Rodrigo Perez Oliveira: “Bacurau nos deu uma má notícia”
Bacurau usou o registro ficcional para produzir verossimilhança a partir do absurdo. Ao fazê-lo nos deu uma péssima notícia: temos a violência como gramática comum e todos nós, bem lá no fundo, somos um pouquinho Bolsonaro
Publicado em Revista Fórum, no dia 24 de setembro de 2019 | Por Rodrigo Peres Oliveira
Bacurau, filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, lançado no circuito brasileiro neste ano de 2019.
Nas últimas semanas, a bolha da oposição civilizada e intelectualizada ao bolsonarismo não falou em outra coisa. Bacurau pra cá e Bacurau pra lá. O barulho se justifica. O filme é uma obra prima, imperdível, provocador.
Uma breve síntese do enredo. Se você ainda não assistiu Bacurau, pode continuar lendo mesmo assim. Deixe se levar por essa histeria anti-spoiler, não. Você consegue ser maior que isso.
Tudo se passa em uma cidade fictícia localizada no oeste de Pernambuco. Arranjados com o prefeito da região e com apoio logístico de brasileiros do sul, um grupo de gringos resolve ir caçar gente no sertão do nordeste brasileiro. É o tesão estadunidense pela arma, pelo tiro, pela caça esportiva. Só que ao invés de irem caçar elefante na África, os gringos vieram ao Brasil matar pessoas.
Acontece que a comunidade, que já contava com um sistema de autoproteção relativamente organizado (milícias), consegue se defender. Os gringos são mortos, têm suas cabeças cortadas e expostas em praça pública, sob os cliques dos smartphones e tablets dos moradores locais.
Vi na blogsfera das redes sociais pelo menos três reações diferentes ao filme:
1°) Alguns receberam Bacurau com animação e entusiasmo, acreditando se tratar de um convite à resistência armada “dos de baixo”. Essa interpretação foi inspirada pela velha fetichização do povo que certa esquerda ainda insiste em endossar, fazendo dos pobres uma espécie de bom selvagem rousseauniano. Pobres armados seriam capazes de construir o reino da justiça, de realizar a utopia na terra. Como se pobres fossem sempre virtuosos e jamais violentassem outros pobres, como se os “pobres” constituíssem grupo coeso e irmanado pela comunhão da experiência de pobreza. É de um marxismo de anteontem.
2°) Outros criticaram o filme exatamente pelos mesmos motivos que arrancaram aplausos do primeiro grupo. Bacurau seria um elogio à violência popular, o que poderia incitar comportamentos violentos na sociedade civil. É uma leitura inadequadamente literal que não foi capaz de captar o implícito tão valorizado nas obras do Kleber Mendonça Filho. Lembro que isso aconteceu também com Aquarius, lido erradamente como uma crítica à gentrificação das grandes capitais brasileiras. Aquarius ironiza as prioridades da classe média.
3°) Também houve aqueles que se incomodaram com aquilo que acreditaram ser a caricaturização do nordeste e do seu povo, como se Bacuarau evocasse a simbologia do Arraial de Canudos. Não acho que essa seja uma questão central para o filme. De fato, o que estava em tela era uma comunidade do nordeste, mas poderia ser uma favela do Rio de Janeiro ou uma tribo indígena da Amazônia e o argumento não seria prejudicado. O único momento do filme que o enredo joga com as dicotomias nordeste X sudeste/ sertão X litoral é quando os gringos debocham do casal de cariocas que reivindicam o estatuto de uma brasilidade superior pelo simples fato de que nasceram numa região “mais rica” do Brasil. Os gringos dizem “vocês não são brancos” e depois, simplesmente, matam o casal carioca, do mesmo jeito como estavam matando os moradores de Bacurau. Ou seja: para os gringos, somos todos mestiços, estamos todos na vala comum. É um momento interessante na economia interna da narrativa, mas curto, ligeiro e de importância secundária.
Penso mesmo que a discussão fundamental levantada pelo filme é outra.
Bacurau é a distopia neoliberal brasileira, é a caricatura do Estado Mínimo manifestado nos trópicos.
Uma comunidade completamente abandonada pelo poder público que aprendeu a resolver seus problemas com suas próprias estratégias, o que vai desde a organização de milícias até a autonomia para decidir comer alimento estragado ou usar medicamento tarja preta sem prescrição médica. É a ideia de liberdade liberal levada ao nível do grotesco.
Bacurau é palco para uma guerra travada entre particulares. A violência é potência afrodisíaca. Em algum momento das quase duas horas de filme, todos gozaram. Os gringos gozaram quando matavam brasileiros reduzidos à condição de animais. Os moradores da Bacurau gozaram quando mataram os gringos.
O público gozava quando um gringo tombava, tendo sua cabeça estourada e seu corpo esfaqueado.
Assisti Bacurau numa sala localizada dentro de um dos Campus da universidade onde trabalho. Em tese, o público é formado por pessoas progressistas, de esquerda e que não votaram em Jair Bolsonaro nas eleições do ano passado.
Bacurau nos fez gemer de prazer a cada gota de sangue de gringo derramada.
Se alguém tentasse chamar o público à racionalidade (ninguém tentou), perigava ouvir: “Tá com pena do gringo? Leva pra casa!”.
Bacurau usou o registro ficcional para produzir verossimilhança a partir do absurdo. Ao fazê-lo nos deu uma péssima notícia: temos a violência como gramática comum e todos nós, bem lá no fundo, somos um pouquinho Bolsonaro.
*Rodrigo Perez Oliveira é historiador, formado na educação pública das primeiras letras ao doutorado. Atua como professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia, o autor pesquisa a história do pensamento político brasileiro e os usos do passado no texto historiográfico e nas narrativas políticas, temas que foram explorados nos livros “As armas e as letras: a Guerra do Paraguai na memória oficial do Exército brasileiro” e “Conversas sobre o Brasil: ensaios de síntese histórica”.