Thomas Piketty: “O paradoxo do PT”

31/07/2020 | Política

A politização inacabada da desigualdade no Brasil

Thomas Piketty.jpg (43 KB)

Thomas Piketty

Revista Piauí, 25/07/2020

No Brasil, a exemplo do que aconteceu na Índia, também assistimos, ao longo do período entre 1989 e 2018, à formação de um sistema partidário específico de tipo classista, apresentando desafios ainda maiores em termos de redistribuição e de influências cruzadas com os outros partidos do mundo.

Lembremos que o Brasil foi a última nação do espaço euro-atlântico a abolir a escravidão, em 1888, e que, em termos gerais, o país continua a ser um dos mais desiguais do planeta. Cabe lembrar também que foi preciso esperar o fim da ditadura militar (1964-85) e a Constituição de 1988 para que o direito ao voto fosse estendido a todos. A primeira eleição presidencial com sufrágio universal ocorreu em 1989, quando o exsindicalista Luiz Inácio Lula da Silva disputou o segundo turno, conseguindo conquistar 47% dos votos para sua candidatura, apoiada pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Sua triunfal eleição em 2002, com 61% dos votos no segundo turno, e sua reeleição em 2006, com 60,8% dos votos – dele, que tinha sofrido tanto escárnio das elites brasileiras tradicionais por não ter educação formal, e de quem se dizia não poder representar o país no exterior –, marcam de certa maneira a entrada simbólica do Brasil na era do sufrágio universal. O PT arrebatou duas novas vitórias nas eleições presidenciais, depois de Lula deixar o cargo para Dilma Rousseff, ainda que com margens cada vez mais reduzidas (56% em 2010 e 52% em 2014). Por fim, a vitória do candidato nacionalista-conservador Jair Bolsonaro em 2018, com 55% de votos no segundo turno, contra 45% para o candidato do PT, Fernando Haddad, marcou uma nova reviravolta na história política do país.

É interessante notar que a estrutura do eleitorado do PT e, em termos mais gerais, do sistema partidário brasileiro só se estabeleceu progressivamente nas três décadas posteriores ao fim da ditadura. No começo dos anos 1980, o PT era de início um partido que obtinha maior número de votos entre os trabalhadores do setor industrial e os assalariados urbanos modestos e médios, assim como entre as classes intelectuais que haviam se mobilizado contra a ditadura. Em escala nacional – e levando-se em conta o fato de que os níveis mais baixos de instrução e de renda encontravam-se principalmente nas zonas rurais e nas regiões mais pobres do país –, ainda nos anos 1990, o eleitorado do PT agregava um maior número de eleitores com um grau de instrução mais alto do que a média do país (mas com rendas um pouco menores que a média). Em outras palavras, ao fim da ditadura militar, como na Índia depois da independência em 1947, a estrutura do voto não era espontaneamente classista no Brasil. Após a ascensão de Lula ao poder, a composição social do voto no PT evolui de forma clara. Ao longo das eleições de 2006, 2010, 2014 e 2018, constatamos que o partido obtém, de forma sistemática, mais votos entre os eleitores com menor grau de instrução e rendas menos elevadas.

Essa evolução é também assombrosa em nível regional. Nas regiões brasileiras mais pobres, em particular no Nordeste, os eleitores votam no PT de forma cada vez mais consistente, enquanto nas regiões mais ricas a situação progressivamente se inverte. Durante as eleições de 2014 e 2018, o Nordeste continuou a dar grande maioria de votos a Dilma Rousseff e Fernando Haddad, enquanto regiões e cidades do Sul e Sudeste (como São Paulo) rejeitaram de modo claro o PT. Essa estrutura social e geográfica do voto é acompanhada de uma divisão racial bastante acentuada. A partir de 2006, constatamos que os eleitores que se declaram pretos ou pardos (ou seja, pouco mais da metade da população) votam muito mais fortemente no PT do que os que se descrevem como brancos, mesmo após levar em conta os efeitos das outras características socio-econômicas individuais.

O fato de o voto no PT ter evoluído nessa direção é coerente com as políticas em vigor no período. Desde 2003, os governos do PT concentraram seus esforços na redução da pobreza, sobretudo com o programa de redistribuição de renda Bolsa Família.

Constatamos nos dados brasileiros um forte crescimento da renda das camadas mais baixas, em particular nas regiões mais desfavorecidas do país, daí a alta popularidade do Bolsa Família e do PT entre essa população (trabalhadores agrícolas, camponeses pobres, empregadas domésticas e assalariados menos abastados dos setores de serviços ou de construção etc.). Em contrapartida, entre os empregadores os programas sociais são em geral percebidos como excessivamente dispendiosos, alimentando exigências salariais nefastas. Na época, os governos do PT também implantaram grandes aumentos do salário mínimo, cujo valor real tinha desabado sob a ditadura e que voltou a atingir, no início dos anos 2010, o nível já alcançado nos anos 1950 e no início dos anos 1960. O PT também desenvolveu mecanismos de acesso preferencial às universidades para as classes populares pretas e pardas, até então muito ausentes dos campi universitários.

É quase impossível contestar que essas políticas de redistribuição e esse crescimento da clivagem classista contribuíram para engendrar certo desejo de retomada do controle da situação por parte das elites tradicionais brasileiras, movimento explicitado na destituição de Dilma Rousseff, em 2016, e na eleição de Bolsonaro, em 2018. Este se apresenta como o presidente que livrará o país da tendência socialista. Ele não esconde sua simpatia pela ditadura militar e sua preferência pela ordem social, pelo respeito à propriedade e pelas políticas duras de segurança pública. Como Trump, Bolsonaro também se fundamenta na exploração das diferenças raciais e da nostalgia da ordem do homem branco, em um Brasil onde os “brancos” oficialmente deixaram de ser maioria. Por outro lado, é evidente que o desgaste natural do poder numa democracia eleitoral teve seu papel nessa reviravolta política, tanto quanto as evidentes insuficiências das políticas executadas pelo PT entre 2003 e 2016.

Pensamos naturalmente na incapacidade do PT de combater seriamente o problema da corrupção no Brasil, quando até ele contribuiu para perenizar o sistema, beneficiando-se de caixa dois, num país onde a questão do financiamento das campanhas políticas e das mídias nunca foi objeto de uma regulação adequada. Decerto, essas insuficiências estão, em parte, ligadas ao fato de que os sistemas eleitoral e institucional brasileiros tornam dificílima a formação de uma maioria parlamentar. Apesar das vitórias presidenciais repetidas e substanciais, com mais de 50% dos votos nos segundos turnos de 2002 a 2010, o PT nunca contou com a maioria dos deputados para executar sua política. O partido teve que se aliar a vários outros para poder aprovar leis e orçamentos. O fato é que esses desafios em termos de transparência da vida pública e de reforma dos financiamentos políticos nunca foram explicados com clareza ao país, tanto assim que o PT deu a impressão de se adaptar ao sistema em vigor e a suas zonas cinzentas.

Cabe também assinalar o resultado pouco expressivo do PT na luta contra a desigualdade. Se está claro que as pessoas de baixa renda foram beneficiadas com as políticas realizadas – proporcionando um aumento da participação dos 50% mais pobres entre 2003 e 2015 –, o problema é que essa melhora foi toda feita em detrimento da classe média ou, mais precisamente, dos grupos sociais compreendidos entre os 50% mais pobres e os 10% mais ricos, sem nunca prejudicar os 10% mais ricos, que conseguiram manter sua posição (já normalmente elevada no Brasil). Quando se trata do 1% mais rico, observamos entre 2002 e 2015 um crescimento de sua parcela na renda total, parcela esta duas vezes maior que a detida pelos 50% mais pobres. Esses resultados decepcionantes e paradoxais têm uma explicação simples: o PT nunca realizou uma verdadeira reforma tributária. As políticas sociais foram financiadas pela classe média e não pelos mais ricos, pela única e simples razão de que o PT nunca conseguiu enfrentar a regressividade estrutural do sistema tributário do país, que impõe pesadíssimos impostos e taxas indiretas sobre o consumo (chegando a 30% nas contas de luz), enquanto os impostos progressivos sobre as rendas e os patrimônios mais altos são, historicamente, pouco desenvolvidos.

Também neste ponto as insuficiências das políticas praticadas têm como origem tanto as limitações doutrinárias e ideológicas quanto a falta de uma maioria parlamentar pronunciada. No Brasil, como na Europa e nos Estados Unidos, é impossível reduzir a desigualdade como seria desejável sem modificar também os regimes político, institucional e eleitoral. Notaremos, por outro lado, como na Índia, a importância das influências externas. Pelas evidências disponíveis, parece que teria sido mais fácil para Lula e o PT promoverem o imposto progressivo sobre a renda e a propriedade num contexto político e ideológico mundial em que essas políticas estivessem indo de vento em popa – o que pode vir a acontecer no futuro. Em contrapartida, a intensificação do dumping fiscal representaria objetivamente um passo na direção das orientações desiguais e identitárias personificadas por Bolsonaro e o movimento nacionalista-conservador, como por Narendra Modi e o Partido Bharatiya Janata (BJP), na Índia.

Assim como o da Índia, o caso do Brasil mostra o quanto é essencial se afastar do contexto ocidental para melhor compreender as dinâmicas políticas em jogo em torno da desigualdade e da redistribuição. Ao longo dos anos 1990-2020, enquanto o sistema esquerda-direita de clivagem classista que prevaleceu na Europa e nos Estados Unidos nos anos 1950-80 desaparecia, ameaçado de destruição, na Índia e no Brasil as clivagens classistas passaram a imperar, seguindo percursos sociopolíticos específicos e com fragilidades e potencialidades também específicas. Essas diferentes trajetórias ilustram o caráter fundamentalmente multidimensional dos conflitos políticos e ideológicos.

Em cada um dos casos estudados, é possível distinguir com clareza uma divisão ao estilo identitário e outra ao estilo classista. A clivagem identitária diz respeito à questão da fronteira, ou seja, aos limites da comunidade política com a qual se identificam e às origens e identidades étnico-religiosas de seus membros. A clivagem classista diz respeito às questões de desigualdade socioeconômica e de redistribuição, em especial da propriedade. Essas divisões tomam formas diversas na Europa e nos Estados Unidos, na Índia e na China, no Brasil e na África do Sul, na Rússia e no Oriente Médio. Mas na maioria das sociedades encontramos essas duas dimensões, em geral com múltiplas ramificações e subdimensões.

De modo geral, a clivagem classista só pode prevalecer se conseguirmos superar a clivagem identitária: para que o conflito político possa se concentrar nas desigualdades de propriedade, de renda e de grau de instrução é preciso, em primeiro lugar, chegar a um acordo quanto às fronteiras da comunidade. Ora, a divisão identitária não é simplesmente uma invenção dos atores políticos no intuito de instrumentalizá-la para ascender ao poder (embora possamos detectar facilmente tais atores em todas as sociedades). A questão da fronteira engloba questionamentos complexos e fundamentais. Numa economia global em que as diferentes sociedades são ligadas por inúmeros fluxos comerciais, financeiros, migratórios e culturais, embora continuem a operar como comunidades políticas separadas ao menos em parte, é crucial descrever como essas relações devem funcionar numa perspectiva dinâmica. O mundo pós-colonial deu origem a interações e misturas no âmbito das mesmas sociedades de grupos humanos antes sem qualquer contato entre si (a não ser por intermédio das armas ou das relações de dominação colonial). Trata-se de um progresso civilizacional considerável, ainda que tenha levado ao surgimento de novas clivagens identitárias.

Em paralelo, o colapso do comunismo tendeu a enfraquecer, ao menos por um tempo, a esperança na possibilidade de uma economia justa e da erradicação do capitalismo pela justiça social e tributária. Em outras palavras, no exato momento em que a clivagem identitária aumentava, a clivagem classista se dissipava. Aí reside, sem dúvida, a principal explicação para o crescimento da desigualdade observado a partir dos anos 1980-90. As explicações fundamentadas na tecnologia ou na economia carecem do essencial, ou seja, o fato de sempre existirem várias formas de organizar as relações econômicas e de propriedade, como o demonstra a extraordinária diversidade político-ideológica dos regimes desigualitários.[1]

Fortalecimento da clivagem identitária e dos conflitos sobre a fronteira, enfraquecimento da clivagem e dos debates sobre a propriedade: esse esquema encontra-se em quase todas as regiões do mundo. Mas, além desse esquema geral, as variações entre as sociedades são profundas. Longe dos determinismos de todo tipo, a diversidade das trajetórias mostra a importância das estratégias de mobilização social e política. A perspectiva de longo prazo e comparativa é essencial. Transformações profundas dos regimes desigualitários ocorreram na história muito antes das duas guerras mundiais do século XX, e seria particularmente conservador e inapropriado tentar reproduzir tais choques para vislumbrar um novo movimento de redução histórica da desigualdade. O estudo da Índia e do Brasil também mostrou que a predominância das clivagens identitárias sobre as divisões classistas nada tinha de inevitável. Nesses dois países, as classes populares, de origens e de identidades diversas, puderam se unir nas mesmas coligações políticas redistributivas. Tudo depende das ferramentas institucionais e das políticas sociais e fiscais adotadas a fim de permitir que grupos de origens diversas compreendam que o que os une se sobrepõe ao que os separa.

O estudo das configurações eleitorais de outros países proporciona ilustrações diferentes dessa realidade geral. Sem dúvida, o caso de Israel oferece o exemplo mais radical de uma democracia eleitoral em que o conflito identitário prevaleceu sobre todo o resto. A questão da relação com as populações palestinas e os árabes israelenses passou a ser basicamente a única questão política relevante. Ao longo do período compreendido entre 1950 e 1980, os trabalhistas israelenses ocuparam papel central no sistema de partidos e enfatizaram a redução da desigualdade socioeconômica e o desenvolvimento de modelos cooperativos originais. Por não ter conseguido pensar em tempo hábil numa solução política viável e adaptada para as comunidades humanas em jogo, o que teria implicado a criação de um Estado palestino ou o desenvolvimento de uma forma original de Estado federal binacional, o Partido Trabalhista quase desapareceu do cenário eleitoral israelense, cedendo lugar a facções, em incessante ascensão, voltadas para a segurança pública.

No âmbito das nações muçulmanas, constatamos que as dimensões religiosas e sociais do conflito eleitoral se combinaram de modo diferente de acordo com a época e os países. Na Turquia, o partido kemalista CHP (Partido Republicano do Povo)[2] era, nos anos 1950-70, ao mesmo tempo o mais laico e o preferido das classes populares. A separação das posturas mais religiosas ocorreu, sobretudo, em torno das questões de reforma agrária e redistribuição de terras aos camponeses pobres, que tinham desagradado não apenas os proprietários, mas também todos os que desejavam proteger as terras de posse das fundações religiosas e lhes preservar o papel social. Nos anos 2001-10, o partido AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento) conseguiu agrupar parte importante do eleitorado popular com um discurso de renovação muçulmana e nacionalista, enquanto o voto no CHP se deslocou para as cidades. Observamos um papel mobilizador semelhante, embora mais duradouro, das reformas agrárias na Indonésia. Também vale mencionar a falta de reformas agrárias na África do Sul, onde a existência de um partido hegemônico pós-apartheid torna incerto o desenvolvimento de divisões do tipo classista. Ao reunirmos esses materiais e estudarmos atentamente as diferentes experiências, é possível compreender melhor as interações complexas entre conflitos socioeconômicos e proprietaristas[3] e clivagens étnico-religiosas e identitárias, e a enorme diversidade das trajetórias observadas, fora do contexto ocidental.

Mas, ainda que as margens de autonomia próprias de cada área cultural e de cada trajetória nacional ou regional sejam significativas, não se deve negligenciar o papel-chave do contexto ideológico dominante no nível planetário. Já o vimos no caso da Índia e do Brasil: a capacidade das forças políticas presentes de promover estratégias de redistribuição dignas de crédito e de dar voz à clivagem classista depende em grande parte das evoluções em curso nos países ocidentais. Tendo em vista o peso econômico, comercial e financeiro dos Estados Unidos e da União Europeia, e seu impacto determinante no âmbito legal no qual se organizam os comércios, as transformações político-ideológicas em curso nesses dois conjuntos terão um peso decisivo. As futuras evoluções na China e na Índia, e a médio prazo no Brasil, na Indonésia ou na Nigéria, também terão um papel crescente no âmbito de um cenário ideológico mundial cada vez mais conectado entre si. Não resta dúvida de que a importância da ideologia está longe de diminuir, muito pelo contrário. Nunca a complexidade das questões inerentes ao regime de propriedade e do sistema de fronteiras foi tão forte; nunca as incertezas quanto às respostas dadas foram tão extremas, nessa era que se pretende pós-ideológica, mas que na realidade está por inteiro dominada pela ideologia. Ainda assim, estou convencido de que, ao final deste percurso histórico, será possível se basear nas experiências conhecidas para tentar traçar os contornos de um socialismo participativo e internacionalista, ou seja, identificar, graças às experiências do passado, as novas formas de organização do regime de propriedade e do sistema de fronteiras que poderiam contribuir para a implantação de uma sociedade justa e para a atenuação das ameaças identitárias.

Evitei ao máximo recorrer à noção de “populismo”. A razão é simples: esse conceito não permite analisar corretamente as evoluções em curso. Os conflitos político-ideológicos observados nas diferentes regiões do planeta são profundamente multidimensionais. Estão em jogo, sobretudo, clivagens no sistema de fronteiras e no regime de propriedade. Ora, a noção de “populismo”, tal como utilizada no debate político recente, por vezes até o seu esgotamento, tende a misturar tudo numa espécie de sopa indigesta.

Com muita frequência, a noção é instrumentalizada pelos atores políticos para designar tudo de que não gostam e de que desejam se desligar. Consideram “populista” um partido contra os imigrantes ou um partido condescendente com a estigmatização de estrangeiros. Porém um discurso que vise exigir dos mais ricos o pagamento de impostos mais altos será igualmente qualificado como “populista”. E, se um partido menciona a possibilidade de uma dívida pública não ser paga em sua totalidade, será chamado sem hesitação de “populista”. Na prática, esse termo se tornou a arma suprema que permite a categorias sociais objetivamente muito privilegiadas desqualificar de antemão toda crítica a suas opções políticas e programáticas. Não há mais necessidade de debater a fundo, por exemplo, o fato de existirem várias políticas fiscais ou sociais possíveis e inúmeras maneiras de organização da globalização. Basta denominar quem os contradiz de simpatizantes do “populismo” para encerrar a discussão e manter a consciência limpa. Na França também se tornou comum, desde a eleição presidencial de 2017, colocar na mesma categoria de “populista” os eleitorados reunidos no primeiro turno por Jean-Luc Mélenchon e por Marine Le Pen, esquecendo-se de que o primeiro agrupa, em média, os eleitores mais favoráveis à imigração e o segundo, os mais ferozmente hostis a ela. Nos Estados Unidos, em 2016, não era raro rotular de “populista” tanto o socialista internacionalista Bernie Sanders quanto o empresário nativista Donald Trump. Na Índia, poderiam escolher qualificar como “populista” tanto o BJP de Modi, contrário aos muçulmanos, quanto os partidos socialistas e comunistas ou os movimentos das castas baixas, que propunham plataformas e opções rigorosamente opostas. No Brasil, o rótulo de “populista” às vezes é usado para designar alternativamente o movimento autoritário-conservador personificado por Bolsonaro ou o PT do ex-presidente Lula.

Parece-me que a noção de “populismo” deve ser evitada por completo, pois não permite pensar a complexidade do mundo. Tal noção ignora o caráter multidimensional do conflito político e omite que as decisões tomadas quanto à questão da fronteira e da propriedade podem ser muito diferentes. Ao contrário, faz-se necessário reconhecer com atenção essas diferentes dimensões de questionamento e, sobretudo, analisar com precisão e rigor as diferentes respostas políticas e institucionais de fato em jogo. O primeiro problema do debate relativo ao populismo é o seu vazio: a noção não autoriza a dizer nada de preciso. O debate em torno da dívida pública, em especial no contexto da zona do euro, ilustra, sem dúvida, o ponto mais baixo que o uso dessa noção já atingiu. Tão logo um ator político, um manifestante ou cidadão menciona a possibilidade de que as dívidas não sejam total e imediatamente pagas, a ira dos comentaristas esclarecidos se abate sobre o insolente: eis a ideia mais “populista” que se pode ter.

Assim agindo, os esclarecidos comentaristas em questão parecem ignorar por completo a história da dívida pública, em particular os inúmeros cancelamentos ocorridos há séculos, sobretudo no século XX, em geral com sucesso. As dívidas públicas superiores a 200% do Produto Interno Bruto (PIB) observadas em vários países ocidentais em 1945-50, em especial na Alemanha, no Japão, na França e na maioria dos países europeus, foram anuladas em poucos anos graças a uma mistura de impostos excepcionais sobre o capital privado, cancelamentos puros e simples, adiamentos de longo prazo ou inflação. A construção europeia se deu nos anos 1950 com base no esquecimento das dívidas do passado, permitindo assim se concentrar nas novas gerações e investir no futuro. Cada situação é diferente, e agora é preciso encontrar novas soluções para superar os problemas causados pelas dívidas públicas atuais aprendendo com os sucessos e as limitações das experiências do passado. Mas chamar de “populistas” os que abrem um debate necessário e imprescindível, quando vivemos numa situação de ignorância histórica que beira a inconsciência, é intolerável. Em termos concretos, os representantes da Lega e do M5S[4] na Itália ou os militantes dos coletes amarelos na França, que propõem um referendo popular para anular a dívida, decerto não compreendem toda a complexidade do desafio, nem o fato de que essa questão não pode ser resolvida com um “sim” ou com um “não”. Faz-se necessário o debate urgente das modalidades institucionais, tributárias e financeiras específicas, que permitam a reestruturação das dívidas, pois são esses “detalhes” que fazem com que a tentativa de anular as dívidas recaia sobre os mais ricos (por exemplo, por meio de um imposto progressivo sobre a propriedade) ou, ao contrário, sobre os mais pobres (por exemplo, por meio da inflação). A resposta a essas demandas sociais por vezes confusas, porém legítimas, não deve encerrar o debate, mas ao contrário abri-lo, em toda a sua complexidade.

Concluamos observando que a pior consequência do debate em torno do populismo talvez seja o fato de ele acabar gerando novos conflitos identitários e bloqueando qualquer deliberação construtiva. Se o termo é usado de modo pejorativo, seu uso também é reivindicado por algumas das pessoas acusadas de populistas como elemento positivo, permitindo-lhes definir sua identidade, em geral de modo tão nebuloso quanto os que o usam para depreciá-los, o que, como é natural, só aumenta a confusão reinante. O termo “populista” é usado por certos movimentos contra a presença de imigrantes para demonstrar sua preocupação com o “povo” (considerado, por unanimidade, hostil à imigração) e não com as “elites”, desejosas de impor fluxos migratórios sem limites a todo o planeta.

Mas certos movimentos da esquerda intitulada “radical”, como o Podemos na Espanha ou o LFI[5] na França, também passaram a reivindicar o “populismo” nos últimos anos, nem sempre com prudência, como, por exemplo, para marcar a diferença entre eles e os antigos partidos de “esquerda” (socialistas e social-democratas), acusados de traírem as classes populares. A acusação pode fazer sentido, mas será preciso bem mais que a alteração de uma palavra carregada, totêmica e perigosamente polissêmica para pôr fim à discussão. Na prática, o termo visa lembrar incessantemente que o objetivo é unir o “povo” contra as elites (ou contra as “castas”, que dependendo do caso podem ser financeiras, políticas, midiáticas, ou tudo ao mesmo tempo), evitando debater o que de fato importa: as instituições que gostariam de implementar para melhorar de fato as condições de vida das classes populares – por exemplo, no nível europeu. O termo “populismo” por vezes nega a importância da ideologia: tenta-se demonstrar a hipótese implícita de que a relação de força pura e simples é a única coisa que importa e que os detalhes institucionais se resolverão sozinhos uma vez estabelecida a relação de força, e assim o “povo” triunfará.

Entretanto, toda a história dos regimes desigualitários demonstra o contrário. As mudanças históricas de grande magnitude decorrem do encontro das lógicas de eventos e de mobilizações de curto prazo, e das evoluções político-ideológicas e de desafios institucionais de prazo mais longo. No final do século XIX e no início do século XX, o movimento mobilizado em torno do People’s Party nos Estados Unidos assumiu um papel de destaque não por reivindicar o termo “populista” (que em si não é necessário nem suficiente), mas por de fato se inscrever num movimento político e ideológico de base, o que levou à Décima Sexta Emenda da Constituição[6] americana e à criação de um imposto federal sobre a renda em 1913. O movimento se tornaria um dos mais progressistas da história e permitiu o financiamento do New Deal e a redução da desigualdade.

Por todas essas razões, me parece importante desconfiar dos impasses e das armadilhas do debate sobre o “populismo” e concentrar-se nas questões de conteúdo, em particular na reflexão acerca do regime de propriedade, do sistema tributário, social e educacional, e do regime de fronteira, ou seja, nas instituições sociais, fiscais e políticas capazes de contribuir para a implantação de uma sociedade justa e permitir que as clivagens classistas se sobreponham às clivagens identitárias.

*
Trecho do livro Capital e Ideologia, que a Intrínseca lança neste mês. Tradução de Dorothée de Bruchard e Maria de Fátima Oliva Do Coutto.

[1] A expressão “regime desigualitário”, na acepção do autor, engloba as noções de regime político e regime de propriedade (ou, ainda, as de regime educacional e regime tributário). [N. R.]

[2] O kemalismo designa o movimento fundado por Mustafa Kemal (1881-1938), mais conhecido por Atatürk, que fundou a moderna república turca. [N. R.]

[3] O autor usa o termo “proprietarista” para se referir à ideologia que floresceu no século XVIII que considera que o direito de propriedade, tido como acessível a todos, assegura a estabilidade social e política, assim como a emancipação individual. [N. R.]

[4] Lega Nord per l’Indipendenza della Padania (Liga Norte para a Independência da Padânia) é um partido de extrema direita formado em 1991 no Norte da Itália, ao qual pertence o senador Matteo Salvini, que foi vice-primeiro-ministro e ministro do Interior entre 2018 e 2019. MoVimento 5 Stelle (M5S, Movimento 5 Estrelas) é um agrupamento político fundado em 2009, que, embora recuse a denominação de partido, teve vários de seus filiados eleitos parlamentares recentemente. Foi fundado pelo comediante Beppe Grillo. [N. R]

[5] Podemos é um partido de esquerda, fundado em 2014. LFI é a sigla de La France Insoumise (A França Insubmissa), partido de esquerda criado por Jean-Luc Mélenchon em 2016. [N. R.]

[6] A Décima Sexta Emenda, aprovada em 1909, autoriza o Congresso norte-americano a cobrar um imposto sobre a renda sem reparti-lo entre os estados com base no tamanho da população. [N. R.]


Thomas Piketty é um economista francês. autor de Capital e Ideologia (Intrínseca)