Stédile: “A esquerda desaprendeu a fazer trabalho de base e conscientizar o povo. Faz 20 anos que ela só pensa em eleição”

08/09/2015 | Política

Marco Weissheimer

Sul 21 – 25/08/2015

Há alguns meses, ou mesmo anos, João Pedro Stédile, uma das principais lideranças do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), vem repetindo algumas advertências dirigidas à esquerda brasileira, relacionadas à evolução da conjuntura política nacional e internacional. Um dessas principais advertências consiste em alertar sobre a importância de não resumir a luta política à luta eleitoral e de não sucumbir às armadilhas da política tradicional, como abraçar o financiamento privado de campanhas como um método natural de fazer política. A crise política iniciada após a reeleição de Dilma Rousseff e a ofensiva da oposição e dos setores mais conservadores do país com o objetivo de derrubar a presidenta eleita pelo voto popular recolocou essas advertências na ordem do dia.

Na última sexta-feira, Stédile esteve em Porto Alegre para participar de um debate na abertura do 14º Congresso Estadual da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Em entrevista ao Sul21, ele falou sobre a conjugação de três crises no presente – econômica, política e social –, sobre as movimentações de seus principais protagonistas e seus possíveis desdobramentos. E apontou aquele que considera ser o principal desafio da esquerda neste período: “Construir força popular organizada. A esquerda desaprendeu a fazer trabalho de base, de conscientizar o povo, de fazer pequenas reuniões. Faz 20 anos, que a esquerda só pensa em eleição”, disse Stédile.

Sul21: Na última semana, tivemos uma nova série de manifestações contra e a favor da presidenta Dilma Rousseff e a denúncia oferecida contra o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Na tua opinião, como esses eventos influenciam no atual clima de instabilidade política que marca a conjuntura nacional?

João Pedro Stédile: O Brasil está vivendo um período muito confuso e complexo onde, a cada semana, surgem fatos que complicam mais ainda a leitura da conjuntura na qual inserem esses dois episódios que citou na tua pergunta. Essa complexidade, na avaliação do MST e dos movimentos sociais como um todo, deve-se ao fato de estarmos vivendo um período que conjugou três crises.

Temos uma crise econômica, que afeta a economia brasileira que não cresce há dois anos e deve ficar ainda mais uns dois sem crescer, com um forte processo de desindustrialização que já se reflete inclusive na classe trabalhadora, com aumento do desemprego e diminuição do salário médio. Temos também uma crise social, cuja ponta do iceberg apareceu nos protestos de junho de 2013. O governo adotou uma retórica de diálogo, porém, todos aqueles problemas sociais que eram substrato para as mobilizações de junho, nenhum deles se resolveu, pelo contrário. Os problemas da moradia, do transporte público, do acesso à universidade, todos eles se agravaram. Essa crise social ainda não eclodiu, está latente, mas existe. E, por fim, temos uma crise política cuja origem é o sequestro da democracia brasileira feito pelos capitalistas por meio do financiamento privado das campanhas eleitorais. As dez maiores empresas do país financiaram cerca de 70% dos parlamentares, processo este que gerou os Cunha da vida e os seus 300 aliados. Hoje, a população não se reconhece nos políticos. Diversas pesquisas de opinião apontam os políticos com o menor índice de credibilidade. Então, temos uma dicotomia aí. O que acontece na política não reflete na sociedade, ou só reflete negativamente.

Todos os dias nós temos evidência dessas três crises. Se lermos o Valor Econômico, por exemplo, veremos os reflexos da crise econômica. Se consultarmos os movimentos populares ouviremos relatos de todos eles sobre os problemas sociais que vem se avolumando. E, na política, é o que você citou. Todo dia temos fatos novos.

Sul21: E quais são, na sua avaliação, os possíveis desdobramentos dessa conjugação de crises?

João Pedro Stédile: A dificuldade para sair dessa crise geral é que as classes ainda não se puseram de acordo sobre o que fazer. Seria preciso criar um novo bloco histórico e social que se constituísse numa maioria capaz de encontrar a saída. Isso, em geral, se materializa em períodos eleitorais. O problema é que nós acabamos de sair de uma eleição. Então, nós vamos levar quatro anos, durante todo o governo Dilma, para encontrar essa maioria. Essa é a dificuldade.

Nessas tentativas de saída de crise, o que está sendo mais ou menos sinalizado? A burguesa, no sentido clássico do termo, mais conhecida como os empresários ou o poder econômico, já apresentou a sua proposta de saída. Não é um programa formalizado, mas vem sendo apresentado em suas reuniões e discursos. Essa proposta consiste em realinhar a economia brasileira aos Estados Unidos, que foi um pouco o que aconteceu em 1964. A ideia é que os americanos venham para cá, invistam e tirem a economia da crise, ampliando o mercado para as empresas brasileiras que entrariam de maneira subalterna numa relação com a economia industrial norte-americana. Em segundo lugar, consiste em diminuir o papel do Estado, que hoje se expressa nas propostas de cortar gastos sociais, de diminuir o número de ministérios, de diminuir os gastos com a Previdência, etc. Tudo isso é firula para voltar a velha tese de que o mercado é que resolve. Em terceiro lugar, é diminuir o custo da mão de obra. Esse é o programa deles, que ainda não pode ser explicitado, pois, em sua essência, esse programa é o neoliberalismo, que foi derrotado nas últimas quatro eleições. Eles não podem simplesmente apresentá-lo de novo. Precisam dourar a pílula.

Então, a burguesia está fazendo esse movimento para tentar construir uma maioria em torno do seu programa. Como fazem isso? Pautando essas propostas no Congresso Nacional. Todas as iniciativas do bloco do Eduardo Cunha caminham na direção desse programa: diminuir custo, diminuir Estado, privatizações, abrir a economia e reaproximá-la com os Estados Unidos. Além disso, também pautaram o Judiciário e a grande mídia comercial, da qual a Globo é a grande porta-voz. Esse movimento representa o maior grau de unidade que eles conseguiram até agora, com manifestações da Firjan (Federação das Indústrias do Rio de Janeiro), do Renan Calheiros, presidente do Senado, e com setores do PSDB. Tenho absoluta convicção, pela recente entrevista do Mendonça de Barros, que Serra e Alckmin, embora não possam aparecer publicamente, concordam com esse programa. Mas eles não podem aparecer.

Sul21: Você referiu o movimento que vem sendo articulado pelo grande empresariado e seus braços políticos para a superação da crise. E quantos aos demais setores da sociedade, é possível vislumbrar alguma movimentação que busca saídas para os atuais impasses?

João Pedro Stédile: Nós temos outro segmento, que é a chamada classe média, ou pequena burguesia como denominava Marx. Estamos falando aqui daquela classe média que o Marcio Pochmann menciona no Atlas da Exclusão Social, que, pela renda que tem, representa entre 5 e 10% da população e que sonha um dia em virar burguesia. Qual é o programa que essa classe média apresenta para sair da crise? Golpe na Dilma! Mas isso não é programa, não resolve nenhuma das três crises. Por isso que a burguesia, que é mais esperta, está dizendo para eles: Calma, vocês podem ficar latindo aí na Paulista, em Copacabana, mas isso não é saída para a crise.

O próprio Temer disse isso para eles quando afirmou que não adiantava colocá-lo no lugar da Dilma, pois a crise tem outras raízes. Pelo contrário, se houvesse um golpe institucional, se criaria uma quarta crise, uma crise institucional, que levaria os movimentos sociais e populares para as ruas. Isso desarrumaria todas aquelas regras do Estado burguês que, apesar da crise política, todo mundo segue respeitando. Se isso acontecesse, por que não poderíamos, por exemplo, pedir o impeachment do Sartori ou do Alckmin, cujas campanhas também foram financiadas por empresas privadas. Então, a saída dessa classe média é burra. A nossa sorte, e a deles também, é que representam uma parcela muito pequena da sociedade. É por isso que as mobilizações deles não aumentam. E tem que ser feitas sempre no domingo, né? É muito mais um festival, ao qual eles têm direito, do que propriamente uma luta política.

Do lado de cá, temos a classe trabalhadora, que não está conseguindo apresentar um programa de saída para a crise. Neste momento, as direções de organizações como CUT, UNE, MST, os movimentos de luta pela moradia, estão tentando unificar uma agenda. O que conseguimos construir de unidade até aqui é um programa defensivo contra o golpe, em defesa dos direitos, contra o neoliberalismo, ou seja, é uma defesa do passado, não é avançar como nós queremos. Então, para a classe trabalhadora também está sendo difícil construir um programa propositivo capaz de retomar a ofensiva na direção das mudanças que defendemos. Essa é uma dificuldade real e é neste ponto em que nós estamos.

Sul21: Quais as perspectivas de superar essa dificuldade?

João Pedro Stédile: Espero que, nos próximos meses consigamos avançar na direção desta unidade da classe trabalhadora para construir um programa, não defensivo, mas que apresente propostas para a saída das crises econômica, política e social. Talvez já tenhamos uma maior unidade no tema da crise política, com a defesa de uma Reforma Política construída por meio de uma Assembleia Nacional Constituinte. Este Congresso não fará essa reforma e os partidos não têm força para aprová-la no cenário atual. No fundo, a saída de um programa construído pela classe trabalhadora vai depender de um componente que ainda não está no cenário, que é a classe trabalhadora se mobilizar e ir para a rua. Até agora, só foram para a rua as mediações, os militantes. A grande massa segue sentada em casa assistindo tudo pela televisão. Por isso que as nossas mobilizações também têm mantido o mesmo tamanho.

Contudo, essa massa e as nossas mediações têm uma arma potente que ainda não foi usada: a greve geral, que afeta diretamente o lucro dos capitalistas. A perspectiva de parar a produção um dia, dois dias, uma semana, coloca em pânico a burguesia. No fundo, esse é o maior medo que eles têm. Por isso não querem ver o circo pegar fogo, pois a lona cairia também sobre as suas cabeças.

Sul21: Você mencionou algumas organizações há pouco que estão tentando unificar uma agenda comum e não mencionou nenhum partido político entre elas. Considerando que o partido que vem governando o Brasil há 13 anos atravessa uma série crise política e os demais partidos de esquerda parecem não ter força para apresentar uma alternativa, a conjuntura está convocando os movimentos sociais a assumir um maior protagonismo, a exemplo do que ocorreu na Bolívia há alguns anos?

João Pedro Stédile: É evidente que os partidos políticos no Brasil, tanto os da burguesia quanto os da esquerda, estão em crise. Os da burguesia foram substituídos pela Globo. Quem dirige ideologicamente as ideias da direita no Brasil é a Globo. Os dirigentes partidários da direita brasileira estão completamente desmoralizados. Estão aí os Eduardo Cunha, os Ronaldo Caiado da vida. E a esquerda precisa fazer uma autocrítica séria porque caiu só no eleitoralismo e, mesmo nesta esfera, não se preocupou em defender uma reforma política. Ao invés disso, fez o jogo da burguesia, abraçando o financiamento privado das campanhas e caindo na arapuca que a Lava Jato expressa. Se não mudarmos as regras políticas, não vai ser de dentro dos partidos que virá a solução. Os partidos já estão enlambuzados. Uma reforma política rejuvenesceria os partidos mas estes não têm força para colocar massa na rua em defesa dessa reforma. Então, isso só poderá ser feito por meio de uma ampla coalizão de todas as forças populares, com todas as formas de mediação de que a classe trabalhadora dispõe, sejam pastorais, sindicatos, movimentos populares, partidos, etc.

Agora não é o momento de discutir quem vai ser protagonista, mas sim de juntar todas as forças para fazer um debate na sociedade e junto às nossas bases sobre quais são as saídas para a crise que está posta e é inegável. Eu não sei como será essa saída. Isso dependerá da correlação de forças e da dinâmica da luta de classes. Acho muito ruim queremos copiar algum exemplo. Tenho visto algumas pessoas dizendo que temos seguir o exemplo do Podemos, da Espanha, ou do Syryza, da Grécia. A história da Espanha é outra e o Tsipras durou apenas três meses. Então, cada país tem a sua dinâmica e nós, brasileiros, teremos que inventar a nossa. A ousadia que nos cabe é inventar. Quando quisemos copiar, erramos. Quisemos copiar o modelo do financiamento privado de campanhas. Deu no que deu. O componente principal da ousadia que precisamos ter é que precisamos levar esse debate para as massas e fazer com elas se mobilizem e decidam ir para as ruas, criando uma efervescência, um novo dinamismo na política brasileira. No meio dessa efervescência, também vão surgir novos líderes. Não adianta ficar olhando para trás e procurando onde estão os líderes do passado. A dinâmica da luta de classes vai forjar novas lideranças e novas formas de organização também.

Sul21: Na tua opinião, há um avanço de ideias e valores conservadores no Brasil, de uma direita mais orgânica e extremada, ou é muita fumaça o que está aparecendo nas ruas?

João Pedro Stédile: Eu acho que é muita fumaça. Nas raízes do povo brasileiro há energias muito saudáveis. O povo brasileiro é solidário, trabalhador e digno. Agora, essa fumaça é resultado da hegemonia ideológica da burguesia nos meios de comunicação. A Globo é a principal responsável pela projeção desses falsos valores, desse negativismo que afirma que todo mundo é corrupto. Ela projeta essas ideias e valores todos os dias, em suas novelas, em seus noticiários. Aí devemos buscar a causa dessa fumaça que esconde a realidade. E nós não temos meios de comunicação de massa alternativos. Ficamos lutando em trincheiras, com uma página aqui, um boletim ali. Não temos um meio de comunicação nacional que consiga fazer esse debate com a sociedade. O que está faltando na sociedade brasileira é debate sobre os seus problemas e suas possíveis soluções.

Sul21: Neste momento, há vários grupos se reunindo e discutindo a necessidade de formação de novas frentes de esquerda e de setores progressistas da sociedade. Esses grupos vêm conversando entre si?

João Pedro Stédile: Do ponto do vista do diagnóstico, todo mundo está com a mesma leitura, ou seja, que a crise é grave, complexa e vai demorar. Mas não há unidade quanto às possíveis saídas. Não tem um programa. Como estão se movendo as forças, acredito que teremos várias frentes. Nós estamos colocando energia na construção de uma que já tem nome, a Frente Brasil Popular, que junta partidos tradicionais, movimentos populares, a UNE, o Levante Popular da Juventude, as pastorais, entre outras organizações. Nós vamos fazer uma conferência nacional dia 5 de setembro em Belo Horizonte para ver se avançamos em nosso programa. Mas acredito que outros grupos de esquerda vão formar outras frentes, alguns porque tem uma vocação mais eleitoral e querem tirar proveito dessa crise do PT.

No entanto, não creio que uma frente de esquerda limitada em sua base social, por mais clareza ideológica que tenha, consiga acumular força. Agora, mais do que saber para onde tu tem que ir, é preciso ter força social acumulada. E, em períodos de crise, para ter essa força social acumulada, é preciso contar com todos os que querem mudanças, sem exclusão ideológica. No caso da Frente Brasil Popular, o espectro de forças com que estamos trabalhando é quem votou na Dilma no segundo turno, que não são poucos. Se conseguirmos aglutinar numa frente cerca de 54 milhões de brasileiros, teremos uma força suficiente para impulsionar mudanças dentro do governo e se preparar para o pós-Dilma.

Sul21: Uma última questão. Se fosse possível definir numa frase o principal desafio que a esquerda brasileira tem hoje, qual seria ela na tua opinião?

João Pedro Stédile: Construir força popular organizada. A esquerda desaprendeu a fazer trabalho de base, de conscientizar o povo, de fazer pequenas reuniões. Faz 20 anos, que a esquerda só pensa em eleição. Temos que parar um pouco de pensar em eleição. Não que a eleição não seja importante. Claro que é importante, pois faz parte da democracia. Nós temos feito bons diálogos com o Tarso (Genro) no sentido de que a esquerda precisa recuperar mais o Gramsci. Como viveu num momento de crise do movimento operário italiano, ele tem reflexões que são apropriadas para o período que estamos vivendo. Entre as várias contribuições de Gramsci, uma delas é essa visão de que na luta por mudanças sociais, a luta de classes se manifesta em todos os espaços da vida social. Aparece numa rádio comunitária, num sindicato, num bairro, numa igreja, num jornal, numa fábrica, no comércio, numa praça. Todos são espaços de disputa. E nós, no passado recente, reduzimos tudo isso à disputa eleitoral.

Precisamos preparar a classe trabalhadora para que ela possa disputar, com as suas ideias, todos os espaços da vida social, pois tudo isso é poder político, não só o governo. Para isso, precisamos também recuperar o trabalho de formação de militantes, que a esquerda abandonou. Há uma juventude aí que está a ver navios. A formação política é o casamento permanente entre luta de massas e formação teórica. E a esquerda não fez nenhuma das duas coisas neste último período. A luta de massa foi reduzida à eleição e a formação teórica foi abandonada. Felizmente, a direita está recolocando em nossa pauta a importância da luta de massa. Se não formos para a rua disputar com eles, eles vêm pra cima de nós.

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