Roberto Leher: “Vouchers educacionais e a privatização da educação pública”
Publicado em Carta Maior, no dia 24 de janeiro de 2020 | Por Roberto Leher*
Créditos da foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo
Após a ode à Goebbels realizada pelo “melhor” Secretário de Cultura que o país já teve, conforme a avaliação de Bolsonaro, os neoliberais brasileiros se apressaram na difusão de um incrível contorcionismo verbal: é dito que “a agenda econômica do governo é perfeita, irretorquível mesmo”, mas os arroubos verbais, as manifestações histriônicas de afinidade com os valores e formas de agir fascistas e a pauta de costumes por vezes atrapalham a implementação das contrarreformas necessárias para pavimentar o caminho do céu dos lucros corporativos e, dialeticamente, do inferno do desmanche do mundo do trabalho. O comportamento político do bloco no poder lembra o filme de Shyamalan: ‘Fragmentado’, 2016. Somente assim dá para entender as dissociações entre o econômico e o político proclamadas pelos dirigentes partidários, pelos editoriais dos grandes jornais, inclusive pelo Financial Times, e das vozes proprietárias do PIB.
A agenda econômica expressa materialmente a autocracia burguesa. A pauta “Pátria, religiosidade e família” não se sustenta sem a inclusão da palavra “mercado”. Foi para isso que Dilma Rousseff foi destituída e Bolsonaro, afinal, foi apoiado pelo estado maior do capital. A autocracia é uma síntese dos fundamentalismos de mercado e religioso, ambos particularmente hostis à ciência e à cultura secularizada. Todo esse arcabouço ideológico é encouraçado pelo endurecimento do aparato repressivo – em que o excludente de ilicitude para a Garantia da Lei e da Ordem e as ameaças de um novo AI-5 são exemplos preocupantes.
Nada mais simbólico, nesse prisma, do que o convite ao ministro Guedes do templo do ultraneoliberalismo e da direita, Mont Pelerin Society, contando com a participação de centros de pensamento da extrema direita como Heritage Foundation, significativamente antecedendo sua ida a Davos. A escala foi providencial para um duplo movimento: a sinalização da direita econômica mundial de que o governo Bolsonaro tem seu apoio e, também, para que Guedes pudesse manifestar sua crença nos valores políticos e econômicos da ‘Internacional da direita’, justificando, assim, o apoio desses think tanks.
A agenda econômica neoliberal, devastadora para os ‘não possuidores de bens’, vem sendo implementada a partir da destruição do que restou de direitos sociais na Constituição de 1988, e isso requer o apoio da bancada da bíblia e de outras frações fundamentalistas, assim como da bancada da bala, entre outras. Foi com essa base parlamentar que o impeachment de Dilma e a Emenda Constitucional n. 95/2016 foram aprovados.
Mais importante do que a matemática dos votos no Congresso, contudo, é a difusão de um senso comum ultraneoliberal, no qual a ideia de sociedade seja colocada nos porões do museu de antiguidades ideológicas. O senso comum assim pensado naturaliza a ideia de que existem, tão somente, indivíduos ‘empreendedores’ em luta no mercado. No caso dos “de baixo”, esta categoria compreende os entregadores de alimentos por aplicativo, os vendedores de bebidas nos sinais e toda sorte de trabalhadores precarizados. Os de formação mais sofisticada, em termos simbólicos, devem ser socializados com base no individualismo possessivo. Evidentemente, os que conseguem mostrar seus dentes no mercado são os considerados mais aptos, os vencedores, os líderes da sociedade aberta, isto é, da constelação de indivíduos que conformam a população.
Sentidos da defesa dos vouchers pelo governo Bolsonaro
O pensamento neoliberal (Hayek, Friedmann, Mises) e a agência política das fundações de extrema direita (Atlas Network, Cato Institute, Heritage) há tempos adotam a estratégia de incidir sobre a educação buscando desconstruir o conceito liberal democrático, dito construtivista, herdeiro do Iluminismo e da Revolução Francesa. O propósito é extinguir o público, o comum, e sobretudo, os direitos sociais garantidos como dever do Estado. Para Hayek a escola pública é nefasta pois, ao se referenciar na cidadania, retira dos estudantes suas pulsões individualistas. Somente a escola privada pode educar corretamente as crianças e os jovens, exacerbando o individualismo feroz necessário ao mercado.
Esse é o sentido profundo da defesa por Paulo Guedes, em Davos, da generalização dos vouchers educacionais, inicialmente, é preciso grifar, na educação infantil (pois implementada a educação infantil nos municípios, as vertentes fundamentalistas das igrejas pentecostais e neopentecostais, entre outras, se encarregarão de difundir para o restante da educação básica). A perspectiva é que os recursos da educação deixem de ser utilizados pelo Estado, especialmente pelos municípios e pelos Estados e Distrito Federal e sejam repassados diretamente aos pais e responsáveis pelos estudantes. Munidos de seu voucher (cupom, cheque), os pais podem escolher “livremente” a escola que julgarem mais adequada aos seus filhos. Com isso, paulatinamente, as escolas públicas seriam extintas e a educação básica, atualmente, majoritariamente pública, passaria para a gestão privada. Esse objetivo está subjacente à protelação, por parte do MEC, da nova Lei do FUNDEB.
Melhor do que o FUNDEB, na ótica de Guedes, é distribuir os recursos por meio de vouchers, pois tal medida: a) irá lastrear, como outrora o FIES, as corporações educacionais que estão ingressando na educação básica, muitas delas associadas aos círculos familiares e econômicos do ministro; b) contemplará as confissões religiosas fundamentalistas que, com os cheques, poderão criar suas próprias escolas fundamentalistas; c) esvaziará os sindicatos da educação, as escolas assim financiadas terão professores precarizados e sem sindicalização e d) contemplará os adeptos de Steve Bannon e seus propagadores locais, pois, a difusão de escolas fundamentalistas assegurará um público cativo (superior a 45 milhões de estudantes) para a “pós-verdade”, os fatos alternativos e a concepção de que a ciência é uma ficção verbal – servindo para difundir noções como o terraplanismo, o negacionismo de mudanças climáticas, o nazismo como uma ideologia da esquerda – e, genericamente, para combater a vida secularizada e laica, por meio da ofensiva contra o dito marxismo cultural. E, sem dúvida, para criar disposições ideológicas compatíveis com o trabalho degradado, flexível, “uberizado”, intermitente, terceirizado, nos termos das contrarreformas trabalhista e da previdência: o conceito de cidadão é apagado da vida social em favor da noção de consumidor. Esse é o projeto de futuro em curso.
Os vouchers foram introduzidos no Chile pelos ‘Chicago boys’ e pelo FMI na sanguinária ditadura Pinochet, gerando selvagens desigualdades educacionais. O vigoroso e emocionante movimento dos pinguins (2006) foi um movimento contra os efeitos das desigualdades provocadas pelos cupons que sucatearam as escolas públicas e impulsionaram a privatização: mais de mil escolas privadas foram criadas desde a introdução dos vouchers. Em 1980, as matrículas privadas da educação básica correspondiam a 15% do total, atualmente mais da metade dos estudantes estão em escolas privadas.
As famílias com mais recursos utilizam o cupom apenas para complementar o pagamento de escolas privadas de maior custo. As escolas particulares voltadas para o mercado de maior poder aquisitivo são seletivas, aceitando, a partir de exames, apenas os estudantes com formação mais completa. A imensa maioria do povo tem de se contentar com escolas que cobram apenas o valor do cupom, quase sempre as públicas. O montante arrecadado por estas escolas é insuficiente para assegurar uma escola pública capaz de prover uma vigorosa cultura científica geral a seus estudantes. O apartheid educacional se institucionaliza: é como se as escolas que somente recebem os vouchers se convertessem em “bantustões”. Junto com o injusto sistema previdenciário, a situação da educação básica no Chile contribuiu, muito, para os multitudinários protestos sociais de 2019.
O governo Bolsonaro trabalha nessa perspectiva. É de sua natureza. Com os vouchers pode contemplar os fundamentalistas do mercado e os fundamentalistas ideológicos. E montar robusta base eleitoral para o seu projeto de poder e, claro, desses setores. Por isso, a imediata constituição de uma frente em prol do público não mercantil é um imperativo da realidade. Que o ano letivo de 2020 tenha início com essa convocatória!
*Roberto Leher é um pesquisador brasileir, professor e ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.