Saul Leblon, da Carta Maior: “A rua cobra uma resposta crível contra o arrocho”

16/06/2016 | Política

Trata-se de repor o curso da nação no trilho da democracia social. E não apenas de fixar uma lápide exclamativa no acostamento da história.

Carta Maior – 14/06/2016

A resistência democrática consolidou um enorme avanço no dia nacional de luta da última sexta-feira (10/06)

 Com menos de um mês de iniciativas e mobilizações esparsas, as frentes progressistas provaram sua capacidade de articulação, ao realizarem um protesto massivo contra o golpe em todo o país.

 Milhares de pessoas tomaram as ruas do Brasil, com ecos notáveis no exterior e a consolidação de um sentimento que adicionou uma nova legenda ao vocabulário político e cultural da sociedade: ‘Primeiramente, fora Temer’.

 Não é pouco.

Quando a alma de uma nação consegue encontrar seu idioma comum, capaz de traduzir e catalisar sentimentos, demandas, setores, opressões e revoltas novas e velhas, coisas extraordinárias podem acontecer.

 Essa antessala do novo – e como tal, criativa, colorida e ecumênica -  está delineada no Brasil.

 Expressa-se em intervenções ininterruptas, que vazam de manifestações programadas para escrachos espontâneos, de gritos abusados nas ruas e restaurantes, a protestos solenes nos palcos, do funk da periferia a cineastas em Cannes, de torcidas de futebol a balés clássicos, das organizações GLST a chefs de cozinha...

 Basta uma frase impressa em sulfite, guardada no bolso ou na bolsa. 

 Como explicou a atriz Roberta Estrela D’Alva, em reportagem na Folha (‘No calor da hora), este é o novo artigo de primeira necessidade no Brasil pós-golpe: uma folha de sulfite escrito ‘Fora Temer’  -- ‘sempre pode ter uma câmera da rede golpe gravando ao vivo’, diz ela.

 Se antessala está erguida, falta definir a arquitetura do resto da construção renovadora.

 As ruas do Brasil sabem o que não querem.

 O arrocho golpista que uniu a escória política, a plutocracia, a mídia, esferas do judiciário e a rapinagem internacional pretende congelar por décadas o valor real do orçamento público.

 Significa, na prática, impor o Estado mínimo à sociedade através de uma  fórmula de aparente sensatez contábil, da qual se exclui ardilosamente uma variável chave: a tributação do grande dinheiro (operações financeiras de estrangeiros e dividendos, por exemplo) e a progressividade tributária das grandes fortunas.

 Se o ardil se efetivar, calcula-se uma perda anual de gastos –sobretudo nas áreas sociais-- de R$50 bi, comparativamente à manutenção do padrão de crescimento real nos últimos anos. 

 Daí desmonte antecipado e o esvaziamento paralisante de áreas e ministérios marcados para morrer de inanição orçamentária.

 O país deixou claro que não aceita a solução que pretende empurrar a pasta de dente de volta ao tubo da exclusão e da desigualdade.

 Um vazio, porém, ficou patente nos discursos proferidos pelas lideranças ovacionadas nas ruas do país última sexta-feira, como aconteceu com Lula, em São Paulo, aclamado por cerca de 100 mil pessoas na avenida Paulista.

 Falta um arremate à narrativa da luta pela legalidade.

 Falta unificar os pilares da ponte capaz de interligar a retomada do poder pela Presidenta Dilma Rousseff e o day after da nação –sendo que a própria Presidenta admite a necessidade de se repactuar a nação, ou ninguém a governará.

 A incógnita não permanece em aberto por acaso.

 Num certo sentido, ela foi o motor subjacente à encruzilhada que levou o país ao golpe.

 As bases do pacto que sustentou a última década de desenvolvimento desapareceram. 

 O que poderá sucedê-las e, sobretudo, quem acumulará a força e o consentimento necessários para conduzir a negociação do trajeto futuro?

 Enquanto o país crescia havia margem de manobra para se negociar o passo seguinte com o centro gelatinoso, pragmático, fisiológico e essencialmente conservador que sempre predominou no congresso. 

 Ao primeiro sinal do colapso da engrenagem, essa força ‘desfrutável’ sofreu violenta mutação.

 Com agenda própria de negócios, como disse Dilma na mencionada entrevista a Nassif, concluiu sua baldeação para a direita –e a extrema direita--  sob a liderança da expressão mais transparente da escória parlamentar: Eduardo Cunha

 Poderia ter sido diferente?

 Dilma na Rede TV admitiu ter se aliado a pessoas erradas. E Lula, na Paulista, refez os cálculos de 1993, quando afirmou que o Congresso tinha 300 picaretas.

 O ex-presidente acredita que desde então o quórum se ampliou.

 Isso repõe em novas bases de redobrada urgência a incógnita subjacente ao arremate que faltou tanto no discurso do ex-presidente na Paulista, quanto no de Guilherme Boulos, e por certo no de lideranças importantes de norte a sul do país, na última sexta-feira.

 Qual será a nova institucionalidade capaz de repactuar a nação e o seu desenvolvimento, diante do crepúsculo de um centro que se transmudou de criatura em criador?

 A polarização, diga-se, não é exclusividade brasileira.

 Trata-se de um traço da montanha desordenada de ruínas institucionais e sociais que se evidenciou em 2008, após quarenta anos de hegemonia neoliberal e sua correspondente corrosão do ambiente do trabalho, dos direitos sociais e da democracia.

 A esfinge ronda o campo progressista desde as articulações para a reeleição de Dilma, em 2014 e explica, em parte, ao menos, a própria guinada ortodoxa do início do seu segundo governo  --claro sinal de dissolução estratégica e política.

 A impressionante –e ainda pouco analisada – irrupção da resistência quase espontânea ao golpe adiou por um momento o debate desse esgotamento de ciclo.

 Mas a própria aceleração das mobilizações o repôs novamente, agora em termos incisivos, como que a dizer às lideranças novas e velhas que estão à frente da luta contra o golpe: ‘decifra-me ou te devoro’.

 O editorial de Carta Maior da última semana trata justamente desse divisor crucial ao deixar claro que não basta eleger uma ponte de transição entre a volta de Dilma e o day after da governabilidade.

 É preciso dizer o que vai passar por ela –tenha ela a forma de um plebiscito ou de qualquer outra opção de consulta popular

 ‘A resistência ao golpe precisa construir uma pauta de nação que agregue à luta pela legalidade uma dimensão mudancista’, dizia o editorial.

Mais que isso: essa dimensão mudancista requer um equilíbrio justo entre mobilizar ruas e ocupar trincheiras até fisicamente para impedir o desmonte golpista, e a capacidade de negociar um novo pacto de desenvolvimento  –o que se faz entre interesses contrapostos, por definição.

 As ruas cobram uma plataforma crível e factível de retomada do desenvolvimento contra o arrocho.

 Trata-se de repor o curso da nação no trilho da democracia social. E não apenas de fixar uma lápide exclamativa no acostamento da história.  

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