Rodrigo Martins: O medo das urnas é uma barreira à campanha "Diretas Já"
Carta Capital 26/05/2017
Enquanto Michel Temer se debate no cargo, o Parlamento insiste em levar adiante as discussões das reformas trabalhista e da Previdência, rejeitadas pela ampla maioria da população, além de aquecer os conchavos em torno de candidaturas indiretas. De nada adiantaram os ruidosos protestos que tomaram as ruas das principais capitais do País nos últimos dias, a pedir o afastamento imediato do presidente e exigir Diretas Já. Da mesma forma, as pesquisas de opinião, a indicar que nove em cada dez brasileiros desejam escolher o próximo presidente ainda neste ano, são ignoradas.
Alheia ao clamor popular, a base governista abusa das manobras legislativas para evitar a aprovação de uma emenda constitucional pelas eleições diretas. Uma proposta nessa direção, elaborada pelo deputado Miro Teixeira, da Rede, está em debate na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, seja qual for o motivo da vacância do poder: renúncia, impeachment ou cassação do mandato pelo Tribunal Superior Eleitoral. Para evitar que o texto começasse a ser analisado na terça-feira 23, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), apressou-se a dar início à ordem do dia no Plenário, o que obrigou o colegiado a encerrar a discussão uma hora depois do início dos trabalhos. No dia seguinte, o peemedebista Rodrigo Pacheco, presidente da CCJ, incumbiu-se de segurar a pauta.
“Os aliados de Temer sabem que, se a emenda das diretas for a votação, será aprovada. O desgaste político de quem se colocar contra será enorme”, afirma o deputado Alessandro Molon (Rede), autor do primeiro pedido de impeachment protocolado contra o peemedebista após a divulgação do indecoroso diálogo entre o presidente da República e o empresário Joesley Batista, dono da JBS. “A última coisa que o Brasil quer é ver o Congresso, com grande número de parlamentares sob suspeição, pelas graves denúncias que pesam contra eles, escolher no lugar do povo o novo presidente.”
O desalento só não foi maior graças a uma distração da base governista na CCJ do Senado. Aproveitando-se da ausência de três senadores peemedebistas, a oposição conseguiu aprovar uma inversão da pauta e dar prioridade à Proposta de Emenda à Constituição apresentada por José Reguffe (PDT), a prever eleições diretas quando os cargos de presidente e vice ficam vagos até o final do terceiro ano do mandato. Ao cabo, o relatório do senador petista Lindbergh Farias foi lido, primeiro passo para que o projeto seja votado no colegiado. A previsão é de que isso ocorra na próxima semana. Se aprovada na comissão, a PEC seguirá para o Plenário. Ainda assim, caberá ao presidente da Casa, o peemedebista Eunício Oliveira, colocá-la em votação.
No meio jurídico, há divergências sobre a conveniência de promover a mudança na Constituição em um cenário de grave instabilidade política. A rigor, não existe, porém, um sólido obstáculo legal à aprovação da proposta. Conforme o disposto no parágrafo 4º do artigo 60 da Constituição Federal, somente são vedadas as deliberações de emendas que tendem a abolir a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; ou os direitos e garantias individuais. “Não há, portanto, qualquer violação às cláusulas pétreas”, avalia Fábio Konder Comparato, professor emérito do Largo de São Francisco, a Faculdade de Direito da USP.
Embora não veja entraves jurídicos à realização de eleições diretas, Comparato nutre dúvidas sobre a capacidade de o País se reerguer. “Na verdade, vivemos o sintoma de uma doença política, aqui instalada desde os primórdios da colonização portuguesa. Trata-se, basicamente, da dominação constante da soberania nacional por dois grupos associados: os potentados econômicos privados e os grandes agentes estatais, permanecendo o povo, desde sempre, alheio a esse conchavo.”
Para o advogado Rafael Valim, professor de Direito da PUC de São Paulo, a teoria das cláusulas pétreas “veda apenas a redução ou o amesquinhamento de direitos fundamentais”. Não existe – nem poderia existir – limitação para a ampliação de direitos. “O que não se pode é restringir o voto universal e secreto. O Congresso não poderia, por exemplo, transformar uma eleição direta em indireta, pois o representante estaria cassando os poderes do representado. É perfeitamente possível aprovar as Diretas sem qualquer ofensa à Constituição.”
O noticiário nativo tem dado ênfase às declarações do advogado Miguel Reale Jr., um dos signatários do pedido de impeachment de Dilma Rousseff. Em entrevista à rádio CBN, o conselheiro jurídico do PSDB afirmou que o Brasil não aguentaria eleições diretas no momento, e que isso iria “conturbar o País” e criar “imensa insegurança jurídica”.
Mesmo entre os que se opuseram à destituição da presidenta eleita, por entenderem que não houve a comprovação de um crime de responsabilidade, sobram desconfianças. “A solução para as crises políticas deve ser encontrada dentro da Constituição, e não fora dela. Já sofremos um trauma enorme com o impeachment ilegal da presidenta Dilma Rousseff, o que interrompeu o ciclo democrático”, diz Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo. “Uma nova ruptura praticamente impele à convocação de uma Assembleia Constituinte. E, na atual conjuntura, o risco de recuo nos direitos assegurados pela Carta de 1988 é muito grande. É mais provável haver retrocessos do que avanços.”
De fato, a Constituição deve servir como um guia para atravessar períodos turbulentos sem rupturas institucionais, e a crise não é um bom ambiente para alterações constitucionais, pondera Valim. O especialista observa, porém, que toda mudança normativa surge de uma necessidade. “Por que se criou a Lei Maria da Penha? Percebeu-se grande número de mulheres vítimas de violência doméstica, e ninguém diz que essa lei é casuística. Toda alteração normativa, da Constituição a uma simples portaria, é motivada por um dado da realidade, um problema que desperta a atenção da sociedade. Tampouco se pode falar em exceção constitucional, porque a emenda valerá para todas as situações em que houver vacância do poder.”
Professor de Direito Econômico e Economia Política da USP, Gilberto Bercovici acrescenta que, na prática, a Constituição já não está mais em vigor. “Acho engraçado, porque não vimos esse formalismo todo no impeachment de Dilma”, ironiza. “Além disso, a emenda dos gastos públicos suspendeu a Constituição por 20 anos, pois impede a efetivação dos direitos assegurados em 1988. Na verdade, chamar eleições diretas é a única forma de resgatar o Estado Democrático de Direito. Estão impondo um conjunto de reformas que contrariam os interesses do povo, só satisfazem aos grandes agentes econômicos e à mídia.”
Entusiasta das Diretas Já, Gisele Cittadino, coordenadora da pós-gradução em Direito da PUC do Rio de Janeiro, não esconde a perplexidade com os argumentos levantados por Reale Jr. “Dizer que eleições diretas causam insegurança jurídica é um escárnio. O que causa instabilidade são esses golpes sucessivos, um impeachment sem crime de responsabilidade, uma emenda que congela a efetivação dos direitos sociais por 20 anos...”, afirma. “O que se propõe é aprovar uma emenda para realizar eleições diretas. No momento em que o Congresso aprovar a PEC, o texto constitucional passará a prever esse procedimento. Não haverá, portanto, qualquer desrespeito à Constituição.”
O maior obstáculo às Diretas Já é político, e não jurídico, enfatiza o deputado Alessandro Molon. “Por isso, vejo com enorme preocupação as articulações em torno de candidaturas pela via indireta. Buscam a todo custo impor um acordão.”
No noticiário, sobram rumores do apoio desse ou daquele partido aos virtuais candidatos em uma disputa indireta. Ex-ministro de FHC e Lula, filiado ao PMDB, Nelson Jobim emergiu na banca de apostas como o nome mais palatável às maiores agremiações, embora ele próprio negue a disposição de concorrer ao mandato-tampão de pouco mais de um ano.
Líder do PT na Câmara, Carlos Zarattini enfatiza que o partido não participa de tais articulações. “Já nos procuraram pessoas do PMDB, do PSDB, do DEM, do PSB. Todo mundo quer conversar, mas o PT tem uma linha clara: defender as eleições diretas e suspender a votação dessas reformas, para a abertura de amplo processo de negociação na sociedade”, explica. “Em toda crise, fala-se que Lula, FHC e Sarney precisam sentar para costurar um acordo, mas não é um acerto entre três ex-presidentes que vai resolver os problemas do País. A crise que vivemos só será resolvida com mais democracia.”
De acordo com Zarattini, a bancada do PT deve se reunir no início da próxima semana para debater uma proposta de antecipação de eleições gerais, não apenas para o cargo de presidente, mas também para a renovação do Congresso. “Isso demanda um grande pacto político, mais complicado de ser costurado, é verdade, mas seria muito mais benéfico ao País do que uma eleição para um mandato-tampão”, avalia. Seja como for, o partido promete não abandonar a proposta das Diretas. “O Congresso tem legitimidade porque foi eleito pelo povo, mas é complicado confiar uma tarefa dessa magnitude a um colégio eleitoral tão restrito, 513 deputados e 81 senadores.”