaram nada – ao contrário, agravaram os problemas. A canalização dos córregos impede a absorção da água pelo solo e acelera a chegada nos fundos dos vales. A cada nova administração, a promessa de uma nova obra era sucedida por uma enchente maior e mais danosa. Tudo com ares de progresso, pela aposta no esquecimento e no cinismo.
Cinismo que, nos anos de chumbo, virou escárnio. Os córregos e ribeirões, que até a década de 1940 eram utilizados, em seus trechos limpos, para lazer e recreação, foram se tornando inimigos da cidade – até que os militares decidiram fazer deles verdadeiros vilões a serem exterminados.
Para divulgar as obras de cobertura do córrego do Leitão, transmitia-se nos cinemas de BH um vídeo (veja abaixo) sobre um Leitão que era muito sujo e que não respeitava ninguém. Impresso com o slogan “O Leitão entrou pelo cano. Ele mereceu”, o material dava a entender que a sujeira do córrego era congênita, e não resultado do esgoto jogado nele pela cidade.
As obras eram inauguradas por autoridades que marchavam solenes sobre o asfalto novinho – e o rio apagado. Um caso notável é o da barragem do Acaba Mundo, onde hoje é a Praça JK, que foi enchida com caminhão pipa para ficar vistosa na inauguração e ameaçou ceder dois dias depois, tendo de ser esvaziada às pressas para encher de lama a novíssima Avenida Uruguai.
Os governantes de hoje se opuseram aos governos militares, mas os expedientes são os mesmos. Cobrem o principal rio da cidade com o nome cínico de Bulevar e anunciam a cada ano novas obras, que as empreiteiras amigas agradecem mas que não trazem as soluções verdadeiras: recuperar as nascentes, limpar os córregos, criar parques lineares que absorvam as cheias, assumir que as águas existem e que ou aprendemos a conviver com elas ou a vazão nas torneiras vai diminuir na mesma medida em que as enchentes vão aumentar.
Barqueiros e pequenas embarcações no leito natural do Ribeirão Arrudas no final da década de 1920, na altura da Villa Esplanada
Ribeirão Arrudas em leito natural na década de 1910, suas va?rzeas e suas matas a jusante do Parque Municipal. Ao fundo a ponte da Avenida Araguaia, atual Francisco Sales
Supressão da mata ciliar e canalização do ribeira?o Arrudas no Parque Municipal, em 1927
Inauguração da Avenida Uruguai, em 1973, com uma marcha firme sobre o asfalto novinho, e o córrego apagado