Rosana Pinheiro-Machado: “O que a vitória de Donald Trump pode ensinar à esquerda global”

12/11/2016 | Política

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No Brasil e no mundo, o capitalismo atua de forma muito mais inteligente do que no passado. Com isso, a subjetividade política dá lugar ao niilismo

Carta Capital – 09/11/2016

Após as eleições municipais, velhos clichês voltaram à tona, como o que o povo brasileiro não sabe votar porque é ignorante e manipulado. A coisa fica mais complexa quando vemos que essa fórmula, em tese, não se aplicaria para o eleitorado do país mais rico do mundo que votou em Donald Trump, nem para a classe trabalhadora britânica, que virou pró-Brexit.

Se não quisermos um Jair Bolsonaro para 2018, é fundamental que mudemos radicalmente nossa postura, especialmente em relação às camadas populares.

Tal como no início do século XX, a onda conservadora é uma reação global às diversas insurgências de massas por mudanças radicais que caracterizaram o século XXI.

O quadro piora quando pensamos que as esquerdas e o campo progressista de um modo geral estão muito mais fragmentados hoje, em comparação com a onda fascista do século passado.

O cenário do século XXI, portanto, não é uma cópia do século XX. Da China ao Brasil, passando pelas potências do norte global, o neoliberalismo atual se caracteriza justamente pelo esvaziamento da vontade política e democrática em meio ao pleno desmonte da classe trabalhadora.

O capitalismo se transformou e atua agora de forma muito mais molecular e inteligente do que no passado. O resultado disso é que a subjetividade política é substituída pelo niilismo político e a aversão à política institucional.

Essa revolução subjetiva, em curso no mundo todo, é o que precisamos entender, pois ela esvazia o senso de coletivo e o aniquila a identidade de classe trabalhadora.

No lugar deixado no vazio do coletivo e do abandono político, entram em cena, além do ódio e a rejeição política, os valores sobre o mérito e a recompensa individual, a gestão, a aspiração social, os prazeres do consumo e toda a racionalidade do indivíduo empreendedor de si - o self empreendedor, como alguns autores definem.

A racionalidade de mercado, as igrejas com discurso empreendedor, entre outras esferas, ocupam espaço nesses lastros deixados no vácuo democrático do neoliberalismo.

Escutava na Inglaterra um homem da região mais pobre do país apoiar fervorosamente o Brexit enquanto gritava: “eu voto SIM porque eu odeio política”. Essa frase, aparentemente sem sentido, é completamente lógica e sintomática.

Empobrecida, sem direitos, enfrentando crises econômicas e entregue às traças, a classe trabalhadora está totalmente vulnerável aos discursos totalitários, às respostas fáceis que culpem "os outros" ou, simplesmente, avessa à política “do andar de cima”.

A classe trabalhadora, globalmente, é quem paga a conta neoliberalismo. Ao mesmo tempo, muitas vezes, é quem compra o seu discurso.

Parece-me fundamental entender essa contradição, ao invés de simplesmente encerrar a discussão inferindo a maior parte da população do mundo é ignorante e não sabe votar. 

Há os que votaram no Marcelo Crivella no Rio de Janeiro e há os que anularam. Há os que votaram na saída do Reino Unido da Europa e há quem nem tomou conhecimento do plebiscito. Há quem votou em Trump, mas também muitos não foram votar.

Essa não é uma diferenciação sociológica trivial. Parece-me que, globalmente, existem dois fenômenos diferentes: os eleitores que estão sendo cooptados pela extrema direita e o discurso de ódio e os eleitores que estão completamente indiferentes (os que pensam que é “tudo a mesma m...”).

No Brasil, essa discussão precisa ser colocada em contexto histórico, em que essa classe trabalhadora ao estilo clássico “mineradores ingleses” praticamente nunca existiu. A economia informal manteve-se em maior número do que a formal por muito tempo.

A maior parte dos trabalhadores já nasce trabalhando para si próprio, desregulado e sem direitos sociais: são os camelôs, as diaristas e os “faz tudo”.

Meu ponto é unicamente alertar que a racionalidade neoliberal no Brasil entra muito mais violenta, mais crua e mais selvagem. É o desmonte de um coletivo que talvez nunca tenha existido num sentido marxista mais clássico.

Soma-se a isso, o abandono total do Estado nas periferias, que só aparecendo na hora de bater, matar e chacinar.

As lutas ideológicas pelas classes trabalhadoras no Brasil travadas pelo PT foram sendo abandonadas: o orçamento participativo, caracterizado por organização e debate político comunitário, por exemplo, dá lugar à distribuição de renda, que empodera, mas também reforça um modelo de relação individual, apolítico e que vem junto com políticas ferozes de financeirização das periferias.

Desistiu-se da política de base nas periferias e deixaram-nas entregue às outras forças que conseguem preencher o vácuo da esperança, do conforto e do sonho.

A esquerda não é, por geração espontânea e empatia natural, a porta-voz dos interesses dos mais pobres. Admitir nossa cegueira e se reconectar com a classe trabalhadora e com as periferias é o que precisamos para que não sejamos engolidos pela onda Trump.

A primeira vez que eu mencionei que Bolsonaro era um fenômeno a ser observado, as pessoas riram. Hoje, quando o presidente do país mais rico do mundo é eleito falando que não gosta de mulher gorda e que vai construir um muro para barrar a imigração mexicana, eu acho que poucos teriam firmeza para dizer que uma figura como Bolsonaro é apenas ridícula - e não uma possibilidade real.

Para quem é cooptado pelo discurso de extrema direita, é importante pensar sociologicamente de onde vem tanta raiva. Sempre insisto que chamar o povo de coxinha e fascista não ajuda em nada nessa batalha ideológica que nós perdemos – e perdemos feio.

Nós apenas afastamos essas pessoas de nós – de nossa soberba e superioridade moral – e o jogamos ainda mais para a direita, que, por sua vez as recebem de braços abertos, vendendo sonhos e ódio.

Nós também precisamos falar sobre votos nulos e sobre aqueles que não veem diferença entre Crivella e Freixo, Lula e Bolsonaro, que sabem que suas vidas podem continuar no total abandono da esfera pública, na fila do SUS e na escola sem professores.

Os que entendem que lá para a cima a farra é grande, os acordos são muitos e a vida segue do jeito que dá. No fundo, há um entendimento de que “é tudo briga de branco”.

Não estou falando em lutar pelos votos nulos. Afinal, isso é o que a política tradicional fez a vida toda. Estou falando em entendê-los. Escutá-los.

Falta-nos muita escuta, mas sobram preconceitos de classe que se resumem a dizer que “pobre não sabe votar”, que as pessoas são ignorantes e que funk, igreja e rolezinho são expressões da “baixa cultura”.

Também sobra muita teoria marxista de classe proletária para pouca classe operária no Brasil. Sobra gente se rebatendo para enquadrar “o povo” como “proletários”, “lumpem” e “precariado”.

A periferia não é manipulada, tampouco vítima. São agentes de sua história e têm muito mais senso de realidade sobre a discriminação de classe e de raça que sofrem do que muitos acadêmicos podem imaginar.

Falta entender como as classes populares se organizam coletivamente por meio de redes de troca e solidariedade; sobram modelos pré-fabricados da esquerda tradicional, do aparelhamento, da distribuição de ficha de filiação de partido em pleno rolezinho.

Falta sair da universidade e das redes sociais e conversar com as pessoas, não para doutriná-las, mas para uma única vez na vida escutá-las. Falta entender que a micro política está pulsante nas camadas populares – ela está na fé e no consumo –mas que ela não se cabe nas caixinhas dos manuais de política revolucionária do século XIX.

Tem um mundo amplo e grande a ser negociado e dialogado. É claro que é preciso que a esquerda volte a fazer trabalho de base lá onde ônibus não chega, mas primeiramente é preciso ouvir os próprios movimentos orgânicos da periferia, que talvez não queiram a luta de classe, mas lutem pela a sua arte, sua vida, seu atendimento médico ou mesmo por um poste de luz.

Todos aqueles que nunca precisaram de um poste de luz, e sequer entendem o drama para negociar eletricidade, precisam refletir que a própria luta da esquerda sobre a perda de direitos pode ser pouco apelativa entre aqueles que se sentem destituídos de direitos.

Não podemos perder o bonde da história, nos temos que pegar carona nele.

Os tempos são sombrios, mas também são promissores de novas formas de fazer política, mais horizontais, democráticas e radicais. A luta de classe está lá no consumo popular, na igreja, na vida cotidiana das pessoas que sofrem, mas também amam e se ajudam.

A luta de classes está pulsante e vibrante, e ela emerge justamente nas brechas deixadas pelas contradições de um mercado neoliberal excludente, classista e racista. A política está lá e ninguém melhor do que a periferia para saber de seus interesses. Não é preciso politizar a periferia. A esquerda é que precisa se periferizar.