Valor Econômico: “Crise já pressiona a Previdência na América Latina”
Chile e Peru permitiram saques de contas individuais, medida que trouxe de volta a discussão sobre a reforma da Previdência. Colômbia busca medida semelhante
Valor Econômico, 01/08/2020
Marsílea Gombata
A crise econômica causada pela pandemia já está pressionando sistemas de aposentadoria na América Latina. Chile e Peru permitiram saques de contas individuais, medida que trouxe de volta a discussão sobre a reforma da Previdência. No México, o governo anunciou projeto de reforma do sistema para elevar a contribuição das empresas.
No curto prazo, esses saques das contas individuais devem ajudar na recuperação econômica por meio de maiores gastos dos consumidores, mas há implicações futuras e custos fiscais no longo prazo, diz Quinn Markwith, economista da consultoria Capital Economics. “Reduzir as aposentadorias agora colocará maior pressão sobre os governos para complementar a renda dos aposentados no futuro.”
Não está claro o que acontecerá nos países onde os saques foram permitidos. Se nada for feito, seja aumentando a contribuição dos trabalhadores e empresas ou com maior aporte do Estado, as aposentadorias serão menores no futuro.
No Chile, o Congresso aprovou no fim de junho mudança constitucional para permitir os saques, algo inédito no sistema de capitalização chileno até então. Com a lei, os chilenos poderão sacar até 10% dos recursos guardados nas Administradoras dos Fundos de Pensão (AFPs, privadas), que gerenciam US$ 200 bilhões.
O valor máximo a ser retirado é de 4,3 milhões de pesos chilenos (cerca de US$ 5.600) e o mínimo, de 1 milhão de pesos (cerca de US$ 1.300). Quem possui menos do que o mínimo em suas contas poderá retirar 100% do total. Segundo estimativa do Ministério da Fazenda chileno, 27% retirarão todo o saldo. Por isso, afirmou o ministro da Fazenda, Ignacio Briones, os saques podem chegar a 44% do total administrado pelas AFPs.
A medida deve pautar o debate sobre o plebiscito da Assembleia Constituinte, em outubro, e dar força para o projeto de reforma em tramitação no Congresso, afirma Andras Uthoff, economista da Universidade do Chile que participou da comissão para reforma da Previdência no segundo mandato de Michelle Bachelet (2014-18).
“Com a mudança constitucional que permite os saques, cresce o apoio de legisladores para uma reforma mais ampla, que melhore as aposentadoras”, diz Uthoff, ao lembrar que 80% dos aposentados recebem menos que um salário mínimo (US$ 454). “O debate sobre mudanças no sistema é anterior à pandemia. Mas a crise atual deixou clara a necessidade de maior seguridade social.”
O projeto de reforma prevê uma contribuição patronal, que atualmente é zero. Hoje trabalhadores formais destinam 10% do salário para uma conta individual de aposentadoria. O dinheiro vai para uma administradora de fundo de pensão (as AFPs, privadas). Se o projeto for aprovado, a contribuição passaria de 10% para 16%, sendo seis pontos percentuais a cargo do empregador.
Debate-se ainda se metade dessa contribuição patronal vai ou não para um fundo administrado pelo Estado, destinado a financiar aposentadoria dos mais pobres.
Mas pensar em contribuição patronal neste momento de crise parece inviável, diz Macarena García, do centro de estudos Liberdade e Desenvolvimento, em Santiago. “Falar em aumentar os encargos do empregador, depois de dois meses de queda de cerca de 15% da atividade, mais desemprego e incerteza, não parece adequado”, diz. “Depois da crise, será preciso uma reforma. Mas é difícil imaginar as empresas contribuindo para aposentadorias e um fundo solidário em um situação tão complicada. Um projeto como o que está no Congresso não deve passar.”
O Peru aprovou a retirada de 25% das contas de aposentadorias administradas por AFPs. Assim como no Chile, quem tiver um saldo inferior ao mínimo de 2.000 sóis (cerca de US$ 570) na conta, poderá sacar o valor total. Esses saques podem representar 49% dos US$ 52 bilhões que estão no Sistema Privado de Aposentadorias do país.
“A medida é fruto da pandemia, da necessidade de mais recursos. Ao mesmo tempo, deixou evidente que o sistema como um todo precisa ser reformado, dada as baixas aposentadorias que paga”, diz Jorge González Izquierdo, da Universidade do Pacífico, em Lima.
No Peru convivem dois sistemas: o público, de repartição, e o de capitalização, no qual o trabalhador contribui com 10%. Não há aporte patronal ou do Estado. A aposentadoria média no sistema de capitalização é de US$ 304, acima do salário mínimo, de US$ 257.
“Com esses saques, a perspectiva de boas aposentadorias no futuro diminui”, diz González, ao lembrar que esta não é a primeira vez que são permitidas retiradas parciais das contas.
O Congresso peruano debate reforma mais ampla, que deve levar em conta a permanência ou não dos dois sistemas. González, que apresentou proposta à comissão legislativa que cuida do assunto, defende aumentar a contribuição de 10% para 15%, em até dez anos.
A Colômbia também busca alívio semelhante para as famílias. Na semana passada, o governo do presidente Iván Duque enviou ao Congresso um projeto que permite saques de até 10% das contas de aposentadorias. Tanto no regime de repartição quanto no de capitalização do país, a contribuição é de 16%, sendo 12% a cargo do empregador.
Os fundos de pensão na Colômbia administram cerca de US$ 86 bilhões, segundo dados da Federação Internacional de Administradoras dos Fundos de Pensão do fim de 2019.
Markwith alerta que, diferentemente do Chile e do Peru, a situação fiscal da Colômbia vem se deteriorando, o que aumenta a probabilidade de austeridade fiscal adiante. “Isso poderia atrasar o crescimento”, argumenta.
No México, o presidente Andrés Manuel López Obrador anunciou há duas semanas um projeto de reforma da Previdência que prevê aumentar em 40% o valor médio das aposentadorias. O México também possui dois tipos de Previdência. A reforma, que vinha sendo ventilada há meses por López Obrador, valeria para o sistema de capitalização, cujas administradoras gerenciam US$ 200 bilhões.
Pela proposta, a contribuição subirá de 6,5% para 15%. Hoje, o sistema de capitalização funciona em um esquema tripartite, no qual a empresa contribui com 5,15% sobre o salário, o trabalhador entra com 1,125%, e o Estado, 0,225%.
Apesar do aumento considerável da contribuição patronal, a reforma tem chances de ser aprovada no Congresso por duas razões, afirma Ana Abad, da consultoria Eurasia. Primeiro porque é um projeto que foi costurado com o Conselho Coordenador Empresarial (CCE), que representa o setor empresarial mexicano, e os fundos de pensão. Além disso, o impacto para as empresas será gradual - a contribuição aumentará de 5,15% para 13,8% em oito anos, o que daria pouco mais de um ponto percentual de aumento ao ano.
“Esse tempo de transição parece aceitável para as companhias no pós-pandemia”, diz Abad. “O que empresas e fundos no México não queriam era um proposta semelhante à do Chile ou à do Peru. Isso, além de causar problemas de liquidez, geraria ainda mais incerteza nos mercados.”
Marsílea Gombata é reporter do Valor Econômico.